domingo, 12 de setembro de 2021

Semente

Eu fui moleque num tempo em que a Baixada Fluminense era muito menos urbana e os meninos um pouco menos besta que os de hoje. Uma coisa que a gente aprendia rápido era que bêbado tende a ser generoso, ali pelas duas da tarde. Isso porque muito depois deste horário eles já estão em outro estado de espírito. Era nesse expediente que a gente descolava uma cocada, uma mariola, um doce de abóbora e, se fosse perto do dia cinco, rolava até coxinha com guaraná taí

No Botequim de Seu Minca tinha um cara que sempre chegava para tomar cachaça conduzindo uma charrete puxada por um cavalo branco aprumado, de crinas longas e sempre bem penteadas. Namoral, o cavalo era bonito pra caramba! Cavalo de livro ilustrado da Disney, sabe qual é?  A gente era doido para dar um rolê naquela charrete. Um dia eu tomei coragem e fui lá pedir:  

- Tio, deixa a gente dar uma voltinha de charrete aí. A gente não vai longe não, só vai só até ali só.

- Vai lá – ele disse. Eu nem acreditei – Vai lá, mas preste atenção, tá vendo esse guizo?

Me mostrou um amarrado de chapinhas.

- Não sacuda esse guizo de jeito nenhum! Você tá entendendo?

- Hahã.

- NÃO mexe no guizo!

- Tá.

Pronto, estava plantada a sementinha do mal no meu coração.

Saí catando todos os moleques da rua. Duas voltas no quarteirão e a charrete já estava mais lotada que o trem de Gramacho segunda-feira seis e quinze da manhã. Tinha criança pendurada até nos paralamas. Quando passamos na pracinha demos carona pro Seu Jairo gordo e pra duas tias que voltavam da feira.

Tudo estava indo muito bem, a festa estava boa, até que ganhei a Rua da Fábrica de Costura. A rua da Fábrica de Costura era uma grande reta. O cramunhão esperou até que eu me deparasse com aquela imensidão de estrada para soprar no meu ouvido: 

- O guizo.

Parceiro namoral...

Eu sacudi o guizo.

De com força.

Mano do céu...

O cavalinho bonitinho da Disney levantou as orelhinhas.... Pense. Pense na coisa mais feroz que você já viu na vida. Pense numa coisa que corria tanto que deixaria o Caxias x Freguesia comendo poeira.

Mano...

Até o capeta que soprou no meu ouvido se arrependeu.

Foi um tal de criança gritando. Seu Jairo gordo se agarrando nas saias de viscose das tias que se seguravam sabe-se lá onde. No terceiro quebra-molas o Raoni, menino peso pena que morava na rua do valão, toda periferia tem uma rua do valão, o Raoni saiu voando feito um boneco de pano e só não morreu porque a queda foi amortecida por uma touceira de buchinho. Criança tem anjo da guarda, puta profissão difícil. Eu puxei o freio com toda força do meu ser, mas era o mesmo que nada.

O fim da Rua da Fábrica de Costura era um morro com um matagal ainda nativo. Foi o que nos valeu. O bicho entrou uns cinquenta metros mato a dentro e foi freado pelos arbustos. Levamos um tempão para amansar o cavalo, desengancha-lo do mato, realinhar a charrete e tudo mais.

Depois de todo esse trabalho subimos de volta na charrete, exceto as tias. Não tenho notícias delas até hoje. O seu Jairo gordo não nos abandonou em nenhum momento. Seu Jairo gordo era parceiro. Enfim, demos meia volta, ganhamos a Rua da Fábrica de Costura, resgatamos o Raoni, andamos mais duas quadras e... Juro.

Ouvi:

- O guizo.


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