Jorge
trabalhava numa loja de colchões na região do Saara, Centro do Rio de Janeiro.
Contava seus quarenta e tantos anos, os cabelos exibiam avançados tons de grisalho
e a barriga uma teimosa proeminência. Era Carioca do Cachambi, mas o jeito
sereno e brincalhão lhe rendeu o apelido de “baiano”. A rapaziada da loja
adorava pegar no pé do Jorge, que gastava muito mais tempo que os demais a
conversar com os fregueses.
- Vocês é que
são acelerados! – Defendia-se Jorge. O que ele não revelava era que a
estratégia da Boa Terra vinha dando certo. As suas comissões pelas vendas eram
as maiores da loja.
Naquela
terça-feira ele perdera boa parte do tempo do almoço a rodar pelas papelarias
do Centro em busca de uma dúzia de cartolinas a um preço razoável. Item,
trivial no mercado num passado recente, tornado caro e incomum pela era do Power Point. Sua filha precisava delas
para fazer um trabalho de artes na escola. Encontrou as cartolinas num bazar no
Largo de São Francisco, doze folhas enroladas num volume desconfortável – levar
isso no Metrô vai ser um inferno – pensou.
Saiu da loja
as sete, parou para tomar mate gelado e comer uns pães de queijo com os amigos
do comércio. Comprou com um ambulante uma barra de chocolate para cada uma de,
como ele dizia, “suas meninas”, esposa e filha.
Tomou o metrô da linha dois na estação Uruguaiana, por sorte conseguiu
encostar na parede do vagão, prendeu as cartolinas entre as pernas e tirou da
bolsa a tiracolo o livro que lhe fazia companhia há uma semana. O Nome da Rosa
de Umberto Eco. Enquanto a composição serpenteava sobre o subúrbio, Jorge se
embrenhava nos corredores de mosteiros medievais junto com o frade Guilherme de Baskerville, tomando cuidado para não
deixar as cartolinhas lhe escaparem.
Desceu na
estação Maria da Graça e foi para o ponto de ônibus esperar o 679, que não
demorou. Tomou o coletivo, passou pela roleta e sentou-se próximo à saída. Pegou
novamente o livro e retomou a leitura. Quando o ônibus virou na Rua Miguel
Ângelo as luzes foram apagadas. Jorge olhou ao seu redor e percebeu que os
demais passageiros, mergulhados em seus smartphones,
nem notaram a diferença. Ele fora o único atrapalhado, sentiu-se obsoleto.
Ficou segurando o livro na mão esquerda com o indicador entre as páginas, para
não se perder na leitura.
Logo lhe
chamou atenção a movimentação de três rapazolas. Um deles, muito alto e
desengonçado, andou na direção da porta de trás. Os outros dois permaneceram na
frente, próximo à roleta, pareciam dizer algo ao motorista. Um russinho de
cabelo amarelo e um rapaz negro, que não passava dos quinze anos, mas era
carnudo como um touro. O de cabelo amarelo virou-se direção dos passageiros,
Jorge observou que uma cicatriz profunda lhe marcava a face. O rapaz amarrou o
olhar, puxou uma pistola e anunciou o assalto.
O pequeno
touro passou a tomar com violência os celulares, carteiras, relógios e o que
mais pudesse dos passageiros assustados. Jogava tudo em uma mochila enxovalhada
presa ao peito. Gritava palavrões e ameaçava quem ousava lhe olhar nos olhos.
Quando chegou a sua vez, Jorge ergueu o braço para tirar o relógio tentando não
soltar o livro e perder a página marcada na mão trêmula. O touro furioso olhou
aquele movimento desengonçado, viu a cartolina atravessada sobre seu colo e
disse a Jorge num tom de voz mais baixo.
- Tá
tranquilo professor. Não vou assaltar o senhor não.
Olhou para a
passageira do banco de trás:
- Tá olhando
o quê, vagabunda? Passa a porra do celular!
Limpou os
outros três pobres sentados a jusante e desceu com o comparsa pela traseira. O
de cara riscada recolheu a arma, pulou a roleta e saiu pela frente. Jorge ainda
trêmulo desceu alguns quarteirões adiante, abraçou o livro como a um relicário,
fez a oração de seu padroeiro homônimo e foi encontrar suas meninas.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
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