sábado, 15 de abril de 2023

Seiscentos e dez

Em plena terça-feira, às duas horas da tarde, peguei o seiscentos e dez em Del Castilho para ir à longínqua Taquara. 

Por algum motivo os empresários acham que os ônibus dessa linha devem ser menores que os demais. - Vocês tão ligados que em certas linhas eles colocam uns ônibus menores? Faz sentido? Pra gente que é pobre não faz nenhum. Mas pra eles deve fazer. - Enfim, essa linha vive cheia.

Era uma tarde dessas de verão quando na zona norte do Rio faz quarenta e cinco graus na sombra. O forte  calor contorcia o ar próximo ao asfalto e a gente podia ver a quentura dançando sobre ele. O céu era de tamanho azul que nos causava embriaguez e o sol estava tão próximo que podia-se sentir seu gosto, metalizado. 

O ônibus tinha lá seu ar condicionado, mas ele não dava conta. Pobre máquina que nem de longe foi concebida pra resfriar aquela quantidade insana de corpos amontoados dentro de uma caixa feita de aço e vidro. A atmosfera dentro do ônibus era úmida, causticante. Uma espécie insalubre de sauna movida à ar supostamente frio.

O lado "bom" dessa linha é que seu trajeto quase não tem paradas e, se não tiver engarrafamento, o ônibus tende a esvaziar-se rapidamente. Para minha sorte, assim foi neste dia.

Quer dizer... Foi mais ou menos. A viagem fluiu bem até a estrada do Pau Ferro. O ônibus esvaziou e eu, surpreendentemente consegui sentar. Na janela! Porém, chegando  no  Largo do Pechincha, o trânsito simplesmente parou. 

Eu ali dentro daquele coletivo, tentando não sufocar no ar quente e semissólido que havia sobrado após a multidão ter lhe consumido quase todo o oxigênio disponível. Olhei com melancolia para o lado de fora. Uma confusão de carros parados em todos os sentidos e uma quantidade infernal de motocicletas tentando achar um caminho entre eles.

O tempo da vida, que estava suspenso para os infelizes feito eu, confinados dentro dos veículos, contrastava com o das pessoas nas calçadas. Ali, o dia vibrava em outra frequência. 

Armarinho de um lado, vendedor de ervas do outro. Incontáveis farmácias. Padaria, mercadinho, banca do bicho, jornaleiro, churrasquinho jogando fumaça e gordura pro alto, como se já não bastasse o calor do verão. Loja de roupa, de móveis, de eletrodomésticos, de celular. Salão de beleza, manicure e pedicure. Gente, gente e mais gente. As calçadas botavam gente pelo ladrão, porque não era possível andar somente por elas, dado a grande quantidade de camelôs.

Ah... E botequim. No Largo do Pechincha o que não falta é botequim. Num desses eu vi sentado  um senhor de pele escura com uma barba volumosa e geometricamente aparada. Ele tinha um cabelo longo, trançado com fios vermelhos e  amarrado num coque bem no topo da cabeça. Ele fez um sinal para o garçom que lhe trouxe um copo americano vazio. 

Fiquei de olho.

O garçom adentrou no estabelecimento e retornou com uma garrafa de cerveja dentro de uma camisinha. Apoiou sobre a mesa, tirou a chapinha. Verteu cuidadosamente o líquido dourado. Notei que o ar condensava ao redor do copo à medida que ele era completado. Uma espuma branquinha e perfeita se formou na borda.

O senhor agradeceu gentilmente ao garçom. Ergueu o copo com absoluta elegância e, lentamente, sorveu todo o seu conteúdo. Acho que foi coisa da minha mente, mas posso jurar que ouvi o barulho do copo vazio batendo na mesa: - tec!

O ônibus andou, engoli seco, puxei o sinal. 



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

2 comentários:

  1. Muitas vidas e muitas histórias. O Rio é um imenso laboratório da vida brasileira.

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  2. Puxou o sinal, se dirigiu ao Boteco, puxou a cadeira, se dirigiu ao garçom. Tenho certeza!!

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