quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Meu ideal seria uma história de Natal


Meu ideal seria escrever uma história de Natal. Mas não uma história de Natal melodramática, que causaria comoção e reflexão, disso este ano já está cheio. Eu queria escrever uma história de Natal bem engraçada, mas tão engraçada que a minha amiga que mora no Cachambi com oito gatinhos risse, risse tanto que chegasse a ter dores abdominais. E que então ela ligasse, sim ela não mandaria mensagem, ela ia telefonar, habito hoje em dia só se justifica por muita urgência ou necessidade, pois ela ia ligar não para um, mas para dois amigos só para contar a minha história. E eles também iam rir muito. E todos, inclusive ela mesma ficariam espantados por ver minha amiga do Cachambi rir tanto. E a minha história seria um fio de esperança para ela que anda doente pois viveu dias terríveis em 2020.

 

E minha história chegaria a um casal que estivesse muito aborrecido um com ou outro, pois se magoaram imensamente nos últimos meses. E a mulher ia ler a minha história e rir, o que causaria grande raiva no marido. Mas que quando ela contasse minha história para ele, ambos rissem juntos, como há muito não faziam. E decidissem conversar, e cada um a seguir o seu caminho. E encontrassem cada qual seu quinhão de felicidade na vida. E que daqui uns anos lembrassem um do outro com ternura. E que tivessem boas memórias de um amor que um dia foi eterno.

 

E que minha história se espalhasse somente pelo subúrbio. Porque ela seria tão repleta de clichês e lugares comuns que não faria o menor sentido fora daqui, sequer na Tijuca a entenderiam. Mas que em algum botequim em Quintino alguém contasse a minha história e todos rissem, e alguém nesse botequim ia ficar tão feliz que pagaria uma rodada até para os mendigos da rua. E que num salão em Santíssimo a manicure tirasse um bife de um dedão de uma senhora por não conseguir controlar a gargalhada. E a senhora de cujo dedo o bife fora tirado não chegasse a sentir dor, de tanto rir de minha história de Natal. E que na rodoviária da Pavuna um motorista ouvisse a minha história e decidisse abandonar a profissão – mas que diabos, eu não gosto mesmo de dirigir! Então ele voltaria para sua cidade no Sul de Minas e passaria a viver de contar histórias aos turistas.  

 

E que aos poucos minha história de Natal iria se espalhar pela Baixada, e seria contada de mil formas diferentes, mas que em todas elas minha história guardasse o humor, a surpresa e a leveza. E em Nilópolis ela fosse atribuída a um camelô do trem, em Edson Passos a um pastor da igreja Maranata, em Mesquita diriam tê-la ouvida de um radialista e na Chatuba jurassem que ela fora traduzida do mandarim por um dono de pastelaria. E em um Natal desses  minha história chegaria a um pescador bem pobre e bem velho em Suruí, e ele ficaria tão feliz ao ouvi-la que diria – em todos esses anos eu nunca ouvi uma história tão engraçada, ela só pode ter sido inventada pelo João lá do Cu da Mãe.

 

E um dia minha história ia chegar ao meu pai, que me ligaria na mesma hora para contar, e me perguntaria se por acaso eu conhecia o autor daquele causo. E eu diria que uma história assim tão boa e tão estapafúrdia só poderia ser uma versão mal feita de algum cronista famoso do século passado. E eu esconderia humildemente a verdade para sempre: que eu inventei toda a minha história de Natal após um gole de pinga, quando pensei na tristeza da minha amiga doente, que é louca dos gatos, e que mora no Cachambi.



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domingo, 20 de dezembro de 2020

Bolo quente


Casa de vó, fim de tarde, criança para todo lado no jardim, bolo no forno, todo cenário para a mais absoluta paz e harmonia. Mas nem tanto. Iniciei uma discussão ferrenha com ela por conta de: bolo quente.

Explico, o bolo quente está no ápice de sua gostosura. É perfeito. Macio, tenro, sai aquela fumacinha que carrega todos os aromas. Os sabores explodem na sua boca. Sente-se a manteiga, o leite, o açúcar. A pessoa sente até a brisa da hora que o grão de trigo foi colhido.  Mas mamãe tem uma regra:

- Não pode comer bolo quente que dá dor de barriga.

- Dá o que mãe? Isso não faz o menor sentido.

- Espera amornar... Vai te dar piriri.

Esse “espera amornar” só serve para o bolo perder 40% de seu sabor, e no verão do Rio isso demora quatro séculos e meio para acontecer.  Grande perda de tempo.

- Vocês se formam, leem, viajam e começam a achar que o conhecimento dos antigos é só crendice.

- Não apela mãe.

- Então come, você tem quarenta anos, é pai de família, sabe de tudo né? Come então.

- Mãe não é isso.

- Agora eu quero ver você comer.

Comi.

O que tenho a dizer é que o bolo estava simplesmente espetacular. Mamãe tem mãos de fada, era uma broa de milho fofinha. Por cima uma casquinha quase imperceptível de queijo. Gotas de goiabada salpicadas no meio da massa numa proporção diminuta, no ponto de incrementar a doçura sem roubar o protagonismo. Um café para acompanhar, olha... Vocês estão vendo que estou me esforçando, mas não dá para descrever a delícia que foi comer aquele bolo quentinho. 

O que também não dá para descrever é a sensação de fraqueza e vazio que sinto após passar quase duas horas e meia sem me levantar da privada. Além de todos os fluidos, a dignidade e a macheza abandonaram por completo o meu corpo. Acho que tive um pequeno desmaio e fui acordado por mamãe que bateu a porta do banheiro e disse:

- Formou na federal né filho? Sabe de tudo esse meu menino.



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sábado, 12 de dezembro de 2020

Curitiba sabe


Hoje lembrei de Curitiba. A última vez que estive na cidade fui com o amigo Luiz Carlos. Moleque bom, cria da Vila do João. Ainda existia horário de verão então sempre dava tempo de turistar ao fim do expediente. 

Pausa para dizer que o horário de verão é  mais uma das perdas que a gente vem empilhando ultimamente. 

Um dia a gente foi ouvir Bossa Nova no lago da Pedreira Paulo Leminski, onde fica a Ópera de Arame. No outro uma corridinha no Barigui. Café com banoffi no Alto da XV. Cerveja na Vicente Machado. E assim fomos mapeando a cidade. 

No último dia fomos comer pierogi na feira do Água Verde. Local animado e de rara autenticidade. Estava até rolando um batuque:

- E esse pagode aí negão?

- Dá pro gasto Lapinha.

- E eu que pensava que São Paulo era o túmulo do samba.

- Não tem mais isso parceiro. É tudo nosso.

Saímos da feira já tarde, fomos caminhando na esperança de achar um outro boteco aberto. Quando passamos pela praça do Japão o Luiz Carlos me diz:

- Puta que pariu mas essa cidade...  É Praça do Japão, Bosque Alemão, Portal Italiano. Cadê a homenagem dos preto?

Na hora eu pensei em responder que o período pós lei áurea foi marcado por políticas de embranquecimento da população que trouxe imigrantes europeus aos milhares dando-hes condições de formar o que hoje se conhece como classe média no sul e no sudeste. Enquanto isso os descendentes dos africanos escravizados eram varridos para debaixo do tapete social. Mas daí eu estaria ensinando Padre Nosso ao vigário.

É fato que existe, há pouquíssimo tempo, um memorial da Imigração Africana, no Pinheirinho em Curitiba. É fato também que ele não consta nos roteiros turísticos. As jardineiras passam longe de lá. É fato também que o nome do monumento está errado, pois não houve imigração africana, houve diáspora, para se dizer o mínimo.

Há também uma ou outra  homenagem modesta na região central. Modesta porque, enquanto cidade Curitiba foi do nada a um importante entreposto tropeiro após a construção do complexo de casarões do Largo da Ordem. Conjunto urbano cuja grandeza foi viabilizada pela técnica de madeira e taipa trazida por construtores africanos escravizados. Tempos depois, Curitiba foi de entreposto tropeiro à grande cidade graças à abertura da Estrada Graciosa e da construção da Ferrovia Paraná-Paranaguá. Ambas obras da engenharia dos irmãos Rebouças.  Baianos que nasceram escravos, foram forros e tornaram-se os maiores urbanistas de seu tempo.

Mas, voltando ao meu passeio noturno com o amigo Luiz Carlos.  Após sua indagação eu fiz uma longa pausa em silêncio, olhei para os arredores. Uma parede de edifícios guarneciam as ruas perfeitamente paralelas, uma muralha que se estende até onde a vista alcança. Esse pedaço da cidade, tão bem arquitetado, te faz acreditar que a vida urbana é uma possibilidade real.  Lembrei de Enedina, primeira mulher formada engenheira no Brasil, curitibana e negra.

- Duvido que tenha um prédio desse que um preto não tenha colocado a mão pra levantar parceiro.

- Vai vendo... A gente sabe. Eles também.


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domingo, 29 de novembro de 2020

Imprevisto

 


É curioso, mas do mundial de 86 eu não guardo memórias do pênalti perdido pelo Galo. Talvez minha cabeça rubro-negra sequer cogite a hipótese de registar que nosso maior jogador um dia possa ter falhado tão miseravelmente. Desta copa guardo duas lembranças. A primeira é da fúria que senti quando perdi num jogo de bafo a figurinha do Careca. A segunda vem da perplexidade dos adultos na sala ante o jogo Argentina e Inglaterra e da voz resoluta de meu tio Pedro:

- Não tem como ganhar desse cara.

Esse cara era Diego Armando Maradona. Neste momento voltei minha atenção para o jogo e nunca mais tirei. Pois menos de quatro minutos depois vi Maradona driblar um time inteiro e marcar o segundo gol. Desse dia em diante o colecionador de figurinhas tornou-se torcedor de futebol. O jogo seguinte, Argentina e Bélgica, transformou o torcedor de futebol em amante da técnica, do drible e da imprevisibilidade que só este jogo é capaz de produzir. O futebol nasceu em minha vida pelos pés de Maradona.

Quatro anos depois eu era o menino mais empolgado no mundo assistindo o Brasil e Argentina da copa da Itália. O gol do Caniggia decretou um silêncio sepulcral na sala quebrado somente pela minha declaração:

- Calma gente.  Não tem como ganhar desse cara.

Ao que papai respondeu.

- Era o que me faltava, um filho argentino.

Papai não sabia que naquele momento eu não estava sendo argentino, eu estava sendo Maradona e fazendo aquilo que de mim não se esperava.

O que Dieguito fazia com pé esquerdo não se esperava que ninguém pudesse fazer, nem com o direito, nem com ambos. Quando se esperava respeito aos ingleses, ele lhes afanava a carteira e vencia. Quando nada esperava-se dos italianos do Sul, ele os fazia triunfar sob os narizes de Milão. Quando em 94 diante da vergonha, esperava-se silêncio e resignação, ele denunciava a ganância da FIFA, que impunha partidas ao sol do meio dia para garantir o horário nobre da TV europeia. Quando dele esperava-se um comportamento de ídolo, Maradona se entregava ao mais mundano dos vícios.

Vá com Deus Dom Diego. E obrigado por me ensinar, que nesse mundo frígido da austeridade e da tecnocracia, o sonho e a fantasia são as armas mais eficazes. 



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sábado, 31 de outubro de 2020

Dia de Feira


O ano é 2019, estamos na feira da Ribeira, Ilha do Govenador, Zona Norte do Rio.  Feira, feira. Feira de subúrbio, com peixeiro, açougueiro, padeiro, amolador de faca. Bertalha, almeirão, cheiro verde, couve, chicória. Aipim do Rio do Ouro, banana da terra, batata calabresa no saquinho. Goiaba, goiabada, cuscuz, carambola, manga. Aquele frango amarelo - é de quintal – sei. Aquela tia que moi pimenta e cominho na hora. Aquele sujeito que fica para lá e para cá vendendo limão e alho. Caldo de cana, samba, cerveja, chouriço, cadeira de plástico, pula-pula, escorrega inflável e o escambau.

São 10:42 da manhã, o chafariz azul e branco da Praça Iaia Garcia dispersa água e luz. Ele é o epicentro da feira e ao seu redor há um conjunto de bancos de característica bem peculiar. Os pés em semicírculo apoiam um encosto compartilhado por dois acentos. Um voltado para o meio da praça, o outro para o conjunto de árvores antigas, um tanto retorcidas, que delimitam o largo.  

Em um desses bancos Juliano amarra os cadarços da pequena Leonora. Ambos exibem orgulhos a camisa de seu clube. 2019 foi um ano mágico para o Flamengo. Ele termina de arrumar os calçados da menina e avista um amigo dos tempos de escola. Luiz Everaldo, vulgo Farol. Juliano, sem pensar duas vezes, canta em voz alta:

- O pneu furou... 

Luiz Everaldo vira-se sorrindo:

- Sifudê Juba!

- Falaê Farol. Beleza?

Os dois se abraçam, a menina observa curiosa.

- Seu time tá um nojo em Juba?

- Vamos ganhar tudo esse ano parceiro.

Luiz Everaldo dirige-se a menina:

- Bonita essa camisa de vocês. Mas sabia que seu pai aí já beijou o escudo do meu Vascão?

- Mentira... – retruca a menina.

- Beijou ou não beijou Juba?

Juliano olha para filha, a menina enruga a testa:

- Você fez isso papai?

Corta para Niterói, 1994, quadra do Complexo Esportivo do Barreto. 

Os alunos do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, da Freguesia, na mesma Ilha do Governador, encontravam-se em êxtase. O seu time de futsal chegara às finais estaduais do JEEP: Jogos Estudantis das Escolas Públicas. Superaram vinte times, dentre os quais, francos favoritos, como o colégio de aplicação da UFRJ, o Colégio Militar e por aí vai.

O escrete da ilha jogara o ano todo com uniformes improvisados. Pegaram a camisa do colégio e desenharam o número nas costas com fita isolante. A professora de artes teve sua maior alegria em 14 anos de magistério. Os shorts eram todos brancos, mas cada um com um estilo. Tinha desde folgadão a la NBA a modelos mais, digamos... ousados, vide Fluminense 1992. 

Contudo para a grande final o Professor Lélio,  treinador genial formado em educação física pela Universidade Castelo Branco, correu o mundo, incomodou um monte de gente,  até que conseguiu o contato de um cara. Esse cara tinha um cunhado que era sócio do Vasco. O cunhando desse cara conhecia um cara, que conhecia um outro cara, que era amigo do roupeiro do time de base da colina. Daí a molecada pôde disputar a final adequadamente vestida.  

Final na casa do adversário, pressão total, torcida enlouquecida. Mal se ouvia o apito do árbitro. Jogo duro 1 x 1. Há pouco menos de dois minutos para o fim Juba faz uma tabela linda com Farol, que avança e bate cruzado. O goleio adversário espalma, mas a bola rebatida volta aos pés de Juba. Provando a tese de que a bola procura os predestinados.

- Ladrão! – Grita o professor Lélio.

Juba, num giro, livra-se do marcador. A bola sobra na canhota. Ele é destro. Ou pelo menos era até esse momento da vida. O chute sai com perfeição, a meia altura, indefensável. O time da casa não tem como reagir. 

Acabou! 

A equipe do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes vence o JEEP do Rio de Janeiro, edição 1994. 

Todos se abraçam, o professor Lélio cai em lágrimas. A torcida da ilha, num total de oito pessoas (tinha que pegar três ônibus), invade a quadra. Juba erguido nos ombros do goleiro Lorena (o nome era Marcus Vinícius, mas o apelido era Lorena, isso é papo para outra crônica), voltando... Juba, erguido como herói, olha para o peito, camisa branca, faixa preta na diagonal, 3B-Rio, do lado esquerdo uma cruz de malta vermelha...

Corta para 2019, feria da Ribeira, 10:58 da manhã, a menina aflita, o pai com um sorriso indecifrável...

- Beijei filha. Beijei mesmo. E em termos de futebol é o maior orgulho que eu tenho.


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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Celestino

José Celestino Antônio da Anunciação, o seu Celestino. Baiano veterano com quem trabalhei há alguns anos. Tinha a pele castanha, cobreada. Os cabelos absolutamente brancos, novelo de algodão. Os olhos profundamente azuis. Sorriso largo, fala breve, figuraça. 

Foi com seu Celestino que aprendi a dirigir. A gente estava em uma fazenda em Maracangalha - sim Maracangalha da música: eu vou pra Maracangalha, eu vou... pois eu fui.  - enfim, a gente estava em uma fazenda em Maracangalha, ele levou a pálio pro meio do pasto.

- Você vai dirigir hoje.

- E se eu bater em alguma coisa?

- Conversa rapaz, nem árvore tem nessa zorra, vá logo!

Sentei no banco do motorista,  ele no carona com a mão apoiada no freio de mão. Não tinha onde eu bater, mas baiano velho nunca dá mole.

- Pise na embreagem, ponha a primeira e solte de vagar.

- Mas qu...

- Embreagem é o da esquerda. A primeira é que tem o um... ó pra cá... um, dois, três... tá vendo? Vá!

Pisei no pedal, olhei pro câmbio...

- Pra frente miséra... Olhe pra frente! Você tem que olhar pra contar de um até cinco é?

- É....

- É nada. Olhe pra frente, pise na embreagem, ponha a primeira e solte devagar.

O carro deu um tremelique, engasgou e morreu.

- DEVAGAR MISÉRA! Solte devagar.

Em algumas semanas eu estava acelerando na BR. E seu Celestino ao meu lado:
 
- De vagar miséra! Aprendeu outro dia já pensa que é Nigel Mansell.

Até hoje quando vejo uma placa de limite de velocidade eu ouço a voz do seu Celestino - De vagar miséra!

Aprendi muitas outras coisas com seu Celestino. 

Aprendi a diferença entre siri mole e siri catado. A distinguir brega, arrocha e forró. Aprendi a fazer o dejejum com carne de sertão, inhame e puba. Aprendi a negociar. A observar e ouvir antes de falar. A curar resfriado com conhaque de alcatrão, mel e limão. A nunca pedir pra alertar nada do cardápio. Aprendi a só confiar em quem assume seu sotaque, seja qual for. A tomar cerveja na sexta e chá de carqueja na segunda. 

Conheci a moqueca de sernambi e o restaurante da Roquinha. Conheci Santo Amaro - terra de dona Canô. Conheci a Avenida Sete. O Rio Vermelho. A praia do Forte. Madre de Deus. Bom Jesus dos Pobres. Arembepe.

Graças a ele eu sou o segundo carioca que mais ama a Bahia. O primeiro é um amigo meu de Lucas que é casado com uma baiana. Que além de ser baiana sabe fazer pãozinho delícia. Aí realmente não tem como. 

Pausa para explicar pãozinho delícia. 

Pense no melhor brioche que você já comeu na vida. Não chega nem perto. Mesmo que tenha sido na França. Se você nunca comeu brioche parabéns pela falta de frescura. Mas então imagine.

O pãozinho delícia é absolutamente leve, incompreensívelmente macio. Tem uma casca fininha, delicada, coberta por uma poeira de queijo ralado. Ele deve ser tirado do forno um minuto antes de assar totalmente. Pois o pão delícia perfeito tem que ser ao ponto pra mal. Servido ainda quente. Você parte, a fumaça sobe, você passa manteiga e o que acontece quando você põe na boca é indescritível.

Uma vez eu estava com seu Celestino no Pelourinho e um sujeito veio nos importunar. Ele queria nos amarrar no braço uma fitinha do Senhor do Bonfim. Isso equivale a escrever na testa: TURISTA. Seu Celestino olhou nos olhos do sujeito:

- É o QUÊ! Vai amarrar fita em braço de baiano!?

- Desculpe, desculpe...

Funciona sempre. Outro dia eu estava na feira do Largo da Ordem em Curitiba. Vejam só. Um cara queria a todo custo me vender um pastel de pinhão. Olhei pra ele:

- É o QUÊ! Vai amarrar fita em braço de baiano!?

- Desculpe, desculpe...

Uma vez a gente estava comendo um acarajé no Largo de Itapuã. No meio da conversa percebi que ele estava incomodando com placa da barraca ao lado.

- O que foi seu Celestino?

- Ó pra isso. Punheta virou bolinho de estudante.

- Como é que é?

- Esse doce... que pra mim nunca prestou... sempre se chamou punheta... agora mudaram o nome só pra vender pra paulista.

- Pra carioca não?

-  Não precisa. Carioca é descarado igual baiano. 



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sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Raiz

 

Raiz, é assim que os locais chamam o bairro de Raiz da Serra, em Magé. Um pequeno povoado cravado no vale que marca o início da subida da Serra da Estrela, cujo cume abriga a cidade de Petrópolis. A montanha, coberta pela mata atlântica, ladeia o bairro num formato de concha, os dias de ventania são frequentes. Algumas décadas se passaram desde a última vez que estive lá, mas eu fecho os olhos e ainda consigo ouvir o som do vento marinho contornando os paredões. Um mantra entoado pelas árvores e suas bromélias. A reza só é interrompida pelo trem, a ferrovia corta o bairro ao meio. Na minha infância a gente podia marcar a hora pelo apito – Quando descer o das dez eu passo na sua casa!  

Meus avós moravam numa das vilas de funcionários da Fábrica de Pólvora da Estrela. As casas eram separadas por um gramado dos muros baixinhos perfeitamente caiados pelos recrutas. Foram pensadas iguaizinhas, mas com o tempo, os moradores iam personalizando suas varandas. Uma tinha samambaias, outra begônias. Numa, cadeiras de vime, na outra um redário.

A dos meus avós, por ficar na esquina, era uma das mais diferentes. Ao adentrar o terreno avistava-se a casa à esquerda, no alto de um pequeno aclive. Como todas as outras era branca de janelas azuis. Aos fundos uma horta – tinha até aipim –  o limite do quintal era marcado por uma cerca viva, geometricamente podada pelo meu avô, jardineiro de profissão. Na frente um corredor de margaridas brancas marcava o limite da calçada.  A gente atravessava a rua, passava pela escolinha e chegava ao rio. Era uma festa.

É nesse lugar que está plantada minha raiz. Falar de raiz, para um sujeito de pele marrom feito eu, é muito complexo. Já sofri racismo tantas vezes quanto ouvi – Ah, você não é preto. Com o tempo me acostumei, a depender do fórum eu sou visto como branco ou como preto. Uma vez ouvi a professora ‎Lilia Schwarcz dizer que o órgão que vê é o olho, mas o que enxerga é a cultura. Contudo, por muito tempo olhei para o cara que aparece no espelho e perguntei:  quem és tu cara-pálida? Pois essa conversa fiada é para contar a vocês como encontrei a resposta.

A minha lembrança mais remota, a primeira que tenho da infância, vem desse quintal das margaridas. Eu e meus primos batucando com gravetos nas latas de leite e cantando para  a fúria de minha tia Maria Celeste:

- Dona Celestina, me dá água pra beber. Se você não me der água. Vou falar mal de você...

Por algum motivo ela detestava essa música, saía de tamanco na mão atrás da gente – Já falei pra não cantar isso peste! – E minha vó caía na gargalhada – Corre muriquinho! Corre, que hoje ela pega vocês!

Eu não devia ter quatro anos de idade, mas esta memória me vem com absoluta clareza. Pois é isto: a minha primeira memória é um jongo do Guineto. Sacou? Se eu não for preto parceiro, ninguém mais é.




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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Manga Rosa

Cês tão ligados naquelas manga rosa graúda? Aquelas quase do tamanho de um melão, com a casca bonita em tons de verde e rosa que só se acha em supermercado da Zona Sul? Pois é, alguém da logística do CEASA deu um mole e veio parar uma dessas aqui no subúrbio. Comprei né. Era tão pesada que quase tive que parcelar no cartão o hortifrut da semana.

Chegando em casa é aquela desgraça né, passa álcool em tudo lava o escambau, ninguém aguenta mais esse ano de 2020. Tô vendo a hora de ter que comprar um autoclave. Acho que cabe ao lado da máquina de lavar. Mas então. Arrumei aquela fruteira bonita, mal coloquei na sala, meu muléqeui:

- Papai qué manga.

- Claro meu filho.

Olhei para ele, olhei pra manga, cortei um terço dei pra ele. O muléqui comeu daquele jeito voraz que deixa qualquer pai orgulhoso.

- Papai qué mais manga.

- É o que?

- Mais manga papai.

E lá se vai o outro terço.

- Papai mais manga.

- Tá me zuando?

- Mais manga papai. Mais

O muléqui COMEU A MANGA TODA! – E daí? Me perguntaria você meu caro leitor. E daí que eu medi com uma fita métrica. Não cabe! Não cabe uma manga dessas de playboy da Zona Sul na barriga do meu garoto! NÃO  CABE. Mas coube.

- Papai qué banana.

- Ah ou, para de olho grande.

- Banana papai, qué, qué, QUÉ Banana.

- Não

- Buaaaaaaa! Banana!

A mãe:

- Comeu aquela manga toda?

Eu: 

- Sim

A mãe:

-  Tá de pirraça. Dá um biscoito que ele esquece.

Lá vai um biscoito, dois, três... QUATRO.

- Papai qué banana!

- Vai passar mal.

- Banana papai, banana.

- Olha só, eu vou te dar, se não comer vai ficar ruim pra tu.

Abriu um sorriso. Comeu! CO-ME-UÔ!!! Sem o menor esforço.

Fiquei boladão né. Coloquei em observação. Passaram-se três horas. Já correu, já jogou bola, já brincou com o baby shark, já destruiu mais um carrinho, já leu um livro. E tá aqui agora pedindo janta.

 - Senhores é oficial, temos um buraco negro.



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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...