sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Talvez o Brasil não tenha acabado

Uma crônica de fim de ano

(foto reprodução Televisa)

Eu sei, decretei aqui mesmo nesta coluna o fim do Brasil há não muito tempo, junto com o término do Botafogo. Ocorre que, ao que parece, o Botafogo desacabou. O fato se deu mês passado, tive evidências quando num domingo dei carona para uma tia que mora na Estrada do Goiabal. Bucólica via espremida entre um apêndice da Serra da Estrela e o vale do Rio Inhomirim, que liga os bairros mageenses Raiz da Serra e Pau Grande.

Magé é um reduto de botafoguenses, principalmente nos arredores de Pau Grande, terra natal do gênio das pernas tortas, Garrincha. Neste dia que fui levar minha tia em casa as ruas foram tomadas de alvinegros enlouquecidos (perdão pelo pleonasmo) parecia carnaval. O Bota tinha metido quatro gols no coitado do Vasco, praticamente carimbado a volta à elite e de quebra enterrado o rival na segundona. A festa em Magé foi tão linda e grandiosa que me lembrou a Copa de 94, a maior e, em matéria de ufanismo, talvez a última catarse futebolística de nossa geração.

Este evento colocou tantas caraminholas da minha cabeça que comecei a cogitar a hipótese de que o Brasil de fato não tivesse acabado. Passei então a procurar sinais aqui e acolá de sobrevivência, ou ao menos de teimosia, um vislumbre qualquer de uma jabuticaba que fosse. 

Pois um dia estava eu na Avenida Brasil rumo à Seropédica quando li a placa: viaduto Engenheiro Oscar Brito. Na hora me veio aquele pensamento comum a todo morador da Zona Oeste:

- Engenheiro Oscar Brito é meuzovo, o nome é Viaduto dos Cabrito, todo mundo aqui sabe!

Esta história é maravilhosa, deixa eu explicar pra quem não é do Rio. Este viaduto, que dá acesso de Campo Grande à antiga rodovia Rio - São Paulo, oficialmente faz homenagem ao Engenheiro Oscar Brito, mas foi popularmente rebatizado de “dos cabrito”. O nome pegou de uma maneira que não tem placa que convença o carioca a chama-lo pelo nome oficial. E que nos perdoem os descendentes e o espírito do finado engenheiro, mas “viaduto dos cabrito” é um nome maravilhosamente carioca. A história é tão controversa que há quem diga que o nome sempre foi “dos Cabrito” e virou do Oscar Brito por obra e picardia da população que fez a própria prefeitura de otária por ocasião da confecção da placa. Entendeu? Que povo maravilhoso minha gente!

Pois eu peguei o Viaduto dos Cabrito e logo cheguei ao “km 32” bairro anônimo de Nova Iguaçu de comércio agitado e transito caótico. Pense numa via estreita com carro em todas as direções, ônibus, caminhão de lixo, carreta de 432 eixos, moto pra todo lado feito uma peste, pedestre atravessando a pé de um jeito que você não sabe onde é rua onde é calçada, carroça puxada a burro abarrotada de areia, bicicleta, camelô, poeira que só o sertão. Mano do céu! O carro vai numa velocidade média de 3 km/h. Você é levado a questionar o sentido da vida quando passa pelo km 32. Mas... essa crônica toda foi pensada pra chegar a esse clímax, presta atenção...

mas...

eu olho  pro lado e vejo um cartaz com uma foto da Dona Florinda. Tá ligado na Dona Florinda? Do Chaves. Mãe do Quico! Pois bem, tá lá ela, com olhar apaixonado, seus bobs na cabeça, as mãos unidas em pêndulo sobre o ombro, um sorriso bobo bobo. Ao rodapé do cartaz lia-se a frase: Você não gostaria de parar e tomar uma xícara de café? Por traz do cartaz uma banquinha com duas garrafas de café, alguns biscoitos amanteigados e um casal de vendedores ambulantes ganhando a vida distribuindo amor, açúcar e cafeína para motoristas estressados feito eu.

É por essas e outras que neste dia cheguei à conclusão: O Brasil ainda não acabou.

Ainda temos chance de ser o país do abraço, do sorriso e da poesia improvável. Ainda temos uma chance de entender de uma vez por todas o que o Sérgio Buarque quis dizer por “homem cordial”. Um pais que teve Garrincha, Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Oswaldo Cruz, Belchior, Lima Barreto, Lélia Gonzales, os Irmãos Rebouças, Luiz Gama, Hélio Oiticica, Gonzagão e Gonzaguinha. O país de Milton Nascimento, Rebeca Andrade e tantos outros talentos, jovens e veteranos, anônimos ou não. Ainda não acabou, ainda há amor, está nas nossas mãos. Que venha mais um ano.



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domingo, 12 de setembro de 2021

Semente

Eu fui moleque num tempo em que a Baixada Fluminense era muito menos urbana e os meninos um pouco menos besta que os de hoje. Uma coisa que a gente aprendia rápido era que bêbado tende a ser generoso, ali pelas duas da tarde. Isso porque muito depois deste horário eles já estão em outro estado de espírito. Era nesse expediente que a gente descolava uma cocada, uma mariola, um doce de abóbora e, se fosse perto do dia cinco, rolava até coxinha com guaraná taí

No Botequim de Seu Minca tinha um cara que sempre chegava para tomar cachaça conduzindo uma charrete puxada por um cavalo branco aprumado, de crinas longas e sempre bem penteadas. Namoral, o cavalo era bonito pra caramba! Cavalo de livro ilustrado da Disney, sabe qual é?  A gente era doido para dar um rolê naquela charrete. Um dia eu tomei coragem e fui lá pedir:  

- Tio, deixa a gente dar uma voltinha de charrete aí. A gente não vai longe não, só vai só até ali só.

- Vai lá – ele disse. Eu nem acreditei – Vai lá, mas preste atenção, tá vendo esse guizo?

Me mostrou um amarrado de chapinhas.

- Não sacuda esse guizo de jeito nenhum! Você tá entendendo?

- Hahã.

- NÃO mexe no guizo!

- Tá.

Pronto, estava plantada a sementinha do mal no meu coração.

Saí catando todos os moleques da rua. Duas voltas no quarteirão e a charrete já estava mais lotada que o trem de Gramacho segunda-feira seis e quinze da manhã. Tinha criança pendurada até nos paralamas. Quando passamos na pracinha demos carona pro Seu Jairo gordo e pra duas tias que voltavam da feira.

Tudo estava indo muito bem, a festa estava boa, até que ganhei a Rua da Fábrica de Costura. A rua da Fábrica de Costura era uma grande reta. O cramunhão esperou até que eu me deparasse com aquela imensidão de estrada para soprar no meu ouvido: 

- O guizo.

Parceiro namoral...

Eu sacudi o guizo.

De com força.

Mano do céu...

O cavalinho bonitinho da Disney levantou as orelhinhas.... Pense. Pense na coisa mais feroz que você já viu na vida. Pense numa coisa que corria tanto que deixaria o Caxias x Freguesia comendo poeira.

Mano...

Até o capeta que soprou no meu ouvido se arrependeu.

Foi um tal de criança gritando. Seu Jairo gordo se agarrando nas saias de viscose das tias que se seguravam sabe-se lá onde. No terceiro quebra-molas o Raoni, menino peso pena que morava na rua do valão, toda periferia tem uma rua do valão, o Raoni saiu voando feito um boneco de pano e só não morreu porque a queda foi amortecida por uma touceira de buchinho. Criança tem anjo da guarda, puta profissão difícil. Eu puxei o freio com toda força do meu ser, mas era o mesmo que nada.

O fim da Rua da Fábrica de Costura era um morro com um matagal ainda nativo. Foi o que nos valeu. O bicho entrou uns cinquenta metros mato a dentro e foi freado pelos arbustos. Levamos um tempão para amansar o cavalo, desengancha-lo do mato, realinhar a charrete e tudo mais.

Depois de todo esse trabalho subimos de volta na charrete, exceto as tias. Não tenho notícias delas até hoje. O seu Jairo gordo não nos abandonou em nenhum momento. Seu Jairo gordo era parceiro. Enfim, demos meia volta, ganhamos a Rua da Fábrica de Costura, resgatamos o Raoni, andamos mais duas quadras e... Juro.

Ouvi:

- O guizo.


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sábado, 21 de agosto de 2021

Bar da Lôra

Aí, pelos botecos que você já frequentou na vida, deve ter um Bar da Lôra. Se não tem um Bar da Lôra tem um Bar da Baixinha. Se tiver os dois você está de parabéns. Se não tem nem um nem outro, já sabe né, você provavelmente foi criado tomando leite com pera.

Meu Bar da Lôra favorito é um que frequento desde a época de estudante. Fica ali nos arredores do Maracanã. Um sobrado antigo, de fachada alongada, espremido entre dois edifícios bregas supostamente mais modernos. A decoração da parte interna conta com azulejos em xadrez azul e branco  “em parede meia”. Paredes cuja metade de cima não vê um ademão de tinta há tanto tempo que já não é possível lhes definir a cor. As mesas são de aço, daquelas que fazem barulho quando a gente bate o copo. E, o mais importante, a cerveja está sempre muito gelada.

A lôra fica circulando de mesa em mesa. Vez ou outra ela ergue a cerveja da camisinha e sacode. Se estiver vazia, ou quase, ela substitui por uma nova automaticamente. Não precisa nem pedir. Se o cliente questiona, ela oferece um petisco com toda educação e polidez . Persistindo a negativa ela traz a conta. E se você por ventura entrar numa de – não espera aí , só um minuto, estamos decidindo – ela, mui respeitosamente, aponta o ponto de ônibus e diz - o lugar de conversar é ali.

Hoje eu entendo a lôra. Nós éramos um bando de estudante duro que ficava empacando uma mesa, principalmente em dia de futebol, quando o bar estava botando gente pelo ladrão. É que na verdade nós ficávamos fazendo hora até dar o intervalo do jogo quando íamos para o Maracanã tentar entrar de graça. Quase sempre dava certo, desde que o estádio não estivesse lotado.

Nesse tempo era necessário toda uma engenharia financeira para viver esses momentos de lazer e felicidade. Eu dava calote no ônibus, economizava o vale transporte e o vendia num açougue lá em Curicica com deságio de vinte por cento. Dessa complexa operação saía a grana para almoçar no bandejão de 1 real e para bancar a cerveja de quarta e sexta. Ocasiões onde eu dividia a conta com cidadãos igualmente abastados. Cansamos de ser expulsos do Bar da Lôra até a gente descobrir o Altino. 

Altino, moleque boa pinta de São Cristóvão, estudante de engenharia no curso noturno da UERJ. Tinha porte de jogador de vôlei, esguio, dorso bem marcado, bronzeado, braços muito fortes e compridos. O rosto geométrico ornado com cabelos cacheados perfeitamente desalinhados. Os cílios alongados e o olhar firme lhe davam ares de árabe. Colar de contas, roupa despojada. O cara era presença, há de se admitir. Quando a lôra vinha em nossa direção o Altino, vulgo Tino, abria o sorrisão:

- Só um minutinho meu amor, a gente já vai pedir outra.

Ao que ela respondia.

- Ai moreno, assim você me quebra.

O melhor foi o dia que o Tino saiu para ir ao banheiro e ela veio nos expulsar.

- Já deu né rapaziada? Cerveja de vocês está dando dengue aí.

- Calma, cara. A gente tá esperando o Tino.

- Quem?

- Ele - respondi apontando a porta do banheiro.

Corta para o Tino saindo do WC masculino com seu andar de mestre-sala. A lôra ficou estatelada enquanto aquele acontecimento cinematográfico vinha em sua direção.

- Vai me expulsar Lorena? - Lorena era o nome da lôra, dizem.

Malandro.... Deu tela azul na lôra. Ela encarou o Tino por quase um minuto. Colocou uma Brahma na mesa.

- Saideira, por minha conta.

O BAR INTEIRO olhou pra gente. A lôra nunca tinha dado um centavo de desconto para NINGUÉM desde que tinha herdado o bar de seu pai. O portuga morreu de alegria em outubro de 1970 quando o Vasco deu de 5 x 1 no Santos dos recém campeões mundiais Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Pelé e Edu. Eu não me canso de contar essa história e até hoje um total de zero frequentadores do Bar da Lôra acredita em mim. Mas juro que aconteceu, tenho testemunhas.

A gente fechou o Bar da Lôra na despedida de solteiro do Tino. E isso é tudo que posso publicar sobre este dia. 



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domingo, 15 de agosto de 2021

Mineiro falando mal de queijo

Dois dos cinco leitores desta coluna queixaram-se comigo da baixa produção no mês que se passou. Escrevi pouco mesmo. Ocorre que passei uns dias exilado em Minas Gerais. Ultimamente, sempre que possível, tenho fugido pra roça. Ando preferindo canário e bem-te-vi a essa gente que não respeita o distanciamento na fila do açougue do Mundial. Diga-se de passagem, entrar na fila do açougue tem se tornado um privilégio.

Em Minas sinto um acolhimento ímpar, comparável talvez ao que sinto na Bahia. Saudades da Bahia.... Esse meu bem-estar mineiro é compreensível: papai veio de lá. Então estar em Minas é estar na casa de meus avós. Sinto um pertencimento incomum em cada ladeira, em cada rua coberta de pedras, em cada sombra de montanha das Gerais. A minha ligação com a Bahia segue um mistério, talvez coisa de uma ancestralidade ainda mais antiga, vai saber.

Quando peguei a Estrada Real, em retorno ao Rio, passei num queijeiro conhecido e comprei algumas peças. Voltar de Minas é assim, a bagagem é sempre maior na volta que na ida. Um docinho de leite aqui, uma pinga acolá, uma linguiça e tal. Quando você vê tem que comprar malas extras. Leva-se sempre um pedaço de Minas no retorno, mais parecido com casa de vó impossível.

 Pois bem, deixei um dos queijos comprados na viagem com papai. Uma semana depois, em uma ligação telefônica, ele me questiona:

- Onde você comprou aquele queijo que você deixou aqui?

- No Airton lá de São João.

- O Airton filho da Isadora?

- Esse mesmo.

- Airton desaprendeu a fazer queijo?

- É,  eu também achei que ele errou na mão de sal dessa vez?

-Errou foi muito. Esse queijo tá horrível. Ruim, muito ruim.

- É...

- Ó... sozinho não dá pra comer, salgado demais. Pra tira-gosto também não presta. Tentei ralar pra fazer pão de queijo num deu também. Ele se esgulepa todo, num rala direito. Com doce de leite estraga o gosto do doce. Botei no angu, talhou o angu. Botei de recheio no pastel, na hora de fritar o pastel pocou todo, quase que me queima. Fiz outro dia aqui um doce de laranja da terra, aquele azedim que você gosta sabe?

- Sei

- Num casou o gosto também. Botei no pão e coloquei na chapa pra derreter, num derreteu, ficou borrachento. Tentei comer com sopa de abóbora, tirou o gosto de abóbora da sopa de abóbora. Esse queijo é tão ruim que nem com goiabada combina. E olha que eu testei com duas goiabadas, aquela de corte a outra derretida, não prestou com nenhuma. Sua mãe quis botar no quindim, não deixei. Outro dia o filho da Genésia veio aqui. Coloquei na mesa pra ver se ele comia. Cê sabe que o fi da Genésia parece frieira, come de tudo...

-Sei...

- Pois é, o fi da Genésia só provou. Você já viu o fi da Genésia só provar alguma coisa?

- Não.

- Pois é. Só provou. Num dá. O danado do queijo é ruim, ruim mesmo. Horrível. Ruim demais da conta. Ruim, ruim, muito ruim.

- Oh, meu pai... Você me desculpa, eu vou reclamar lá com o Airton. Joga esse queijo fora que levo um outro pra você no fim de semana.

- Jogar fora? Cê tá doido? Agora só resta um tiquim, vou acabar de comer ele.





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domingo, 18 de julho de 2021

Celulares


Outro dia o meu amigo Juliano me enviou um áudio puto da vida. Os áudios de zapzap que o Juliano passa quando está com raiva são o que há de mais hilário  desde a primeira edição da Escolinha do Professor Raimundo em 1957. Ele estava enfurecido com sua filha caçula que havia perdido o iphone no Pão de Açúcar. Pão de Açúcar o supermercado, não o Pão de Açúcar pão de açúcar.

 Ao que eu respondi:

- Corolho Juba! Foi fazer o quê nesse mercado de playboy?

- Promoção de cerveja Lapa.

- Atá.

Daí ele mandou outros nove minutos de áudio dizendo que a pequena era irresponsável, desatenta, que não dava valor pra nada, bla-bla-blá. Eu falei pra ele pegar leve com a menina que é só uma adolescente. 

Eu que sou quarentão vivo perdendo celular. Enquanto existiu o hábito de sacar dinheiro eu perdia ao menos um aparelho por ano deixando  em cima do caixa eletrônico. Só nessa modalidade de esquecimento foram incontáveis desde a época do Nokia tijolão.

Já na era do smartphone o primeiro que perdi foi na praia. Saí com ele na mão, quando alcancei a calçada o deixei sobre um banco pra poder limpar o pé sujo de areia e lá no banco ele ficou. Outro caiu do bolso da camisa social direto no vaso sanitário do consultório da pediatra do meu filho. Eu até superei o nojinho e resgatei o aparelho, mas ele não voltou a funcionar. Teve um que perdi para um assaltante na linha 247 altura da rua 24 de maio.

Teve também o que eu perdi no meio da pancadaria que foi a final da escolha do samba do Império pro carnaval de 2019, esse é o único que assumo a culpa, pela perda, não pela confusão. O último perdi quando fui tomar vacina da gripe, na verdade não perdi, eu deixei cair. O coitado quicou 3 vezes na calçada do posto de saúde de Vista Alegre e ficou com a tela parecendo um mosaico árabe. Como obra de arte ficou até bonito, só não tem mais utilidade.

Depois desse longo relato o Juliano me perguntou:

– Quantos desses era iphone Lapa?

 – Nenhum né parceiro, você também nem parece suburbano. É supermercado Pão de Açúcar, iphone pra filha, os caraio a quatro... Deve tá comendo nutella com pão francês da Padaria Majestosa.

Depois dessa enquadrada ele decidiu voltar no supermercado. Ao que parece, esses aparelhos tem um localizador superpotente. Lá ele achou o celular todo espatifado no estacionamento:

 – Lapa, aquela marmota deixou o celular cair na hora que entrou no carro, daí eu passei com a roda por cima dele, inacreditável... - Mais 8 minutos hilários de áudio que eu não posso reproduzir aqui por se tratar de um blog de família. Ou quase.

Uma semana depois o Juliano me manda uma foto de um iphone e um áudio todo contente:

- Lapa, não dá pra acreditar. O Amigo lá de Lucas trocou a tela do iphone que eu passei com o carro por cima. Zero bala. PQP! Esse senhor Stivie era foda mesmo.

Ok Juba, só não me chega na pelada de quinta-feira lá do Engenho de Dentro dizendo que acha o Stivie Jobs foda. É pro seu bem. Por favor.



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domingo, 4 de julho de 2021

Ressaca - Uma crônica pra você que escolhe vacina.

No Réveillon de 96 para 97 eu tive a maior ressaca de minha nada mole vida. 

Na década de noventa era costume no subúrbio carioca a gente remover a coroa do abacaxi, sacar o miolo, amassar a popa até a fruta ficar meio que oca. Tá ligado? Daí a gente preenchia o buraco formado com vinho de garrafão, uns cubos de gelo e vráuuuu mandava pra dentro.

Pense num trem doce! Abacaxi de verão, comprado naqueles caminhões com placa de Marataízes – ES. O sabor vem apurando por 408 km na BR 101 até chegar na feira de domingo na Praça Seca. Você mistura com aquele vinho tinto suave comprado a granel no Castelo do Pechincha, gelo pra kct, duas folhinhas de hortelã. Eu, mlk piranha do subúrbio, mal saído das fraldas... Caí matando. Antes do dia raiar eu achava que quem ia morrer era eu.

Cara, eu vomitei muito. Muito. A expressão “botar os bofes pra fora” foi inventada em minha homenagem. Me lembro até hoje de vomitar uns grãos de  arroz pintados de roxo, roxo do vinho tá ligado? Olha. Me veio a memória... deu... deu até uma ânsia aqui...
....

Eita!
...

Espera.
...

Gente do céu, vocês não sabem como eu passei mal. Em 1997 eu não comi arroz, não aguentava olhar. Vinho idem. Não que eu tenha virado abstêmio. Até jurei que não voltaria a beber, mas fiquei sem álcool só até o São Sebastião, afinal há de se manter a tradição de embriaguez em feriados católicos. Bebi cerveja e tal, pois vinho não descia. Fiquei sem beber vinho até a vinda do outro século. E só voltei a beber por conta de um rolo com uma mina de Mauá, mas isso é tema de outra crônica.

Voltando ao Réveillon de 96 para 97. Olha... Eu fiquei mal. E o pior não foi nem a araponga na minha cabeça ou a sensação de estar dentro de uma máquina de lavar. O pior foi que eu não parava de vomitar. Eu vomitei tudo que havia comido desde o desmame. Vomitei as vísceras, a vida, a dignidade, por fim eu estava vomitando vácuo. Tá ligado vomitar vácuo? Seu corpo dói, você se contrai todo, abre a boca não sai nada. Nada. Nem arroto... Nem o ar dos pulmões. Nada.

E eu fazia um som esquisito, fazia um - RôôôôôôÔÔÔÔÔÔÔÔôoooo..... – Bem grave.

Na época aquele filme do exorcista estava na moda nas locadoras. Começaram a olhar esquisito pra mim.

Minha tia convenceu minha mãe a chamar o pastor. Foram bater na casa dele, mas o sujeito estava curtindo o fim de ano em Garatucaia. Procuraram o padre, mas ele estava muito ocupado para atender gente de minha laia. Sobrou para Dona Lucinha, rezadeira e mãe de santo de um terreiro lá perto de casa.

Estava eu a questionar o sentido de morrer em plena juventude quando Dona Lucinha adentra ao quarto. Ela vestia uma camiseta branca com uma imagem da sagrada família:  Jesus, Maria e José. Calças pantalonas igualmente brancas e bem vincadas. A cabeça adornada com um turbante, nas orelhas um par de argolas douradas.

Se aproximou de mim. Como era bonita a Dona Lucinda! As sobrancelhas erguidas, os olhos levemente puxados, o nariz arrebitado. Me olhou com ternura e sorriu com sua boca grande e dentes muito alvos. Sentou ao meu lado na cama. Foi no pé da minha orelha esquerda e sussurrou com uma voz que parecia a da Íris Lettieri:

- Você bebeu né meu filho?

Ao que eu tentei responder, mas a voz não quis sair. Meio que por fraqueza.  Meio que por receio dela ser o anjo enviado para me levar dessa pra melhor.

Dona Lucinha me fitou nos olhos novamente. Se aproximou da minha orelha direita dobrando-se sobre meu corpo. Senti um geladinho dos seus colares a roçar meu pescoço.

- Tá tudo bem, vai passar, quem tá contigo é mais forte.

Levantou-se e foi embora. Ainda pude ouvir sua voz dizendo a minha mãe:

- De espiritual não tem nada. As tripas e o baço é que já não servem mais pra muita coisa. Dê chá de carqueja ao menino.

Foi o que me valeu.

Aquilo sim foi uma ressaca.

Agora vocês aí com medinho de ressaca de vacina. Tome tento minha gente! Como faz falta uma havaiana cantando no lombo de vocês viu?

Tomei a minha primeira dose de vacina essa semana. Tive ressaca? Sim claro. Delícia.

Uma moleza... Febrezinha de trinta e sete e meio (convenhamos que nem é febre)... Tomei uma dipirona e fui dormir feliz da vida por ter sido dispensado da lavagem da louça.

Não tá bom?

E ainda fiquei repetindo para meus anticorpos enquanto o sono não vinha:

- Marquem a cara desses filhos da puta! Marquem a cara deles...


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domingo, 20 de junho de 2021

Meu amigo Vasco


Meu amigo Vasco é... botafoguense, ora vejam vocês. Como todo botafoguense ele é botafoguense doido, mas acometido de um tipo peculiar de doidice. Não é aquele doido, doido. É um doido tipo zen. Quando comuniquei a ele que o Botafogo tinha acabado ele se limitou dizer – a gente acaba mas renasce Lapinha. Quem conhece sabe que otimismo não é lá um adjetivo que se aplica aos botafoguenses.

Ele disse isso porque é budista. Mas  não do tipo mala vegano  mindfulness do Jardim Botânico via Praça São Salvador. Não mesmo. O Vasco, o botafoguense zen, é negão cria da baixada. Conheci Vasco num... pagode? Errrrrrrou! O Cara é Rock’n’rol sinistro. Aliás esse é a única característica mala dele. Pois toda pessoa que só ouve um gênero musical tem um quê de mala. Mas tudo bem, ninguém é perfeito.

Voltando ao Vasco, o botafoguense zen negão do rock, eu o conheci no Bar do Carlão. O Bar do Carlão existiu nos idos dos anos noventa. Ficava numa sobreloja da rodoviária de Piabetá do lado esquerdo de quem chega. É bom informar de que lado era, pois do lado oposto tinha um outro boteco com umas jukeboxes tocando Raça Negra, frequentado por cobradores, motoristas, auxiliares administrativos, farmacêuticos e senhoras rechonchudas pouco vestidas e muito maquiadas.  

O Bar do Carlão era bem mais sombrio que este. O pouco de luz que tinha era âmbar e se dissolvia no ar, que era um tanto... sólido. Havia um telão que ficava projetando os clipes das mais variadas bandas de Rock. De Pink Floyd a Nirvana, passando por Queen, The Clash, Pearl Jam e tudo mais. Rolava uns Blues de vez em quando, Rock Nacional e até uns Pop, desde que fosse no nível do Michael Jackson. Esse era o tempo áureo do videoclipe, não havia internet e ter uma coleção de VHS era o único jeito de consumir esse tipo de coisa se você estivesse de saco cheio dos VJ’s paulistas da MTV. Os trunfos do bar do Carlão eram seu rico acervo e sua brilhante curadoria, além da cerveja barata e sempre muito bem gelada. Pouca gente sabe mas há uma cena Rock bacana na Baixada Fluminense, com boas bandas locais. Frutos de lugares com o antigo Bar do Carlão, que sucumbiu ao advento da era digital.

Muitas foram as madrugadas gloriosas no Bar do Carlão, mas nenhuma delas se compara ao aniversário de vinte e um anos do Vasco. Aquilo é que foi comemoração! Um amigo nosso, cujo nome sou impedido judicialmente de citar, subiu na mesa ao som de “Like a Virgin”. Nunca mais o Carlão voltou a tocar Madona. Isso lhe custou uns clientes. Um outro colega iniciou uma banda de rock nesse dia. Nossa amiga Fabiana, professora de literatura, levou seu aluno nerd para uma Kombi estacionada na frente da rodoviária e explicou pra ele umas músicas do Willie Dixon que os Stones gravaram. E pelo visto ele aprendeu direitinho, pois ela saiu gritando aos quatro ventos - Eu peguei o gordinho! Gostosooo! Estão casados até hoje, têm três filhos e um gato chamado Mick. Nessa noite outros dois matrimônios se iniciaram e um total de cinco outros se desfizeram, dois dos quais de um mesmo sujeito.

 A gente estava de fato empenhado em acabar com a cerveja do bar. Lá pelas quatro da manhã cada um que levantava para ir ao banheiro, ao voltar, não achava mais a sua cadeira. O Carlão recolheu uma a uma. E a gente ficou ali bebendo de pé, porque bêbado não tem simancol. Cortaram o som, a gente ficou cantando e batucando na mesa. Mas aí sabe como é. Não dá pra fazer rock batucando na mesa... Em poucos minutos a gente estava cantando: Cheia de mania... Sabe que é gostosa... Dig Dig Dig ê... O Carlão trouxe meia dúzia de Brahma, colocou sobre a mesa e disse – A Saideira. Ao que a gente perguntou quem havia pedido e ele respondeu – EU!

Devidamente expulsos do Bar do Carlão a gente ficou vagando pelas ruas. Alguém deu a ideia de pegar o trem descendo para ir ver o sol nascer na praia. Eu não topei, pois a praia era muito longe e não ia dar tempo de eu levar o pão para a minha mãe fazer o desjejum antes de ir à igreja. Então pegamos o trem subindo e fomos parar na cachoeira acima da Bica da Rainha. Levamos uma garrafa de conhaque de excelente qualidade  adquirido no Cu da Mãe. Nos vimos em condição ideal para discutir Lacan e recitar Haroldo de Campos. Nessas mesmas águas o Vasco iniciaria um romance por conta de um crustáceo e um beliscão na bunda.


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domingo, 6 de junho de 2021

Dissimulada

Quando eu estava no segundo grau (as crianças de hoje conhecem como ensino médio) a professora de literatura decidiu fazer um trabalho diferentão sobre o livro que estávamos lendo: Dom Casmurro. Talvez o mais famoso clássico de nossa literatura, obra prima do Bruxo do Cosme Velho, que era mulatinhou que nem eu.

Funcionava assim: seria organizado um julgamento da Capitu para decidir se ela pulou ou não pulou a cerca. Rolou um sorteio dos personagens, coube à Beatriz, patricinha da turma, interpretar a Capitu, achei adequado. O papel de Bentinho coube ao Fabio, grande goleiro do time de futsal campeão do intercolegial em 97 e 99, vice-campeão  em 98. Desse dia em diante Fabio passou a se chamar Boi. Charles Augusto, vulgo Amendoim, seria o juiz e assim por diante. Quem não ganhou um personagem compôs o júri. E aquele julgamento virou o assunto da escola.  

A este cronista coube o papel de promotor, ora vejam vocês. O time da promotoria tinha três integrantes. Além do Lapinha aqui, o grupo de acusadores era formado pelo Edson, cujo nome  na verdade era Everaldo, mas que a gente chamava Edson porque ele era de Edson Passos. Tremenda figura. Sabe o engraçadão da turma? Aquele que mal abre a boca e todo mundo já tá rindo? Pois é, esse era o Edson. A gente jurava que ele ia virar VJ da MTV ou personagem da Escolinha do Professor Raimundo. Mas hoje ele é tenente no 12° GBM-RJ, é a vida.

Completando o nosso  trio de ataque estava a Glória, Oh Glória..... Glorinha era a, com o perdão da palavra,  gostosona da turma. Quantos naquela escola não sonharam noites a fio com os caracóis dos cabelos da Glória? Quantos não se afogaram no navegar de ancas que era o andar de Glória? Glória, Glorinha.  Não se sabe o paradeiro dela hoje em dia. A última notícia que tivemos dizia que ela tinha se casado com uma cantora de carimbó e ido morar em Miracema, onde iniciou um negócio de queijo artesanal. Quem sabe?  

O “julgamento” seria no fim do semestre, ao longo do qual, fomos nos aprofundando na história. Ao término de uma aula, onde a professora descreveu o comportamento paranoico do Bentinho, o Edson virou pra mim e disse:

– Fudeu! A gente não ganha essa parada de jeito nenhum, a Capitu é na dela! O Bentinho é pirado!

Daí eu decidi fazer um curso expresso de direito. Duas disciplinas: 20 horas assistindo o Programa do Ratinho e um pouco mais de 2 horas assistindo “Advogado do Diabo” no Supercine. Aprendi rapidamente que eu não tinha que procurar a verdade. Eu precisava ganhar o júri. E a gente ia ganhar pelo entretenimento.

Foi o que fizemos no dia do julgamento, enquanto a acusação debatia trechos enfadonhos do romance, nós fizemos um espetáculo. O Edson levou o júri às lagrimas, de tanto rir obviamente. Um verdadeiro show de comédia, vocês hoje em dia chamam de stand up, hilário, inesquecível. A gente nunca voltou a rir tanto num único dia.

A Glorinha fez uma reconstituição dos crimes da Capitu, encenando brilhantemente num figurino clássico, com decotão e olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Impecável!. Foi aplaudida de pé pela turma, incluindo a professora, que acenou positivamente com a cabeça. 

Além de bolar essa estratégia marota, eu cuidei de interrogar as testemunhas. Inclusive o Escobar, ironicamente homônimo de seu personagem, principal testemunha da defesa, que fora devidamente subornado. Me custou um mês inteiro de Gummy e cerveja barata traficada do bar do João, lá do Cu da Mãe. Sim a gente era de menor e tomava uns gorós. Não façam isso crianças.

Resultado? 

Lavamos a égua. Capitu condenada por decisão unânime do júri. Mas... Sempre tem um mas. Mas eu assisti o Advogado do Diabo e não entendi nada. O filme é sobre poder e vaidade. O poder no caso de nossa turma era representado pela professora. Que é um ser humano tal como qualquer outro. E o ser humano invariavelmente tem vaidade. E a vaidade começa quando o diabo chega no ouvido e sopra: - Você vai deixar?

Aí malandro, não interessa o que está escrito no regimento, tampouco se é professora, juiz ou general do exército. A pessoa que exerce o poder não aceita perder. E vai decidir agir de acordo com suas inclinações morais, estéticas, políticas, ideológicas. Haja o que hajar – como se diz no Norte Fluminense.

A professora levantou-se e disse que ia entrar com um recurso. E entrou. E fez ela mesmo a defesa! E intimou a turma a mudar de ideia!! E o júri mudou o veredicto!!! DE FORMA UNÂNIME!!!

Nesse dia aprendi muito sobre a justiça.


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domingo, 23 de maio de 2021

Alagoinhas


Eis que após 53 anos a final do Campeonato Baiano vai ser entre dois times do interior. Meu querido BahÊa deu esse mole e a final disputada hoje será entre o outro Bahia, o de Feira de Santana, e o Alético de Alagoinhas, atual vice-campeão.

Daí lembrei do tempo que passei em Alagoinhas, quando eu acordava cedo para correr em volta do Carneirão, casa do time local. A cidade do interior baiano é simpática, quente que só a moléstia e com pernilongo a dá com pau. Para dormir era ar condicionado no 15, repelente no corpo inteiro e moletom. Ainda assim um dia eu acordei com uma picada no dedo pé. Você já levou picada de pernilongo no dedo do pé? Em Alagoinha tá tendo.

Mas não me leve a mal, a cidade é realmente bacaninha. O centro é bem movimentado e possui avenidas largas. No meio das quais há uma praça arborizada com poucas, porém boas opções de restaurantes. Lembro bem de um que ficava num casarão antigo, todo cor-de-rosa, com um lindo quintal arborizado, só a ambientação já valia a conta, eles serviam uma galinha a cabidela absolutamente espetacular.

Outra coisa boa que comi lá foi, pasmem, sushi. Explico, é que o Toquinho, que viajava comigo, uma certa noite insistiu em comer comida japonesa. Eu tentei argumentar dizendo que enquanto eu estivesse na Bahia eu jantaria acarajé TODAS AS NOITES. Não adiantou. Então eu disse que a gente estava a 100 Km do litoral, a 1.000 Km de um atum vivo e a 10.000 Km de um salmão fresco. Não adiantou, Toquinho é um cara bom de argumento. E lá fui eu comer sushi em Alagoinhas e, para minha surpresa, estava perfeito, delicioso. O mundo realmente está globalizado. Mas ainda prefiro acarajé.

Daí teve uma tarde de quinta-feira, quando estávamos voltando do trabalho de Uber, por uma via onde a gente sempre passava. Só que nesse dia o transito não andava. Ficamos ali parados um tempão até que o motorista se virou e disse.

- Vocês se importam se eu for pelo “blablabla” - disse lá o nome do bairro que não me lembro.

- O que houve amigo?

- É que estourou um cano aí na frente, a prefeitura interditou, se a gente insistir aqui vai demorar.

- Vai na fé piloto.

Ele pegou um desvio por dentro de uma favelinha. Subiu um morro, ziguezagueou por umas vielas e desceu devagar. Devagar porque acho que todos tiveram a mesma ideia e engarrafou a saída da quebrada. Quase chegando no pé do morro eu vejo um sobrado cujo térreo tinha duas lojinhas, divididas por uma parede. De primeiro se dizia – de parede meia uma com a outra. Uma das lojas era ocupada por uma Igreja Deus é Amor. Um irmão de terno na porta, lá dentro umas senhoras de cabeça baixa cantando – Foi na cruz, foi na cruz....

A loja exatamente ao lado era... uma zoninha.

Zoninha, zona, cabaré, castelo, bordel, tá ligado?

DE-PAREDE-MEIA-COM-A-IGREJA-DEUS-É-AMOR-MANO-DO-CÉU!

Zona, zona mesmo, luz vermelha na porta, leão de chácara, umas meninas de shortinho, barriguinha proeminente num quase topless (tinha tipo um pompom no mamilo). Elas ali, animadas, mandando beijo para os passantes, e o leão de chácara batendo um papo com o irmão, porteiro da igreja ao lado.

- Olha isso Toquinho.

Toquinho olhou e soltou uma gargalhada – Rapaz o cara tem que tomar cuidado para não errar de porta.

Ao que o motorista disse:

- Isso é Bahêa pai.

Daí fica a dica: se você for em Alagoinhas comer sushi é de boas, mas se for para rezar... preste atenção aonde entra.

Se o Bahia de Feira vencer, na semana que vem conto da vez que estive em Feira de Santana, com direto a escala em Máru-Máru, terra de Dona Canô.




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domingo, 16 de maio de 2021

Beijaço



O Prefeito do Rio tá aí no twitter prometendo beijaço no fim do ano, visto que, segundo ele mesmo, todos os cariocas estarão vacinados nesta época. Longe de mim acreditar em promessa dessa gente, mas fica a torcida, não por ele né, pela vacinação. Acontece que, ouvindo esse papo furado, me bateu uma saudade do último beijaço que participei, lá se vai o tempo.

Pra vocês aí menines que não conhecem o termo beijaço, diz-se do evento onde você sai beijando indiscriminadamente quem vier a topar “haja o que hajar”, como se diz no Norte Fluminense. O meu derradeiro foi justamente num réveillon.  

Era eu um jovem universitário e fui convencido a passar o fim de ano numa cobertura da tia de alguém. Apartamento que diziam ser quase em Botafogo onde quase dava para ver os fogos de Copacabana. Mas que no fim das contas era quase no Catete e dava pra ver muito bem o apartamento do prédio horroroso que tinha bem em frente.

A cobertura era tão grande quanto velha. E era bem grande, um duplex. Duplex sempre dá problema, pior que isso só tríplex. Tirplex dá impeachment, Fiat Elba também. A festa tinha um buffet com umas comidinhas sofríveis provavelmente compradas em uma padaria de reputação duvidosa. A música era muito alta e mal equalizada. O banheiro era um horror, fizeram uma dedetização mas esqueceram de recolher as baratas mortas. O acesso ao banheiro se dava por um corredor onde havia um quarto alugado para uma senhora já um tanto senil e surda que abria a porta e olhava sinistramente toda vez que a gente passava – Na moral, dava medo de ir mijar.

- Mas o que tinha de bom nessa festa Lapinha?

Tinha nós. Tudo que nós tem é nós ué (eu soube disso antes do Emicida). Principalmente quando se é jovem, todo mundo bonito, sem um puto no bolso, mas com hormônio para dar e vender. Umas meninas maneira, todas lindas vestidas de réveillon, com umas cintura de gente nova, umas pele que nunca viram um renew. Uns cara engraçados, todos bonitões estufando o peito que nem ganso, não tinha um que fosse careca, um ou outro gordinho, uns gordo bonito com cara de bom vivant.

E também tinha... cerveja. Pausa para explicar uma coisa. Presta atenção. Era muita cerveja. Cerveja barata, óbvio. Eu nem conhecia cerveja cara nessa época e era muito feliz por isso. Mas era muita, era a produção mensal da Ambev para meia dúzia de gato pingado. Eu jamais voltaria a ver tanta cerveja junta na minha vida. E olha que eu já frequentei cada balbúrdia... Na boa, alguém errou muito na conta. Pegaram a nossa grana, economizaram no buffet zuado da padaria e no apartamento caído emprestado da tia, mas torraram tudo em cerveja. Era muita. Uma quantidade colossal de cerveja. Um absurdo. Era muita, muita cerveja. De verdade. Eu mal te conheço, mas eu sei que você nunca viu tanta cerveja junta porque era impossível juntar tanta cerveja assim para um evento. Acredite em mim.

- E daí Lapinha? Para de enrolar, já entendi que era muita cerveja. Fala do beijaço.

E daí caro Leitor que eu comecei a beber quando cheguei no evento, cheguei antes do pôr do sol porque disseram que ia ter piscina. Não vou comentar aqui o estado da piscina tá... Basta dizer que ninguém entrou. Nós fizemos a primeira "no pool" party do Rio de Janeiro. Enfim, cheguei cedo, comecei a beber igualmente cedo e muito antes da meia noite, tanto eu quanto os demais, já estávamos loucos e com dente quebrado. Quer dizer, com o dente quebrado só eu mesmo, mas louco todo mundo estava. Essa história do dente quebrado eu conto depois, já que você está interessado mesmo é no beijaço.

Ocorre que, quando se aproximava a hora da virada, o Leandro, que era o promotor do evento, abaixa o som pega o microfone e fala:

- Galera vamo indo pra Copa que daqui a pouco começa os fogos.

- Coroio mané, Copa é longe pra cacete.

- É logo ali pow.

- E as cerveja?

Pausa para eu te explicar, criança, que o tal do bêbado tem um compromisso moral com a cerveja. Não importa a quantidade, o bêbado só tem paz quando acaba a cerveja. Daí teve um princípio de confusão até que apareceu um isopor gigante. A gente encheu o isopor de cerveja e partiu rumo a Copa.

A ideia original era cada um carregar um pouquinho se revezando de par em par. Mas geral adiantou o passo e sobrou pra o Leandro, promoter da festa, o Robson, primo dele, o Ricardo, meu parceiro de curso e, obvio, esse cronista que vos fala. Daí já na altura de Botafogo, estávamos eu e meu parceiro Ricardo a carregar o tal do isopor, quando tive a brilhante ideia:

- Cadim...

- Qual foi Lapa?

- Vamo aliviar esse peso aí bro.

- Como?

- Vamos distribuir essa porra.

Ricardo, vulgo Cadim, muleque piranha de Olaria, olhou pro lado, vinha uma mina...

- Aew, quer cerveja?

- Quero - respondeu a moça.

- Então me beija.

Beijou.

E assim fomos nós, distribuindo cerveja e beijo pelo aterro do Flamengo, coisa linda de se ver. A gente beijou gatinha, baranga, patricinha, nem, tiazinha, vovó, mamãe com bebê no colo... quem quisesse cerveja a gente beijava. As vezes era um selinho tímido, as vezes era um beijão daqueles de cinema, era beijo de todo tipo. O Robson beijou até um cara.

- Corolho Robim, você tá ligado que acabou de beijar era um cara né?

- Tô sim Lapa. Beija benzão ele, bicho!

Vida que segue.

Com um tempo a gente se deu conta que naquele ritmo ia chegar em Copacabana dali a quatro réveillons. Fizemos sinal para um ônibus, lotado. Dispensamos aquele e pegamos o seguinte que estava só meio cheio. Entramos carregando aquele volume todo, geral no coletivo olhou pra nossa cara, eu anunciei.

- Senhoras e senhores passageiros, desculpa incomodar o silêncio de sua viagem, é que a  gente tá trazendo aqui a promoção da cerveja. É quase de graça, a gente está trocando por beijo. Beijou levou na promoção.

- Como é que é moreno? 

Me Perguntou a cobradora que era a cara da Alcione na foto de capa do LP “Alerta Geral” de 1978. Põe no gugou.

- Beijou levou - respondi. 

A danada desceu da cadeira, ajeitou a roupa,  me segurou pela nuca e me deu um beijo com o qual sonhei anos a fio. Não é que ela tirou meu ar... ela tirou meu espírito, amassou e devolveu. A galera do busão aplaudiu de pé. Ainda ganhei uma apalpada na bunda, não sei ao certo se foi a cobradora. Depois disso a gente distribuiu cerveja pra geral no ônibus. Na hora que a gente desceu até o motorista pegou três latinhas “para beber mais tarde”. Ele esperou a gente descer, fechou a porta, abriu uma, engatou a primeira e partiu.

Pegamos outro coletivo, só que no sentido oposto. Era para reabastecer o isopor. Ficamos nesse trajeto Copacabana x Catete distribuindo amor, cerveja e beijo, não sei muito bem por quanto tempo. Tem um lapso de memória aí.  

Lembro somente de acordar com um barulho de campainha tocando. Abri a porta era um garçom com uma bandeja.

- Seu sanduíche senhor.

- Sanduíche?

- O Senhor não pediu um misto quente?

- Misto?

- Esse não é o apartamento 405?

- Olhei para a porta... É... 405.

- Então. Um misto quente e uma coca-cola, apartamento 405 – disse o garçom mostrando uma comanda.

- Desculpa meu amigo... que lugar é esse?

- Como assim senhor?

- Onde que a gente está?

- Hotel Ibis Macaé, Senhor.

- MacaéÉÉÉÉÉÉ!!!



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domingo, 9 de maio de 2021

Jorginho


Ano é 1984, estamos em Vila Inhomirim, distrito de Magé, cidade de grande importância política e econômica na época do Império, mas que entrou em profundo declínio desde que, a mando do presidente Floriano, teve sua população massacrada pelo exército brasileiro. Os poucos que sobreviveram testemunharam os saques e estupros em praça pública promovidos por uma horda de valorosos soldados brasileiros, patriotas e cumpridores de ordens. O episódio ficou conhecido como “Os Horrores de Magé” põe no Gugou.

Daí o tiro de misericórdia foi a construção da BR-040 cujo traçado redesenhou a Estrada Real deixando ao largo os distritos mageenses e os transformando numa espécie de “Radiator Springs”. Põe no Gugou também. De lá para cá, o município tornou-se cidade dormitório da classe operária.

Depois desse grande e desnecessário contorno histórico (mas que vinha entalado na garganta deste cronista), voltemos à 1984, na Vila Inhomirim, onde conheceremos o menino Jorginho. O bairro em questão tinha a rua principal, onde estava o comércio, e as transversais, onde moravam as pessoas. Essas transversais dividiam-se em terços. O primeiro terço ia da rua principal até a pracinha, era calçado por paralelepípedos e habitado pelas pessoas mais “ricas”. Ricas entre aspas, pois o conceito de rico era morar em uma casa com acabamento na fachada, se tivesse automóvel era milionário, se tivesse automóvel e telefone era semideus.

O segundo terço da rua não tinha calçamento, terra batida e casinhas, em sua maioria, sem reboco na parede. Lá morávamos o menino Jorginho e eu, éramos vizinhos. Este terço empobrecido de rua ia da pracinha até a rua do valão. O valão em 1984 não era assim tão valão quanto é hoje. Ainda era meio valão e meio córrego. Uma espécie de moribundo condenado à morte. Mas que ainda tinha sapos, piabas, barrigudinhos, cascudo, acará e muçum, além de garças e martim pescador. Isso porque, na década de 80, embora o esgoto de toda rua fluísse in natura para ele, eram poucas as casinhas e o fluxo d’água do córrego dava conta de apurar a podridão.

Quase que eu não falo do último terço da rua, aquele lá depois da rua do valão. Parceiro, os pobres que moravam depois da rua do valão eram aqueles pobres que a gente que era pobre apontava e falava assim – Caraca mané, nós não pode ser pobre que nem eles não! Pai, namoral, vai fazer serão aí, mãe arruma mais uma lavagem de roupa que te ajudo! Pelo amor de Jesus! - Essa piada não é minha, é do Afonso Padilha, mas eu achei que caía bem nesse contexto.  

Quando chovia o valão se vingava e devolvia toda a sujeira para a rua, não poupava ninguém, nem o terço pavimentado. O pedaço que a gente morava virava um atoleiro, pra sair a gente tinha que colocar sacola no calçado, calçado no singular, porque era o único que tinha mesmo. Daí vinha o sol da Baixada Fluminense, muitos mosquitos e alguns dias depois o atoleiro virava megapoças.  As megapoças iam secando até virarem charcos de lama povoados de girinos agonizantes. É justamente aí que vamos achar o pequeno Jorginho, em sua inocência de menino de 3 anos, sendo feliz chafurdado no lama até o pescoço. Nesse tempo os meninos bricavam na rua. Mesmo porque ninguém que tivesse um automóvel se aventurava a passar naquele trecho da rua. O único veículo que passava era o caminhão do lixo a cada quinzena. Passava só até o valão, porque depois do valão vocês sabe né? Só foi conhecer um veículo motorizado em 1994 dias depois do gol “nana neném” do Bebeto.

Crime também não tinha. Afinal todo mundo conhecia todo mundo. Inclusive os poucos ladrões de galinha. Lembro de uma vez que o meu pai me levou na casa do sujeito, bateu palmas no portão – Olha só meu camarada, eu sei que vocês vivem aí muito mais do que na merda, mas isso não te dá o direito de invadir o meu fumeiro e roubar a minha banda de leitoa, ou você arruma um jeito de me pagar, ou eu vou na delegacia dar parte – dias depois o filho desse senhor deixou um par de marrecos lá em casa. Estava eu todo feliz já querendo degolar os bichinhos, ao que meu pai advertiu – nem perca seu tempo que daqui uns dias o verdadeiro dono vem buscar – dito e feito.

Voltemos ao Jorginho chafurdado na lama, batendo os pezinhos feliz da vida. A cada batida voavam um naco de lama e cinco girinos. Quando Dona Rosemeri viu o filho naquela situação sentiu um arrepio a lhe percorrer a espinha.

- Jorge Henrique Fernandes do Santos Junior sai daí agora!

Catou o menino pelos braços, entrou com ele pelo quintal, arrancou-lhe as roupas e o mergulhou no tanque de lavar roupas. Banho de água fria para aprender. E ralhava furiosa com o menino, que chorava aos berros. O escândalo foi tamanho que chamou atenção de toda a vizinhança.

- Não bate no menino que ele ainda é pequeno Rose.

- Não tô batendo Dona Maria, tô escovando, esse danado estava pulando nessa poça aí da rua.

- Jesus Maria José! Vai pegar verme!

Dona Rosemeri deu no pequeno um banho daqueles. Cinco ademãos de sabão de coco. Talco antisséptico em todas as esquinas.  Vestiu o menino com agasalho para diminuir a friagem. Penteou-lhe cuidadosamente o cabelo repartido ao meio. Na falta de um vermífugo deu ao pequeno uma boa colherada de Emulsão de Scot. Ao que o menino voltou a chorar. Quem foi criança na década de 80, ou antes, conhece bem o motivo do choro.

- Chora, chora mesmo Jorginho, mas vê se aprende – disse a mãe – Agora que quero ver você ir lá e pular naquela poça de novo.

O menino engoliu o choro assustado, acenou com a cabeça, saiu pelas portas dos fundos, atravessou o quintal, ganhou a rua e pulou obedientemente na poça.

 


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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...