terça-feira, 30 de maio de 2017

Aqueles dias

Denise acordou sobressaltada. Olhou o relógio, estava atrasada. Pulou da cama, sentiu uma dor aguda na base do abdômen. Teve vontade de voltar pra cama. Lembrou de sua mãe - olha o pé no chão frio menina - calçou os chinelos.

Banhou-se em tempo recorde. Vestiu-se, foi a cozinha, teve vontade de comer pão com manteiga e de beber café. Tomou um shake sem graça.

Antes de sair olhou-se no espelho, conferiu que horas eram. Só dava tempo de "passar um batonzinho", escolheu um par de óculos escuros bem grandes. Pôs os brincos, detestou, trocou o par, bem melhor. Abriu a porta ainda estava escuro. Sentiu medo. Saiu.

Desceu a rua, chegou na avenida Automóvel Clube. Se fosse mais cedo poderia ir até o ponto final pra tentar viajar sentada, porém não havia tempo. Lá vem o ônibus, cheio. Teve vontade de esperar o próximo. Pegou aquele mesmo, foi de pé.

Antes de chegar na avenida Brasil o coletivo já estava apinhado. Alguém gritou: - Lotou piloto! Mas ele seguia parando em todos os pontos. Num certo momento Denise sentiu um cotovelo em sua costela, deu uma chegadinha pro outro lado. Ficou bem debaixo do suvaco de  um sujeito. Suvaco ou cotovelo? Sentiu vontade de gritar.  Calou- se e escolheu o suvaco, pelo menos o coleguinha tinha tomado banho.

Cochilou sob o suvaco  amigo, acordou não tinha andado cem metros, tudo parado - é hoje. Seguiu cochilando e acordando. Duas eternidades e meia depois chegou na Central do Brasil, desceu às pressas. Sentiu fome, tomou o metrô.

Chegou milagrosamente dois minutos antes do expediente. Sentiu-se uma heroína. A dor apertou um pouquinho - não sei pra quê esse ar condicionado tão forte! Saiu do elevador topou com a supervisora - a make tem que vir pronta de casa Denise, que cara pálida é essa? Sentiu vontade de mandá-la pra puta que pariu. Disse bom dia e foi para o vestiário se maquiar.

A manhã passou num flash. Foi almoçar com os amigos. Sentiu vontade de comer filé com fritas. Pediu quiche de ricota e salada. De sobremesa um brigadeiro, não dois. Voltou para o trabalho, havia um burburinho de que a empresa faria um novo corte de pessoal - dizem que vai passar outra barca - sentiu vontade de chorar. Pensou que poderia ser fofoca, engoliu o choro.

Foi do trabalho pra faculdade. Assistiu uma aula e meia. A metade da segunda aula dormiu mesmo. Na volta havia fila para o ônibus. - Gente esse povo não foi pra casa ainda não? Sai da rua povo! Negou-se a voltar em pé. Sentiu pressa de chegar em casa, mas ficou na fila até entrar no terceiro ônibus.

Sentou na janela. Um sujeito com pinta de estagiário sentou ao seu lado. Ficou torcendo para o ônibus encher - assaltante só pega ônibus vazio. O coletivo lotou. Denise sentiu-se estranhamente protegida pela multidão. Teve vontade de dormir.  Mas o sono, abundante na aula, havia ido embora. Foi revisando a matéria.

O motorista serpenteava ligeiro pelas ruas. Denise sentiu-se enjoada, fechou o livro - não tem condições da pessoa estudar assim gente! Ficou assistindo a cidade pela janela. Sentiu-se entediada e melancólica. Abriu o Facebook. Sentiu-se menos entediada e muito mais melancólica.

Várias avenidas depois a dor ainda incomodava.  O sujeito ao seu lado levantou-se e deixou cair uma folha de papel. - Moço... Denise tentou chama-lo, mas ele sorriu e desceu apressado. Ela desdobrou a folha e leu - tu é muito gata - escrito em letra de forma com um coração desenhando no final. Denise sentiu vontade de sorrir. Sorriu.



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