quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

As aranhas

Quando eu era menino, na minha casa só rolava música religiosa e, de vez em quando, sertanejo ou Roberto Carlos. Lembro-me, porém de um vizinho que curtia uns rock n rolls. Eu então ficava lá do outro lado do muro, no sapato, só ouvindo as músicas do mundo.

Rolava de tudo: Sex Pistols, Creedence,  Guns, Plebe Rude, Engenheiros... Mas eu me amarrava mesmo era no Raul - Raul é muito doido - dizia meu pai. E eu vivia cantarolando - puff plact zuuuuum, não vai a lugar nenhum - ou então - eu nasci, há dez mil anos atrás...

Logo, chegou uma época que o rock das aranhas grudou na minha mente, como se diz na gíria,  feito um chiclete. Daí era só eu começar:

- Subi no muro do quintal...

Que lá vinha minha mãe:

- Para de cantar  isso menino! Esse troço não é pra estar em sua boca não!

Dez minutos depois, lá estava eu cantarolando:

- é o rock das aranhas... é o rock das aranhas...

- Menino! Isso é safadeza! Não quero você cantando essa imundície, já avisei!

No dia seguinte logo de manhã:

- Subi no muro do quintal....

- Me-ni-no eu já fa-lei pra não can-tar es-sas sem-ver-go-nhi-ces

Minha mãe era dessas que batia separando sílabas.

Eu, em minha meninice, não conseguia compreender o porquê de tamanha repressão. Obviamente, eu dava interpretação literal pra letra do Raul e ficava lá imaginando os bichinhos se  engalfinhando. Imaginava duas aranhas brigando feito uns galos que eu tinha visto numa rinha uma vez na feira de domingo. Lembro-me do meu pai me puxando pelo braço:

- Isso não é coisa que presta menino, vamos embora!

- Mas por que pai? Deixa eu ver...

- Não. Isso é maldade com os bichos. Se eles querem ver briga, por que não enfiam a mão na cara um do outro? Isso de botar bicho pra brigar é covardia.

Na ocasião achei válido o argumento do meu pai, muito sensato mesmo, tomei até um certo ranço desses caras. Mas daí duas mulheres colocando aranha pra brigar não devia ser tão mal assim, pensava eu. Meninas não brigam... E eu achava que devia ser maior engraçado. Imagina: as meninas lá fazendo uma rinha de aranha, daí vinha o Raul – Raul é muito louco dizia meu pai – vinha o Raul e soltava uma cobra no meio. Cara que louco! A mulherada devia sair correndo de medo. Taí uma coisa que eu queria ver, devia ser muito engraçado...

- É o rock das aranhas... É o rock das aranhas...

- ME-NI-NO! - E lá vinha uma havaiana voando na minha direção. Sorte, poderia ter sido um tamanco.

Então teve um dia que vi minha mãe, com uma vassoura, destruindo uma teia de aranha que estava grudada na quina da varanda, entre o teto e o encontro das paredes.

- É mãe, isso não é covardia né?

Eu era desses.

- É o que menino?

- Não é  covardia as mulé botá aranha pra brigar? Então por que taí destruindo a casinha delas?

- Você tá falando de que peste?

- Aquela música: subi no muro do quin...

- Cala boca menino, você não sabe que tá dizendo.

Fiquei já na atividade pra desviar da havaina, mas dessa vez minha mãe veio andando em minha direção, sentou-se na soleira da porta e me chamou - vem cá.

Eu fui já esperando algo bem pior que uma chinelada. Ela me olhou com olhos amorosos de mãe e uma expressão meio constrangida:

- Essa música tem duplo sentido meu filho.

- Que isso?

- Duplo sentido é quando a gente diz uma coisa querendo dizer outra. Tipo quando a gente diz que uma pessoa tem olho grande. Na verdade não é o olho dela que é grande, é ela que é gulosa. Entendeu?

- Ahã.

- Então,  essa música fala que tem duas mulheres esfregando o órgão sexual de uma no da outra. Lembra o que é orgão sexual?

- De menina é ximbica.

- Então.. Elas estão encostando a ximbica,  uma na da outra. Daí o Raul pede pra esfregar o órgão sexual dele também. É isso que fala a música.

Acho que minha mãe estava esperando uma reação de estarrecimento de minha parte. Mal sabia ela que o inseto do rock n roll já havia me mordido e que a infecção estava em estado avançado. Ao invés da propença reação de surpresa eu espremi os olhos, dei um sorriso de canto de boca e disse:

- Legal!


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