sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Sobre quando eu me apaixonei pelo mar



Quando eu era menino, vivia longe do mar, ao sopé da Serra da Estrela. No meu coração habitavam as colinas, os rios e as goiabeiras. O mar era um parente distante do qual eu ouvia falar de quando em vez.

O conheci numa viagem que fiz a Piratininga. Estava na praia catando tatuí com meus primos. O mar veio furtivamente, empurrou-me e levou um dos meus chinelos. Fiquei com um único e inútil pé de havaianas. Fui motivo de chacota para as outras crianças durante o restante do feriado. Este ataque gratuito me deixou com uma raiva tremenda do mar e de sua mania de roubar os meninos menores. Guardei mágoa do oceano anos a fio – anos de moleque que são diferentes de anos de adultos.

Até que fui a Saquarema acompanhar meu pai numa apresentação do coral onde ele era tenor – a minha família vem de uma longa linhagem de artistas. Paramos em Vilatur numa rua cercada de cajueiros onde os outros meninos, filhos dos amigos de meu pai, e eu fizemos a festa. Trepamos em todas as árvores quase que ao mesmo tempo, devorando tantos cajus quanto coubessem na barriga e nos olhos. Éramos um enxame de lagartas vorazes. Foi preciso uma operação de guerra para livrar o pomar de nossa fúria.

Ao fim da tarde fomos até a igreja onde seria a apresentação. Uma edificação singela de paredes brancas, erguida a beira mar com porta e janelas azuis. O maestro do coral levou todos para a praia à esquerda do templo e decidiu fazer um último ensaio ali mesmo. Eu, muito contrariado, fiquei sentado na areia de frente para o meu desafeto, o mar, agressor de meninos, ladrão de chinelos.

O Coral começou a cantar uma canção que dizia que além do azul do mar, além da linha onde o firmamento joga-se sobre a imensidão azul, há um lugar onde habita a paz. Não a paz líquida da modernidade, mas a paz definitiva, essencial. A paz não era nada de importante para minha meninice, que a essas alturas só pensava se no dia seguinte seria possível voltarmos ao pomar dos cajueiros. Olhei inquieto para trás e meu pai, com sua voz de tenor, disse-me para prestar atenção no mar. Insistia, como um professor, que eu me fixasse naquela infinitude, onde segundo ele habitava a paz.

Olhei novamente e enfim ouvi o mar, que se juntou ao coro, a marcar o compasso – paz, perfeita paz, habita além do escuro mar - cantavam-me meu pai e o mar. Um tenor e um barítono, num dueto de consonância improvável, repleta de boniteza de ouvir, de ver e de sentir. O canto do mar, embora forte, era tão suave que se desfazia em espuma branca sobre a areia. E ele dizia:

- Chuuuá...

Meu pai e seu coro respondiam:

- Paz...

- Chuuuá...

- Paaaz...

- Chuuuuuuuuuá...

- Per-fei-ta paz...

- Chuuuá...

- Além...

- Chuuuá...

- Do es-cu-ro...

- Chuuuá...

- MAR!!!

Fui tomado por um imenso abraço azul, salgado e paterno. Olhei para trás, ouvi meu pai sorrindo em música. Voltei adiante, ouvi o mar sorrindo em ondas, num não acabar de águas. Perdoei o mar, e do perdão me veio o amor. E o amor me trouxe a paz, a paz essencial sobre a qual meu pai cantava.

Desde então, diante do oceano, ouço o velho coro de meu pai, vejo o mesmo infinito sorriso azul da natureza e sinto a mesma paz de menino brejeiro.


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sábado, 22 de outubro de 2016

Preconceito


Jorge trabalhava numa loja de colchões na região do Saara, Centro do Rio de Janeiro. Contava seus quarenta e tantos anos, os cabelos exibiam avançados tons de grisalho e a barriga uma teimosa proeminência. Era Carioca do Cachambi, mas o jeito sereno e brincalhão lhe rendeu o apelido de “baiano”. A rapaziada da loja adorava pegar no pé do Jorge, que gastava muito mais tempo que os demais a conversar com os fregueses.

- Vocês é que são acelerados! – Defendia-se Jorge. O que ele não revelava era que a estratégia da Boa Terra vinha dando certo. As suas comissões pelas vendas eram as maiores da loja.

Naquela terça-feira ele perdera boa parte do tempo do almoço a rodar pelas papelarias do Centro em busca de uma dúzia de cartolinas a um preço razoável. Item, trivial no mercado num passado recente, tornado caro e incomum pela era do Power Point. Sua filha precisava delas para fazer um trabalho de artes na escola. Encontrou as cartolinas num bazar no Largo de São Francisco, doze folhas enroladas num volume desconfortável – levar isso no Metrô vai ser um inferno – pensou.

Saiu da loja as sete, parou para tomar mate gelado e comer uns pães de queijo com os amigos do comércio. Comprou com um ambulante uma barra de chocolate para cada uma de, como ele dizia, “suas meninas”, esposa e filha.  Tomou o metrô da linha dois na estação Uruguaiana, por sorte conseguiu encostar na parede do vagão, prendeu as cartolinas entre as pernas e tirou da bolsa a tiracolo o livro que lhe fazia companhia há uma semana. O Nome da Rosa de Umberto Eco. Enquanto a composição serpenteava sobre o subúrbio, Jorge se embrenhava nos corredores de mosteiros medievais junto com o frade Guilherme de Baskerville, tomando cuidado para não deixar as cartolinhas lhe escaparem.

Desceu na estação Maria da Graça e foi para o ponto de ônibus esperar o 679, que não demorou. Tomou o coletivo, passou pela roleta e sentou-se próximo à saída. Pegou novamente o livro e retomou a leitura. Quando o ônibus virou na Rua Miguel Ângelo as luzes foram apagadas. Jorge olhou ao seu redor e percebeu que os demais passageiros, mergulhados em seus smartphones, nem notaram a diferença. Ele fora o único atrapalhado, sentiu-se obsoleto. Ficou segurando o livro na mão esquerda com o indicador entre as páginas, para não se perder na leitura.

Logo lhe chamou atenção a movimentação de três rapazolas. Um deles, muito alto e desengonçado, andou na direção da porta de trás. Os outros dois permaneceram na frente, próximo à roleta, pareciam dizer algo ao motorista. Um russinho de cabelo amarelo e um rapaz negro, que não passava dos quinze anos, mas era carnudo como um touro. O de cabelo amarelo virou-se direção dos passageiros, Jorge observou que uma cicatriz profunda lhe marcava a face. O rapaz amarrou o olhar, puxou uma pistola e anunciou o assalto.

O pequeno touro passou a tomar com violência os celulares, carteiras, relógios e o que mais pudesse dos passageiros assustados. Jogava tudo em uma mochila enxovalhada presa ao peito. Gritava palavrões e ameaçava quem ousava lhe olhar nos olhos. Quando chegou a sua vez, Jorge ergueu o braço para tirar o relógio tentando não soltar o livro e perder a página marcada na mão trêmula. O touro furioso olhou aquele movimento desengonçado, viu a cartolina atravessada sobre seu colo e disse a Jorge num tom de voz mais baixo.

- Tá tranquilo professor. Não vou assaltar o senhor não.

Olhou para a passageira do banco de trás:

- Tá olhando o quê, vagabunda? Passa a porra do celular!

Limpou os outros três pobres sentados a jusante e desceu com o comparsa pela traseira. O de cara riscada recolheu a arma, pulou a roleta e saiu pela frente. Jorge ainda trêmulo desceu alguns quarteirões adiante, abraçou o livro como a um relicário, fez a oração de seu padroeiro homônimo e foi encontrar suas meninas.



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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Cultura brasileira

Acordei antes das sete, embora fosse domingo. Há muito contraí de minha esposa este costume crônico. Tomei café na varanda para ouvir os sabiás. Comi queijo da canastra.

Terminei mais um livro do Jorge Amado. A segunda morte de Berro D'Água me inspirou a ouvir Cayme. Demorei mas achei a playlist em meus alfarrábios. Antes de ouvir fui ao hortifrúti do bairro.

Encontrei meu vizinho sorridente e sua esposa sempre acelerada. Ela, que auditava a gôndola de cebolas por cima de seus óculos moderninhos, quase não me notou. Ele a cutucou, ela me acenou constrangida. Lembrei-me de um  almoço que eles ofereceram num feriado há umas semanas. O frango com quiabo estava perfeito, me curou de uma tremenda ressaca. Daí, a inspiração para o almoço.

Mal cheguei com as compras  dei conta de que havia me esquecido de passar na farmácia. Saí novamente, no caminho recebi um telefonema do meu pai cobrando-me uma visita. Agendei para o outro fim de semana. A modernidade nos traz muitas demandas e acaba por nos afastar dos nossos.

Um pouco menos de meia hora eu estava de volta.  Enfim pude cozinhar e ouvir Cayme. Suas canções praieiras me levaram do Rio à Salvador, à Itabuna e Ilhéus. Lamentei não ter dendê, se tivesse faria um xinxim... Ah se faria!

Mas o cardápio até que não foi mal, franguinho com quiabo, creme de milho, arroz, feijão, couve com bastante alho... E pra sobremesa jabuticabas. Minha esposa pôs a mesa. Troquei a playlist. Caetano e Gil me trouxeram de volta, da Bahia ao Rio. Recebi elogios.

À tarde vimos fotos de viagens antigas ao som de Bossa n'Stones e Zeca Baleiro. As cinco começou o futebol. Minha esposa dormiu no meu colo. Vibrei baixinho quando saiu o gol, os meus vizinhos não, ela acordou. Decidiu fazer um bolo.

Vi um documentário sobre o João Nogueira. Tive que aturar ela dizendo que "o filho dele tem a mesma voz com a vantagem de ser lindo". Tomamos café com bolo. Café expresso feito numa máquina que eu ganhei numa rifa por cinco reais – isso sim foi um bom investimento! Abri o Facebook, cliquei num link de uma entrevista dada à Folha pela nova primeira dama paulista. Arrependi-me de ter aberto o Facebook.

Liguei a TV. Assisti à palestra do professor Karnal e do professor Clóvis sobre felicidade. Ver uma plateia tão grande pra ouvir filosofia me surpreendeu. Desliguei a TV. Minha mulher tentou me explicar Spinoza. Um monte de perguntas sem respostas. Ela adora me provocar. Dormiu, ela. Eu tive insônia e escrevi essa crônica.


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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Felicidade



O plantão de Marcos na enfermagem do Hospital Souza Aguiar encerrou-se às sete da noite, porém ele só conseguiu sair às oito e quinze. Tomou o metrô na Central do Brasil e desceu na estação de Del Castilho onde faria baldeação para o ônibus que o levaria à Zona Oeste. Após uma pausa para o lanche dirigiu-se ao ponto, chovia fino, não havia cobertura.  Praguejou em pensamento contra a prefeitura, inconformado.

Foi quando se aproximou um pedinte, esquálido, ressequido, arqueado. Era como se, por obra de algum sortilégio bizarro, tivessem dado vida aos personagens de "Os Retirantes" de Portinari. 

- Um trocado... 

Marcos observou que o pedinte colocava a mão sobre a base do pescoço para falar. Quando ele chegou mais perto, pôde notar que ele havia sido traqueostomizado e que, estranhamente, ainda estava com o filtro do respirador mecânico preso ao orifício em sua garganta. Olhou com um pouco mais de cuidado e viu que, sob o trapo improvisado como agasalho, o pedinte vestia um camisolão de hospital. Não teve dúvidas, aquele sujeito fugira. O tomou pelo braço e arrastou até a esquina. 

- Por que você saiu do hospital? 

- Alta... - Respondeu com dificuldades o pedinte. 

- Fala a verdade meu camarada! – Ralhou Marcos – fugiu por quê? 

- Fome... 

- Fome de quê? Comida aposto que eles estavam de dando. 

O pedinte baixou os olhos, envergonhado. A chuva engrossou. Marcos ofereceu um sanduíche. Ele recusou, só queria uns trocados. Enquanto conversavam o enfermeiro o examinava. A abertura da traqueostomia estava suja, apresentava sinais de infecção, talvez ele tivesse se ferido tentando tirar sozinho o tubo. 

- Você tem que voltar para o hospital... 

- Não! – Respondeu assustado. 

- Vem, eu te levo, te pago um lanche. 

Tentou escapar. Marcos o segurou pelo braço. O pedinte ficou agressivo, mas não tinha forças contra a mão firme do enfermeiro. Marcos insistia com força e persuasão, pensou em ligar para o SAMU, porém seu celular estava sem carga. Olhou para o ponto de ônibus a fim de pedir ajuda. A chuva estava muito forte, mal se podiam distinguir as pessoas que, assustadas, olhavam de longe. Fez sinal para um taxi, todavia o motorista não parou. O pedinte tomou ar com sofreguidão e disse:

- Ninguém vai parar pra ajudar a gente... 

O enfermeiro sentiu-se imensamente só e incapaz – ninguém vai parar pra ajudar a gente - a frase continha uma veracidade acachapante, uma lucidez improvável. Marcos soltou-lhe  o braço, ele não correu. Ficaram ali, dois homens de trinta anos, imóveis naquela esquina de subúrbio, encharcados sob a chuva fria.  Encaravam-se como se entre eles existisse um espelho revelando duas versões antagônicas do mesmo indivíduo. Reconheceram-se, tinham os mesmos olhos castanhos.  Marcos enfim compreendeu o caráter essencialmente solitário da condição humana. Virou-se de costas, o homem tocou gentilmente em seu ombro e o resgatou: 

- Me ajuda... 

- O que eu posso fazer por você amigo? 

- Um real pra eu comprar uma pedra. 

Marcos tirou do bolso uma moeda colorida. Prateada no núcleo, dourada na borda. O rosto do homem encheu-se de uma felicidade infantil. Sorriu, agradeceu com doçura e desapareceu sob a chuva.


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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

MINEIRICES



RECEPÇÃO
Hóspede:                É perigoso caminhar por aqui?
Recepcionista: Essa hora não, sómaistarde.
Hóspede:                Mais tarde que horas?
Recepcionista :             (olha no relógio)Daquiapouquim

MERCADO
Vendedora:         Ô moço, vai uma cerveja?
Moço:                      Não.
Vendedora:         Mas tá geladinha que só...
Moço:                      Já tô bêbu.
Vendedora:         Tá não...
Moço:                      Tá ventando aqui?
Vendedora:         Tá não, uai!
Moço:                      Então tô bêbo...


RESTAURANTE
Cliente:      Que sobremesa vocês têm?
Garçom:     Goiabadacoqueijo, Dodileiticoqueijo, Dodimamãocoqueijo, Cocadacoqueijo, Dodifigocoqueijo, Dodilaranjacoqueijo, Dodiabóboracoqueijo.
CLIENTE:      Qual queijo?
GRAÇOM:     (indignado) Uai!?
CLENTE:       Qual o tipo do queijo?
GRAÇOM:     (profundamente ofendido) Minas.

 Mercado 2
Andando pelo mercado vejo um queijo com formato de moringa:
- Moço que queijo é esse?
- Esse queijo chama cabacim.
- E é bom?
- Bom até que é, mas eu prefiro sem.
 LIVRARIA
Cliente:                  Você tem "O quinze" da Raquel de Queiroz?
VENDEDOR:            Deixa eu ver... Tem não.
Cliente:                 Puxa vida!
VENDEDOR:            Não serve "O Vinte", moça?
Cliente:                 "O Vinte"?
VENDEDOR:            Ué... Daí ocê me devolve cinco de troco.


TÁXI
PASSAGEIRO:         Por que BH tem tantas ladeiras e cruzamento de seis ruas?
TAXISTA:                 Ué. O Bandeirante que inventou isso aqui só podia ter jeito de doido.


RECEPÇÃO 2
Hóspede:                Tem algum lugar aqui perto pra ir à noite?
Recepcionista: Tem um tal de pub aí na esquina mas só abre depois das dez.
Hóspede:                Eu queria mesmo era algo tipo um barzinho...
Recepcionista: Sónassavassi.
Hóspede:                E você conhece algum bar na Savassi pra me indicar?
Recepcionista: NoooÓ!

Parque
Turista:      Que árvore é aquela?
Guia:            Aquela palmeira do lado do tamboril?
Turista:      Não, mais pra traz...
Guia:            A de folha miúda entre a tamarineira e o jequitibá?
Turista:      Mais pra esquerda
Guia:            Aquela na frente do ipê, coladinho com o pé de jabuticaba?
Turista:      Isso
Guia:            Não sei.

Mercado 3
Comprador:        Moço, quanto tá o quilo do queijo de nó?
Vendedor:            Nózinho ou nozão?
Comprador:        Nózinho.
Vendedor:            Vinte reais.
Comprador:        E o nózão?
Vendedor:            Vinte reais.

TELEFONEMA
LAPINHA:    Alô
MINEIRO:     Então, cêvainasavassi hoje?
LAPINHA:    Vou sim.
MINEIRO:     Rua Pium-í, cêssabe onquié?
LAPINHA:    Sim. Eu pego um táxi e chego em 10 min.
MINEIRO:     Táxi? Pega um uber ô tanga frouxa!


CAFÉ DA MANHÃ
MINEIRO:     Não fui com a cara desse um...
LAPINHA:    O paulista?
MINEIRO:     Esse mesmo, espia só o prato dele...
LAPINHA:    O que é aquilo? Granola?
MINEIRO:     Sei não. Mas não confio em gente que não come pão com ovo.



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sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Poeta


Otto era um erradio, tal como o Elisiário do conto de Machado. Mais que notívago era um apaixonado pela madrugada. Um carioca como os de outrora, elegante, cortes e festeiro. Dava-me gosto ouvir os seus discursos. A oratória de professor e a formalidade com que escolhia as palavras davam-lhe ares de poeta.  As meninas que o diga, apaixonadas.

Bom versador nas rodas de samba do Grajaú. Sujeito de carisma imensurável. Era impossível andar com ele duas quadras na Tijuca sem parar um abraço, uma conversa, uma resenha sobre o jogo do Flamengo. Seu sotaque era a cereja do bolo: - Fala bicho, beleza!?

Sucedeu que outro fato aproximou Otto do ilustre personagem de Machado. Certa feita ele simplesmente sumiu. Ninguém mais o via em suas andanças pela Praça Sans Peña, por Vila Isabel ou pela Rua da Carioca, nem na Zona Sul.

O sumiço se estendeu de tal forma que a malandragem da Lapa começou a se preocupar:

- Ele deve estar reformando o apartamento. O Otto sempre some quando se mete a fazer obras.

- Não, tá não. Eu passei pelo prédio dele e o porteiro me garantiu. Aliás, nem por lá ele tem aparecido.

Foi a gota d'agua. Organizamos um mutirão. A minha função foi ficar de sentinela na estação das barcas. Ele ministrava aulas de latim na Universidade Fluminense, haveria de passar por lá. Depois de três dias inteiros montando guarda na Praça Quinze decidi atravessar a poça. Também em Niterói ninguém dava conta do Otto. Na Fluminense, no Campo de São Bento, em São Francisco...

A comoção pelo sumiço do poeta fez cair o movimento na Lapa. Sem ele a Avenida Mendes Sá parecia monótona, insossa. Do samba só se reconhecida a cadência do surdo, melancólica.

Eis que um dia, tão repentinamente quanto fora por ocasião do sumiço, Otto bateu a minha porta. Entrou aos prantos, foi logo procurando o sofá:

- O que houve meu amigo?

- Bicho, uma desgraça, uma desgraça...

- Calma Brother.

- Você ainda tem aquela caninha a gente trouxe de Minas?

Tomou duas doses seguidas. Eu nunca o havia visto tomar uma sequer. Não assim, pura. O Otto nuca fora de tomar destilado...

- Pow bicho eu fiz uma merda tão grande que não sei como desfazer... Uma desgraça bicho... Uma desgraça...

Caiu em prantos novamente.

- Me dá outra dose Lapinha.

Desta vez enchi o copo americano até transbordar, como fazem os japoneses com o saquê. Ele matou em três goles enquanto olhava para o chão e balbuciava uma sucessão de impropérios dos quais só se distinguia a palavra "desgraça". Respirou fundo e enxugou as lágrimas no lenço que sempre trazia consigo. Ergueu os olhos:

- Bicho você não vai acreditar...

- Fala porra!

- Casei.



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terça-feira, 19 de julho de 2016

Quatrocentos e sete


Ana Alice saiu mais cedo do trabalho numa quarta-feira típica do outono carioca, céu azul, mata brilhante, trânsito caótico. Havia prometido pegar o sobrinho na escola para que a irmã pudesse ir ao dentista. Foi com o menino Gabriel à padaria da Praça Lamartine Babo, na Tijuca. Comeram empadão de frango, o melhor do Rio, beberam suco de laranja. Caminharam até o prédio na esquina da Gonzaga Bastos com a Barão de Mesquita, onde Ana Alice residia no apartamento quatrocentos e sete.

Tentou abrir a porta sem sucesso, a chave entrou, mas não girou. Insistiu, praguejou, sacudiu, nada. Foi quando reparou uma sombra sob a luminosidade na soleira da porta. Seu coração gelou. Deu um paço para traz.

- Tem gente aí tia?
Pegou o menino pelo braço e afastou-se assustada até o elevador. Olhou de novo para a porta. Percebeu que, no susto, havia deixado o chaveiro na fechadura. 
- Fica aqui Gabriel.
Ao se aproximar da porta pôde, nitidamente, ouvir uma voz masculina vinda de dentro do apartamento. Desistiu da ideia de recuperar as chaves. Desceu pelas escadas arrastando o garoto assustado. Chegou esbaforida na recepção.
- O que houve Dona Alice? – Indagou Oscar, o porteiro.
- Entraram no meu apartamento! Me ajude Seu Oscar! Chama a polícia.
- Não é possível Dona Alice! Não passou ninguém diferente aqui pela portaria. Se acalma. 
- Pode ter pulado aquele muro dos fundos Seu Oscar. Eu já avisei a síndica que a gente tinha que colocar câmeras nesse prédio. Chama a polícia seu Oscar. Cadê o meu celular? – Revirava nervosamente a bolsa, deixou o aparelho cair no chão. Com o choque a tampa abriu projetando a bateria para um lado, o aparelho para outro. – Ai Jesus!
- Calma Dona Alice! Vou chamar o zelador e vou subir com a senhora.
Deixaram o menino na recepção e subiram até o quarto andar. Ana Alice se recusou a sair do elevador. Ficou na porta espiando de longe. Oscar apoiou a orelha na porta do apartamento, não ouviu nada. Sacudiu a maçaneta, voltou andando para o elevador.
- Onde mesmo a senhora disse que deixou as chaves? 
- Na porta, seu Oscar.
- Não tem chave nenhuma na porta Dona Alice...
- Ai Jesus! - Num movimento abrupto puxou para dentro do elevador o porteiro, um senhor de sessenta e dois anos. A porta fechou-se por traz dele.
- Que isso Dona Alice!
- Pegaram a minha chave seu Oscar. Estão lá dentro me esperando! Eu vou ligar para a polícia. 
A irmã de Ana Alice, que tinha uma cópia da chave, chegou antes da dupla de policiais. Um sargento gordalhão e um soldado incrivelmente alto e esguio. Pareciam uma versão às avessas de Dom Quixote e Sancho Pança. Subiram todos, menos o menino Gabriel, que ficou contrariado na recepção com o zelador. Por sinal, o sobrinho era o único que estava adorando toda aquela aventura. 
 Abriram a porta com a chave da irmã de Ana Alice. O apartamento estava intacto.
- Não há sinais de invasão senhora – Disse o sargento.
- Mas entraram moço. Eu vi. Entraram aqui.
- Eu não vi. – Interviu o porteiro.
- Bem, se entrou alguém saiu do jeito que entrou. E não levou nada. Tem alguém perseguindo a senhora? – Perguntou o soldado.
- Ai Meu Deus! – Ana Alice caiu em prantos.
- Calma Dona Alice. Não passou ninguém pela portaria.
- Pularam o muro seu Oscar. O povo daquele cortiço aí do lado é muito esquisito. Pularam o muro. Ai meu Deus, o que eu faço?!
Tudo que os policiais fizeram foi recomendar a troca do segredo da porta. Não quiseram inspecionar o muro apesar dos protestos de Ana Alice. O chaveiro chegou cerca de uma hora depois. Trocou o segredo e instalou uma fechadura extra. Faturou duzentos e trinta reais. Isso sim foi um roubo. 
Ana Alice foi passar a noite na casa da irmã. Mal pregou os olhos teve pesadelos. Levantou sobressaltada. Perambulou pelos cômodos. Pensou em voltar a fumar. Onde conseguiria um cigarro de madrugada? Desistiu da ideia. Procurou bebida na cozinha da irmã. Só achou chá verde e suco detox. – Chata natureba! – voltou para cama improvisada no chão da sala. Passou a noite em claro. 
No dia seguinte foi direto para o trabalho. Uma agência imobiliária na Conde de Bonfim. Convenceu um amigo a voltar com ela para vistoriar o apartamento na hora do almoço. Ao chegarem ao prédio foram recebidos pelo outro porteiro:
- Bom dia, seu Renan.
- Bom dia Dona Alice. O morador do trezentos e sete achou esse chaveiro na porta dele esta manhã. Por acaso é seu?



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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...