Quando eu era
menino, vivia longe do mar, ao sopé da Serra da Estrela. No meu coração
habitavam as colinas, os rios e as goiabeiras. O mar era um parente distante do
qual eu ouvia falar de quando em vez.
O conheci numa
viagem que fiz a Piratininga. Estava na praia catando tatuí com meus primos. O mar
veio furtivamente, empurrou-me e levou um dos meus chinelos. Fiquei com um único
e inútil pé de havaianas. Fui motivo
de chacota para as outras crianças durante o restante do feriado. Este ataque
gratuito me deixou com uma raiva tremenda do mar e de sua mania de roubar os
meninos menores. Guardei mágoa do oceano anos a fio – anos de moleque que são
diferentes de anos de adultos.
Até que fui a
Saquarema acompanhar meu pai numa apresentação do coral onde ele era tenor – a
minha família vem de uma longa linhagem de artistas. Paramos em Vilatur numa
rua cercada de cajueiros onde os outros meninos, filhos dos amigos de meu pai,
e eu fizemos a festa. Trepamos em todas as árvores quase que ao mesmo tempo,
devorando tantos cajus quanto coubessem na barriga e nos olhos. Éramos um
enxame de lagartas vorazes. Foi preciso uma operação de guerra para livrar o
pomar de nossa fúria.
Ao fim da tarde
fomos até a igreja onde seria a apresentação. Uma edificação singela de paredes
brancas, erguida a beira mar com porta e janelas azuis. O maestro do coral
levou todos para a praia à esquerda do templo e decidiu fazer um último ensaio ali
mesmo. Eu, muito contrariado, fiquei sentado na areia de frente para o meu
desafeto, o mar, agressor de meninos, ladrão de chinelos.
O Coral
começou a cantar uma canção que dizia que além do azul do mar, além da linha
onde o firmamento joga-se sobre a imensidão azul, há um lugar onde habita a
paz. Não a paz líquida da modernidade, mas a paz definitiva, essencial. A paz
não era nada de importante para minha meninice, que a essas alturas só pensava
se no dia seguinte seria possível voltarmos ao pomar dos cajueiros. Olhei
inquieto para trás e meu pai, com sua voz de tenor, disse-me para prestar
atenção no mar. Insistia, como um professor, que eu me fixasse naquela
infinitude, onde segundo ele habitava a paz.
Olhei
novamente e enfim ouvi o mar, que se juntou ao coro, a marcar o compasso – paz, perfeita paz, habita além do escuro mar
- cantavam-me meu pai e o mar. Um tenor e um barítono, num dueto de consonância
improvável, repleta de boniteza de ouvir, de ver e de sentir. O canto do mar,
embora forte, era tão suave que se desfazia em espuma branca sobre a areia. E
ele dizia:
- Chuuuá...
Meu pai e seu
coro respondiam:
- Paz...
- Chuuuá...
- Paaaz...
- Chuuuuuuuuuá...
- Per-fei-ta
paz...
- Chuuuá...
- Além...
- Chuuuá...
- Do
es-cu-ro...
- Chuuuá...
- MAR!!!
Fui tomado
por um imenso abraço azul, salgado e paterno. Olhei para trás, ouvi meu pai
sorrindo em música. Voltei adiante, ouvi o mar sorrindo em ondas, num não
acabar de águas. Perdoei o mar, e do perdão me veio o amor. E o amor me trouxe
a paz, a paz essencial sobre a qual meu pai cantava.
Desde então,
diante do oceano, ouço o velho coro de meu pai, vejo o mesmo infinito sorriso
azul da natureza e sinto a mesma paz de menino brejeiro.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.