sábado, 12 de dezembro de 2020

Curitiba sabe


Hoje lembrei de Curitiba. A última vez que estive na cidade fui com o amigo Luiz Carlos. Moleque bom, cria da Vila do João. Ainda existia horário de verão então sempre dava tempo de turistar ao fim do expediente. 

Pausa para dizer que o horário de verão é  mais uma das perdas que a gente vem empilhando ultimamente. 

Um dia a gente foi ouvir Bossa Nova no lago da Pedreira Paulo Leminski, onde fica a Ópera de Arame. No outro uma corridinha no Barigui. Café com banoffi no Alto da XV. Cerveja na Vicente Machado. E assim fomos mapeando a cidade. 

No último dia fomos comer pierogi na feira do Água Verde. Local animado e de rara autenticidade. Estava até rolando um batuque:

- E esse pagode aí negão?

- Dá pro gasto Lapinha.

- E eu que pensava que São Paulo era o túmulo do samba.

- Não tem mais isso parceiro. É tudo nosso.

Saímos da feira já tarde, fomos caminhando na esperança de achar um outro boteco aberto. Quando passamos pela praça do Japão o Luiz Carlos me diz:

- Puta que pariu mas essa cidade...  É Praça do Japão, Bosque Alemão, Portal Italiano. Cadê a homenagem dos preto?

Na hora eu pensei em responder que o período pós lei áurea foi marcado por políticas de embranquecimento da população que trouxe imigrantes europeus aos milhares dando-hes condições de formar o que hoje se conhece como classe média no sul e no sudeste. Enquanto isso os descendentes dos africanos escravizados eram varridos para debaixo do tapete social. Mas daí eu estaria ensinando Padre Nosso ao vigário.

É fato que existe, há pouquíssimo tempo, um memorial da Imigração Africana, no Pinheirinho em Curitiba. É fato também que ele não consta nos roteiros turísticos. As jardineiras passam longe de lá. É fato também que o nome do monumento está errado, pois não houve imigração africana, houve diáspora, para se dizer o mínimo.

Há também uma ou outra  homenagem modesta na região central. Modesta porque, enquanto cidade Curitiba foi do nada a um importante entreposto tropeiro após a construção do complexo de casarões do Largo da Ordem. Conjunto urbano cuja grandeza foi viabilizada pela técnica de madeira e taipa trazida por construtores africanos escravizados. Tempos depois, Curitiba foi de entreposto tropeiro à grande cidade graças à abertura da Estrada Graciosa e da construção da Ferrovia Paraná-Paranaguá. Ambas obras da engenharia dos irmãos Rebouças.  Baianos que nasceram escravos, foram forros e tornaram-se os maiores urbanistas de seu tempo.

Mas, voltando ao meu passeio noturno com o amigo Luiz Carlos.  Após sua indagação eu fiz uma longa pausa em silêncio, olhei para os arredores. Uma parede de edifícios guarneciam as ruas perfeitamente paralelas, uma muralha que se estende até onde a vista alcança. Esse pedaço da cidade, tão bem arquitetado, te faz acreditar que a vida urbana é uma possibilidade real.  Lembrei de Enedina, primeira mulher formada engenheira no Brasil, curitibana e negra.

- Duvido que tenha um prédio desse que um preto não tenha colocado a mão pra levantar parceiro.

- Vai vendo... A gente sabe. Eles também.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

3 comentários:

  1. Bacana demais meu amigo. Porrada de leve no talento e mais pouco de aula de história e cidadania. Ah...a Estrada (Serra) da Graciosa é um espetáculo!!!

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  2. Mano, que texto!!
    Consta inclusive que era no Largo da Ordem que os escravizados insubordinados eram castigados. Daí o nome.

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  3. Muito bom elessadre!
    Aula de cultura. Parabéns por levantar o tema com leveza.
    Um abraço Cláudia

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