sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Encaixe



Outro dia tive que ir numa consulta médica no Pólo Um. Ninguém que seja  do subúrbio do Rio necessita de explicação a respeito do que vem a ser o Pólo Um. Aos demais, eu não vou conseguir explicar o Pólo Um numa crônica. Na verdade talvez eu consiga, mas eu não vou nem tentar por pura preguiça e canalhice.


Me limito a dizer que tudo de importante que acontece em Madureira e que não envolva samba ou macumba acontece no Pólo Um. 

Voltando à questão da consulta,  fosse eu um bom filho, teria dado ouvidos aos avisos de meu pai:

- Médico que aceita encaixe é a pior estirpe de ser humano que pode existir na face da terra.

E então, cancelado a consulta no momento em que a secretária propôs - quinta feira só encaixe senhor, vai querer?

Mas lá fui eu, na quinta, conforme combinado. Fui recepcionado pela secretária de péssimo trato pessoal. Sim, porque para esse tipo de médico ter uma secretária grossa e estúpida é condição sine qua non de existência.

- Encaixe, né? - falou me olhando sobre os óculos - identidade e carteirinha do plano.

Entreguei e fiquei de fronte a ela. Na verdade meio que de lado porque o corpo e a atenção dela estavam voltados para o Vale a Pena Ver de Novo que rolava na TV. 
E lá fiquei eu, de pé, fitando a secretária, que fitava a TV. Até que ela voltou a me olhar por cima dos óculos:

- Vai sentar criatura.

Eu ia retrucar,  mas o tom dela me lembrou tanto minha professora da segunda série que sentei,  acovardado. E lá fiquei. E esperei, mas como esperei!

Acabou a time line de todas as minhas mídias sociais. E o stories dos amigos, e dos amigos dos amigos, e dos famosos, e dos famosos que eu nem gosto, e dos famosos que eu nem conheço.... E ela chamou o primeiro dos oito odiados que dividiam a sala de espera comigo.

E a bateria do celular em 15 por cento, e não para de chegar gente. E eu já nem sei meu lugar na fila. E leio a mesma reportagem pela terceira vez. E termino de ler os livros atrasados, e compro novos, e leio os novos, e bate uma fome desgraçada e vou lá falar com a fera.

- Você sabe se tem muita gente na minha frente ainda?

- O Sr sabe que é encaixe né?

- É mas... eu queria fazer um lanche...

- Se eu te chamar e você não tiver aqui vc vai pro fim da fila.

- Mas eu não tô de encaixe?

Daí ela parou de me responder. E parou de me olhar. Só tinha olhos pra a TV. O vale a pena ver de novo tinha acabado e passava um Datena desses da vida, não o original, mas um desses genéricos. Pense no que é um Datena genérico!

E toca o telefone. E ela dá um esporro num coitado  qualquer. E nem me olha.  E chega outra pessoa. E eu vou sentar humilhado.

E aquela última que chegou entra no consultório. E todo mundo olha puto pra secretaria. Ela sem tirar o olho da TV:

- É sobrinha dele.

E ficamos só eu e outros dois abnegados na fila. E ela na TV. Já tava quase na hora da Maria da Paz. E chega mais um, engomadinho, arrastando uma mala. Representante de farmacêutica óbvio. O sexto do dia. O sexto a furar fila. E chega outro paciente. E entra também. E eu começo a questionar o sentido da vida. 

O cara ao meu lado. Fiel e mudo companheiro desde as três da tarde, desiste de esperar. Minha fome também desiste e vai embora do jeito que havia chegado. Até a secretária desiste de ver TV e começa a jogar Candy Crush. Eu sei que é Candy Crush porque ela gosta de jogar com som alto.

Eu estou há um segundo de decidir entre atingir o nirvana ou cometer haraquiri quando, de súbito, ela me chama. 

Adentro o consultório:

- Boa noite, como posso te ajudar?  

Disse o médico sorridente.

Antes que eu responda, toca o telefone. Ele atende.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional



segunda-feira, 3 de junho de 2019

Zen

Há, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um magnífico bambuzal. A touceira cresceu de forma circular deixando ao meio uma clareira, cujo chão forrado de folhas, é um convite a mais leniente das sonecas. Quando os bambus se tocam, sob ação da brisa, ouve-se uma gostosa cantiga de ninar.

Tal soneca, porém é impossível. Não se pode sentar ao chão sob as árvores do jardim botânico. Deitar então, imagina. Assim como não se pode correr pelas alamedas (exceto se você for sócio e vir fora do horário aberto ao público geral), entrar com pets, fazer piquenique, etc. São tantas medidas civilizatórias que qualquer dia desses hão de proibir a entrada de seres humanos.

Uma vez encontrei lá no bambuzal uma turma fazendo aula de meditação. Meditação de pé pois, lembre-se, não se senta no chão do jardim botânico. 

A turma era composta por duas professoras da rede municipal aposentadas. Um jovem casal de Botafogo que achou legal vir de pijama. Três alunas da PUC - todas elas se parecem com a Malu Magalhães. Um cara barbudo, despenteado de bermuda e camisa social – dizem que isso se chama hipster. Um militar reformado cuja barriga começou a ser cultivada nos tempos da ativa e sua esposa toda trabalhada na plástica – sabe quando o rosto não combina com o corpo? Duas suburbanas risonhas, meio deslocadas, uma delas grávida. E um cara com pinta de triatleta.

A professora de meditação, uma senhora de meia idade magrinha e bem branca,  orienta a turma dizendo que a cada intervenção deve-se entoar o mantra Om. Sabe qual é? Aquele que faz – Oooooooom... Tipo o Malabi da TV Colosso. Pois bem, a professora dizia:

- Ouçam a sua respiração.

E a turma:

- Oooooooom...

- Ouçam o som de seu coração.

- Oooooooom...

- Sintam a brisa e o som das Árvores

-  Oooooooom...

Um bem-te-vi canta ao longe e a professora pega a deixa:

- Fiquem atentos ao som da natureza.

- Oooooooom...

Toca-se uma buzina na Pacheco Leão.

- Desliguem-se do mundo material e das preocupações cotidianas.

- Oooooooom...

Ouve-se outro bem-te-vi, agora em dueto com uma cambaxirra.

- Atentem-se a beleza do tempo presente.

- Oooooooom...

- O passado e o futuro são ilusões de nossa mente.

- Oooooooom...

- Para o módulo avançado do curso de meditação acesse nossas redes sociais com a hashteg "esse cronista não faz merchandising".

- Oooooooom...

- Respirem fundo.

- Oooooooom...

- Alinhe os ombros.

- Oooooooom...

A brisa sopra, o bambuzal canta, suave melodia.

- Aos poucos sua freqüência cardíaca vai baixar.

- Oooooooom...

- Relaxe os músculos da face.

- Oooooooom...

- Sua respiração vai ficar mais fluida.

- Oooooooom...

- Sintam a toxicidade deixar seu corpo

- Oooooooom...

Então, furtivamente, o que se houve da professora é uma estrepitante flatulência.  Em termos menos eruditos: Mano do céu! A professora mandou um peido sinistro! E então, sem ruborizar:

- As vezes a toxicidade se materializa e sai do corpo em forma de gases.

- Oooooooom...


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sábado, 16 de março de 2019

Março

Amor não vai dar pra sair
A cidade está de ressaca

Eu sei você avisou
Você não gosta dos meus excessos
É reincidente eu sei
Mas não vai dar pra sair
A cidade está de ressaca

Amor você viu como foi o verão?
Eu sei, a gente não devia ter tomado tanto sol
Eu sei, este ano, o calor foi um exagero
Deu no que deu
É verdade você avisou
Mas, não vai dar pra sair
A cidade está de ressaca

Também. Quem foi que mandou?
O carnaval demorou tanto
Era tanto verão, tanta luz
Quando a gente percebeu
Não dava mais tempo
A cidade estava de ressaca

A cabeça dói
Ouço os roncos no estômago
Vindos lá do Sumaré
Sinto alagar as minhas avenidas
Sinto molhar as minhas calças
Que nojo! Que vergonha!
Desculpa amor
Não vai dar pra sair
A cidade está de ressaca

Dizem que nunca se viu tanta gente nos blocos do Centro
Dizem que a cidade se empanturrou
Dizem que a polícia teve que intervir
Que era por conta de uns rapazes urinando no ponto de ônibus
Ou fazendo algo obsceno,  sei lá amor...
Agora é tarde, acabou tudo, o verão, o carnaval, a luz.
Começou o ano e não vai dar pra sair
A cidade está de ressaca

Éramos tão livres amor, éramos tão sexys
Será que perdemos toda a carioquice e um décimo de tudo?
A gente está com medo, mas sempre houve medo
Ao que parece amor, estamos perdendo também a coragem

Talvez a gente se recupere no outono
O Rio é lindo no outono amor
A cidade fica em HD, voce lembra?
Mas hoje...
Hoje não vai dar pra sair amor
Hoje a cidade está de ressaca  



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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A vida imita a arte

Cheguei em casa após uma quinzena de trabalho fora do estado. A patroa me recebeu e logo notou o casaco que eu trazia na alça da mala.

- Que casaco é esse Lapinha?

- É do meu amigo Bira.

- Que Bira é esse?

- Trabalha lá na companhia.

- Nunca ouvi falar.

- Trabalha, mas em outro setor.

- E o que você está fazendo com o casaco dele?

- Ele esqueceu no hotel daí pediu para eu trazer.

- É casaco de mulher Lapinha.

- Então, ele me pediu pra trazer o casaco da mulher dele. Ela que esqueceu o casaco no hotel.

- Ele tava lá com ela?

- É.

- Em Mossoró?

- Não, tava em Fortaleza.

- E você foi fazer o quê em Fortaleza?

- Pegar o vôo de volta pro Rio.

- E por que não foi pra Natal?

- Porque tava mais barato o vôo por Fortaleza. A distância é quase a mesma, Mossoró Natal, Mossoró Fortaleza. Põe no Google.

- Sei... E seu amigo... Bira né?

- É.

- Tava em Mossoró com a mulher?

- Isso.

- Mossoró ou Fortaleza?

- Fortaleza mulher. Vc tá me confundindo. Quanta pergunta!

- Então tá, vou fazer só mais uma: Quem leva um casaco desses pra Fortaleza?

- Eles não estavam em Fortaleza.

- Estavam em Mossoró.

- Nãaaaaaao.

- Eles estavam em Madri. É inverno lá agora.

- Em Madri.

- É.

- E você encontrou com eles em Mossoró.

- Fortaleza.

- Hã.

- Eles estavam vindo no avião, de Madri pro Rio. Deu uma pane e eles tiveram que descer em Fortaleza para trocar de aeronave.

- Sei....

- Daí a Cia aérea pagou um hotel pra eles.

- Ahã.

- A noite fui jantar e encontrei com eles no restaurante. Puta coincidência fomos jantar no mesmo lugar.

- E o casaco?

- Então, ela esqueceu no hotel.

- Já são duas coincidências.

- Duas?

- Mesmo restaurante, mesmo hotel...

- Não. Eu estava num hotel e eles em outro.

- E o casaco?

- Então quando ele chegou no aeroporto. Não... Quando a mulher dele chegou no aeroporto se deu conta de que esqueceu o casaco no hotel. Daí ele me ligou e pediu pra eu pegar que ele já tinha avisado pra deixar na recepção. O vôo deles era na parte da manhã. O meu só a tarde. Quando cheguei no aeroporto eles já tinham partido.

- ...

- Foi assim. O Juan tava comigo.

- E por que o Juan não ficou com o casaco?

- Por que a mulher do Juan é muito ciumenta. Muito mais que você. 

- Ha ha ha ha!

- Você conhece ela...

- Meu amor. Essa história é tão estapafúrdia que só pode ser verdade.

- Como assim?

- Te conheço Lapinha. Se tivesse que inventar uma história faria coisa melhor.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...