sábado, 29 de abril de 2023

Pechincha

Elisabeth Cristina, professora do sétimo ano do colégio estadual Antônio Prado Júnior, moradora do Andaraí desde o ano de dois mil e oito quando deixou Araraquara, sua cidade natal. Queixava-se com Liliane, vizinha e colega de profissão, sobre a inexistência de uma cabeleireira profissional capaz de entender as nuances e particularidades das mulheres de pele clara que possuem cabelo crespo. 

Pois Liliane, que também era crespa de pele clara, disse que soube por fontes seguras que existia um salão especializado neste fenótipo. Onde, segundo a mesma fonte,  prestava-se um serviço de excelência. Maaassss ficava lá em Campo Grande. 

Pra você que não é do Rio deixa eu explicar uma coisa: Campo Grande aqui não é a capital do Mato Grosso do Sul, mas um bairro homônimo na cidade do Rio de Janeiro. O que não faz muita diferença pois o trânsito no Rio é tão ruim que às vezes, partindo do Andaraí, leva-se o mesmo tempo de viagem para chegar nas duas Campo Grande. 

Eis o motivo da professora Liliane dizer "maaasss" com três "as" e quatro "ésses" no início da oração: "maaassss fica lá em Campo Grande". 

Acontece que a Professora Elizabeth Cristina é sobretudo determinada. E lá foi ela atrás de informações sobre o afamado salão das crespas em Campo Grande. Algumas incursões nas redes sociais depois, ela descobriu o endereço, o telefone de  contato e uma promoção imperdível: corte e hidratação profunda por apenas 120 reais.

Pra você que não conhece os preços dos serviços de salão de beleza no Rio de Janeiro, explico que um procedimento assim não costuma sair por menos de 200 pratas. O que coloca a professora Elizabeth Cristina diante de grande oportunidade. - Uma pechincha! - Ela não ia perder.

Depois de muita insistência, a professora Liliane concordou em, no sábado seguinte, acompanhar a professora Elizabeth Cristina na incursão até o salão. Porém, na hora H ela não apareceu e, como desculpa, contou uma história confusa sobre o dente quebrado do filho, o filme do Sonic e a geladeira da cozinha.

Elizabeth Cristina não se deu por vencida.  Pensou:

- Aqui no bairro custa: 200,00...
- Salão em  Campo Grande 120,00...
- Saldo: R$ 80,00

Pegou seu pequeno Toyota Etios e partiu na manhã de sábado, bem cedinho, para não pegar engarrafamento.

Falhou miseravelmente.

De fato, sábado pela manhã é pouco provável que haja engarrafamento na avenida Brasil no sentido tomado pela professora Elizabeth Cristina. Porém, a Avenida Brasil é uma via sádica e temperamental que se reserva o direito de engarrafar quando bem entender. Duas horas e oito minutos depois de sair de casa ela chegou em Campo grande. 

- Saldo anterior: 80,00...
- Combustível: 37,50...
- Saldo: R$ 42,50

Como ela estava atrasada e não conhecia bem a região decidiu deixar o carro em um estacionamento privado. 

- Vinte e cinco reais senhora!

- Que isso moço!

- Mas pode deixar o dia todo...

- Faz um descontinho pra mim.

- Deixa vinte então.

- Saldo anterior: 42,50...
- Estacionamento: 20,00...
- Saldo: R$ 22,50.

O atendimento no salão era mesmo muito cordial. O lugar, muito bem decorado, tinha o clima animado de salão de beleza aos sábados. Falatório, barulho de secador e aquela névoa com cheiro doce de creme para pentear que deixa o ar mais denso. 

A professora Elizabeth Cristina foi convencida que a cor de cabelo da moda era "morena iluminada" e acabou comprando um"pacote imperdível" que além da tintura incluía pé, mão e sobrancelha. Era caro... Mas, dividia em dez vezes no cartão.

- Saldo anterior: 22,50...
- Pacote imperdível: 10 x 45,00...
- Saldo R$ - 427,50.

Passaram-se três horas e meia desde o início de todos esses procedimentos estéticos, além dos quarenta minutos de espera. Professora Elizabeth Cristina já estava entediada e sobretudo faminta. 

- Tem almoço?

- Saldo anterior: -427,50
- Quiche sem glúten, salada, guaravita e dois brigadeiros: 37,00.
- Saldo R$ - 464,50.

Pelo menos na volta não pegou trânsito.

- Saldo anterior: - 464,50
- Combustível da volta: 28,25
- Saldo R$ - 492,75.

Professora Elizabeth Cristina chegou em casa exausta e foi direto para o banho. Ao se despir percebeu que a tinta que usara no cabelo havia machado desastrosamente a parte de trás do vestido. Praticamente novo. 

- Saldo anterior: -492,75
- Vestido recém comprado: 215,00
- Saldo R$ - 707,75

Dois dias depois, a professora Elizabeth Cristina sentiu uma coceira esquisita. Lavou o cabelo. A coceira não passou. Lavou novamente na manhã do dia seguinte e, ao secar o cabelo, notou um bichinho esquisito na toalha, muito parecido com um que ela viu em seu ombro quando tirou a touca do salão. No dia ela não deu muita bola.

- Saldo anterior: - 707,75
- Emulsão antipiolho e pente fino de aço: 42,25
- Saldo R$ - 751,00

Passados quinze dias, o marido da professora Elizabeth Cristina diz enquanto os dois se arrumavam pela manhã:

- Amor.... Quando você chegou naquele dia eu gostei da mudança. Mas agora tá ficando com uma cor esquisita... Meio alaranjado....

- Ah benhê... - com sotaque bem paulista - benhê.... Não inveNta!

Elizabeth Cristina ficou na negação por mais uma semana a despeito das inúmeras indiretas dadas pelas amigas do trabalho. Até que veio um feriado e ela foi visitar a mãe, em Araraquara, onde foi recebida com toda cordialidade do interior paulista:

- Que cagada é essa que a senhora fez no cabelo dona Elizabeth Cristina?

Ao retornar da viagem Elizabeth Cristina decide voltar ao mesmo salão de sempre, no Andaraí, há duas quadras de sua residência.

- Saldo anterior: - 751,00
- Novo corte, mais tintura, mais hidratação ultraprofunda: 3 x 95,00
- Saldo: R$ - 1036,00

Uma pechincha. 


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.


sábado, 15 de abril de 2023

Seiscentos e dez

Em plena terça-feira, às duas horas da tarde, peguei o seiscentos e dez em Del Castilho para ir à longínqua Taquara. 

Por algum motivo os empresários acham que os ônibus dessa linha devem ser menores que os demais. - Vocês tão ligados que em certas linhas eles colocam uns ônibus menores? Faz sentido? Pra gente que é pobre não faz nenhum. Mas pra eles deve fazer. - Enfim, essa linha vive cheia.

Era uma tarde dessas de verão quando na zona norte do Rio faz quarenta e cinco graus na sombra. O forte  calor contorcia o ar próximo ao asfalto e a gente podia ver a quentura dançando sobre ele. O céu era de tamanho azul que nos causava embriaguez e o sol estava tão próximo que podia-se sentir seu gosto, metalizado. 

O ônibus tinha lá seu ar condicionado, mas ele não dava conta. Pobre máquina que nem de longe foi concebida pra resfriar aquela quantidade insana de corpos amontoados dentro de uma caixa feita de aço e vidro. A atmosfera dentro do ônibus era úmida, causticante. Uma espécie insalubre de sauna movida à ar supostamente frio.

O lado "bom" dessa linha é que seu trajeto quase não tem paradas e, se não tiver engarrafamento, o ônibus tende a esvaziar-se rapidamente. Para minha sorte, assim foi neste dia.

Quer dizer... Foi mais ou menos. A viagem fluiu bem até a estrada do Pau Ferro. O ônibus esvaziou e eu, surpreendentemente consegui sentar. Na janela! Porém, chegando  no  Largo do Pechincha, o trânsito simplesmente parou. 

Eu ali dentro daquele coletivo, tentando não sufocar no ar quente e semissólido que havia sobrado após a multidão ter lhe consumido quase todo o oxigênio disponível. Olhei com melancolia para o lado de fora. Uma confusão de carros parados em todos os sentidos e uma quantidade infernal de motocicletas tentando achar um caminho entre eles.

O tempo da vida, que estava suspenso para os infelizes feito eu, confinados dentro dos veículos, contrastava com o das pessoas nas calçadas. Ali, o dia vibrava em outra frequência. 

Armarinho de um lado, vendedor de ervas do outro. Incontáveis farmácias. Padaria, mercadinho, banca do bicho, jornaleiro, churrasquinho jogando fumaça e gordura pro alto, como se já não bastasse o calor do verão. Loja de roupa, de móveis, de eletrodomésticos, de celular. Salão de beleza, manicure e pedicure. Gente, gente e mais gente. As calçadas botavam gente pelo ladrão, porque não era possível andar somente por elas, dado a grande quantidade de camelôs.

Ah... E botequim. No Largo do Pechincha o que não falta é botequim. Num desses eu vi sentado  um senhor de pele escura com uma barba volumosa e geometricamente aparada. Ele tinha um cabelo longo, trançado com fios vermelhos e  amarrado num coque bem no topo da cabeça. Ele fez um sinal para o garçom que lhe trouxe um copo americano vazio. 

Fiquei de olho.

O garçom adentrou no estabelecimento e retornou com uma garrafa de cerveja dentro de uma camisinha. Apoiou sobre a mesa, tirou a chapinha. Verteu cuidadosamente o líquido dourado. Notei que o ar condensava ao redor do copo à medida que ele era completado. Uma espuma branquinha e perfeita se formou na borda.

O senhor agradeceu gentilmente ao garçom. Ergueu o copo com absoluta elegância e, lentamente, sorveu todo o seu conteúdo. Acho que foi coisa da minha mente, mas posso jurar que ouvi o barulho do copo vazio batendo na mesa: - tec!

O ônibus andou, engoli seco, puxei o sinal. 



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...