sábado, 28 de fevereiro de 2015

Chupa essa manga!



- Brother tá brabo, preciso levantar uma grana.
- Pô, estou dando aula pra um cara, se quiser te indico.
- Pode ser qual o nome dele?
- Odson.
- Robson?
- Uodisson.
- Edson?
- Wodisson
- Hein?
- É mais ou menos isso, vai lá que o maluco é maior sangue bom!
- Beleza.
Na semana seguinte eu fui lá, prédio antigo na zona norte, havia uma viatura do corpo de bombeiros na porta, falei com o porteiro, fiquei aguardado de pé na recepção. Foi quando avistei um sujeito alto, andando meio desajeitado, feito um adolescente, barba serrada, cabelos compridos, trajando branco, uma luz refletiu por de traz da cabeça dele – É Jesus? Pensei com meus botões. Não, era o aluno.
- VOCÊ É O PROFESSOR?
Tom grave, falava alto, gesticulava mais alto ainda - Sim.
Abraçou-me como se fossemos amigos de longa data. – Eu heim...
- VAMOS PELA ESCADA.
Passamos pelo segundo andar, estava tudo queimado, um cheiro forte...
- Que merda é essa véio?
- AH, TEVE UM INCENDIO AQUI!
- E é seguro a gente ficar?
- CLAAAAAAAAAAAAAAAARO BICHO. OS BOMBEIROS JÁ LIBERARAM.
Deu-me um segundo abraço que me rendeu dois dias de torcicolo – se tiver um terceiro vou dá-lhe uma porrada – pensei.
- TÁ COM FOME BICHO? VOCÊ ESTÁ COM CARA DE FOME...
Eu estava mesmo.
- SEGURA AÍ!
Ofereceu-me uma fruta do tamanho de um abacaxi.
- O que é isso?
- É MANGA BICHO, NÃO CONHECES?
- Impossível, não existe manga deste tamanho.
- CLARO QUE SIM, MANGA ROSA!
Veio andando em minha direção com uma faca na mão.
Fudeu! Dei um passo pra traz...
- CHUPA ESSA MANGA BROTHER!
Entregou-me a faca.
Putz... Vi Jesus, uma manga gigante, estou na neurose com esse maluco... Não é possível, eu tô careta.....  Será que é flashback?
Enquanto o cara pegava os livros eu apreciava a manga. Olhei para o Sumaré, lembrei-me de quando fazia mountain bike na Serra dos Orgãos, era divertido descer em velocidade, vento no rosto... Agradeci a manga.
- Vamos estudar?
- JÁ ÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ...
- Então, vamos começar pela teoria atômica, um filósofo grego chamado Democríto:
- JÁ SEI JÁ SEI AQUELE NEGÓCIO DO NADA SE CRIA TUDO SE TRNSFORMA
- Não esse foi Lavoisier, então, Demócrito definiu o átomo como uma porção indivisível da matéria...
- MAS ISSO NÃO É VERDADE, TUDO MUNDO SABE HOJE QUE PODEMOS QUEBRAR O ÁTOMO, INCLUSIVE EINSTAIN DISSE QUE É MAIS FÁCIL QUEBRAR UM ÁTOMO QUE O PRECONCEITO...
- Eu sei, mas ainda estou em 450 a.C, calma!
- AH TÁ! MAS PRECISA MESMO PASSAR UMA INFORMAÇÃO ASSIM TÃO OBSOLETA BICHO?
- Não é obsoleta, é conceitual, ainda estou na introdução, calma..
- BELEZA
- Então o átomo é a menor porção da matéria e do ponto de vista didático pode ser dividido em duas regiões...
- SIM, SIM, IÔNICA E COVALENTE
- Não isso são ligações entre átomos, estou falando da estrutura dos átomos...
- SIM, MAS TEM TUDO A VER...
- Sim, mas não agora, não nessa aula, estou querendo discutir a estrutura, me ouça. A eletrosfera, núcleo....
- ONDE TEM AS REAÇÕES NUCLEARES
- VOCÊ TÁ ANSIOSO CARA?
- É QUE MEU RACIOCÍNIO É MUITO RÁPIDO BICHOOOOOOOOO! HAHAHAHAHAHAHA!
- Relaxa aí malandro!
- CALMAÊ...
Lá se foi outra manga-rosa. Quando ele retornou para os estudos resolvi mudar a estratégia, tocar em ritmo de bate-papo. Ai a aula fluiu: Teoria atômica, crise de 29, Almir Sater, frango com quiabo, ligação iônica, lei de Newton, açúcar mascavo, teorema de Pitágoras, biquíni, o homem na lua, estequiometria, tubos de pvc... nem vimos o tempo passar e nem nos demos conta de que nascia ali uma longa amizade. O meu irmão mais novo me apresentara o meu irmão mais velho.
- BICHO TO MOORTO DE FOME.
- Eu também.
- TEM FEIJÃO NA GELADEIRA.
- Não rola uma pizza?
- SÓ SE FOR VEGETARIANA.
- Pode ser.
- SORVETE PRA SOBREMESA?
- Isso.
No dia seguinte encontrei com meu outro amigo.
- Cara que maluco doido!
- Mas é sangue bom pra carai.
- Muito.
- Ele é doido assim mas é careta.
Ledo engano.

A Magrinha



Era uma manhã turbulenta, toneladas de peças de bronze caíam diante de mim num chacoalhar incessante. Ele tentava me explicar tudo, possuía uma áurea mágica, típica dos professores natos.  Todavia, aquele barulho me incomodava tanto que levaria muito tempo até que eu enfim, compreendesse a totalidade daquelas reações.
 Fizemos uma pausa, em poucos passos o ambiente silenciava, cruzamos o posto policial, do outro lado da fronteira tudo era mais calmo e verde, e em nada lembrava a confusão daquela fábrica, exceto pela postura circunspecta dos policiais à porta. À nossa frente, um amplo campo revelava-se, onde sabiás e quero-queros faziam seus ninhos. Ao fundo, um jardim com flores vermelhas anunciava que o verão atingira seu auge. Caminhávamos sobre a calçada, um mamoeiro frutificava espremido perto do muro. Um céu azul com nuvens diáfanas completava o cenário. Mais um dia perfeito e eu aqui no trabalho, as contas precisam ser pagas.
Foi quando ela veio descendo a escada, calça jeans, regata azul, passaria despercebida por mim, mas não por ele, nunca por ele, sabe com é olhar de poeta, ouvido de músico. – Venha cá, vou te apresentar uma pessoa... Olha que charme! Que simpatia! Dizia Ele com ar boêmio. Eu nunca vira uma pretinha ruborizar daquele jeito, nem nunca voltaria a ver.
 Aquele foi um dia em que eu avistei muitas coisas pela primeira vez, mas nenhuma foi tão luminosa quanto aqueles sorrisos. Era tudo tão óbvio, tão familiar. Um novo ciclo se iniciava, eu ainda não sabia, ele terminaria poucos anos depois. Contudo aqueles sorrisos, ah! Aqueles sorrisos fizeram tudo valer a pena. Um deles se foi, guardo do coração, o outro para minha sorte está logo ali, na lista telefônica.

Sobre a fé, o cristianismo e a modernidade.



Outro dia estava lendo uma publicação evangélica que tratava sobre a Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin. Já no parágrafo das conclusões o autor argumentava que: “Acreditar na teoria de Darwin exige muito mais fé do que acreditar na teoria criacionista”. Dado que a fé é um dos fundamentos do cristianismo tomei isso como um argumento favorável à Darwin, mas tenho a impressão que entendi tudo errado.
Mas isso não importa, as espécies continuam seu caminho evolucionário independentemente de nosso apoio político/ideológico. A questão que quero levantar é: que rumo tem tomado a chamada fé Cristã e o que tem significado ser cristão no cotidiano de nossa terra tupiniquim. Por definição cristão é aquele que pratica o que fora ensinado por Jesus, o Cristo, e seus sucessores. Ou ainda àquele que tem fé em Cristo. Ser cristão é ser um homem de fé.
Ora a fé pode ser algo tão alienatório quanto libertador. A fé que aliena é cega, tola, acéfala. Fruto de um comodismo típico da modernidade, onde preferimos molho de tomate enlatado contendo 10% do fruto ao invés de fazermos nós mesmos o nosso molho, como fazia a nossa avó, cozinhava o fruto, tirava a pele, as sementes, cozinhava de novo... Aff! Muito trabalho. Segundo o escritor espanhol Miguel de Unamuno “Fé não é crer no que não vimos, mas é criar o que não vemos”. Nesse sentido libertário a fé é como o espaguete da vovó, extremamente saudável e cada vez mais raro.
O fato professar fé em alguma forma de divindade deveria tornar a mente do cidadão religioso mais aberta que de a um ateu, que é um sujeito preso à necessidade de comprovações materiais. Àquele disposto a acreditar em coisas que de alguma maneira ainda não podem ser vislumbradas é mais apto à abstrações e às novas possibilidades que trazem, não o oposto. A prática saudável da fé torna o homem mais aberto às novas teorias, aos avanços científicos, às novas verdades, a toda possibilidade outrora mística trazida à luz do conhecimento.
Partindo da fé em termos genéricos e especificando na fé cristã, fé em Jesus o Cristo, cuja obra é pautada no amor, no perdão e na tolerância.  Penso que o fato de ser cristão deveria capacitar o homem a entender melhor as diferenças, sejam elas religiosas, culturais, étnicas, comportamentais, sexuais. Jesus era, sobretudo, um humanista. Tamanho é meu espanto quando vejo supostos cristãos dispendendo tempo e dinheiro em campanhas contra os homossexuais, contra os que professam outra religião - em particular as de origem africana - contra os direitos humanos! Falar em direitos humanos virou sinônimo de herege defensor de bandidos.
Seguir o que ensinou Jesus Cristo deveria fazer do cristão um inimigo de sistemas que primam pelo individualismo, pela competição ferrenha, pelo lucro a todo custo. O cristianismo em sua essência coloca homem e sua necessidade de viver em plenitude no foco de qualquer sistema, seja ele político, cultural, científico, financeiro. Mas ao que me parece eles andam apoiado o liberalismo econômico e agenda da direita semifascista.
Mundo louco esse em que vivemos onde, ao que me parece, os cristãos que praticam a fé de maneira mais plena são os que se proclamam ateus.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

A multiplicação dos peixes



Era uma tarde ensolarada de uma quarta-feira prosaica, meu sócio e eu vínhamos pela Rodovia do Coco rumo a Salvador. Já havia passado uma hora do meio dia quando decidimos parar para o almoço. Estacionamos perto de uma praia – um peixe até que não seria má ideia. Sentamos à mesa, aproximou-se uma senhora com uma cesta de pescado.

- Esse vermelho está muito pequeno, pelo preço deveria ser pelo menos deste tamanho – fez o gesto com a mão. Daí iniciou-se uma resenha sobre a diminuição do tamanho dos peixes no norte da Bahia e a crise financeira decorrente. Eu, que pela fome que sentia comeria até um lambari, desde que viesse rápido, deixei esta negociação a cargo de meu sócio. Ensimesmado, coloquei-me a observar a cidadezinha onde paramos.

Havia um largo à beira mar, uma igrejinha de portas azuis, um umbuzeiro majestoso sob o qual jazia um barco aparentemente abandonado. Foi aí que eles começaram a chegar, um a um, meninos e meninas com uniformes escolares. Mochilas nas costas, canelas finas, calçados russos pela poeira da estradinha de chão. Ocuparam o barco abandonado e os bancos no entorno. Lembrei-me das reuniões com meus amigos antes das aulas, a conversa descontraída, as brincadeiras...

 Foi quando um deles, graveto na mão como se fosse um maestro, ergueu-se sobre o barco: – Vamo lá negada! Bateu três vezes sobre a mesa do timão, os outros o seguiram:

- Tac thu tac thu tac thum! thu tac thu tac thum! thu tac thu tac thum!

Esqueçam os tamborins, atabaques, surdos, pandeiros e tudo mais. As paredes daquele barco transformaram-se na mais harmoniosa precursão que eu ouvira. Que sintonia! Que facilidade! Que afinação! Eu quase não podia acreditar no que estava assistindo. A eles juntou-se um grupo de meninas coreografando a bombordo, as meias até os joelhos, os braços longos e desengonçados de recém-adolescentes.

- Tac thu tac thu tac thum! thu tac thu tac thum! thu tac thu tac thum!

O vendedor de sorvete parou para assistir, uma plateia de passarinhos amontoou-se nos fios, o mar e o vento aquietaram-se, todos espectadores daquele fabuloso espetáculo.

Um mulatinho bonachão de sobrancelhas grossas pôs-se a cantar – Pobre Rosinha de Chica, Que era bonita Agora parece Que endoideceu... Um barítono afinadíssimo de um volume que superava, em muito, o som dos batuques. Uma potência incompatível tanto com a sua idade quanto com o seu tamanho.

O tempo enfim mudou de compasso. Tudo fluía com maior naturalidade, harmonia e boniteza. Pude observar um contorno dourado nas portas azuis da igrejinha, vi que o umbuzeiro florescia e que o barco estava em reforma, chamava-se Malvina. Olhei para a praia, a maré estava baixa, um grupo de gaivotas perseguiam um sujeito que atirava sua tarrafa ao mar. Em algum momento, de uma maneira que não percebi, chegou uma cerveja que refrescava a ansiedade. Minha e de meu sócio, que a essa altura já esboçava um sorriso meio bobo.

Um rasta chegou do nada:

– E aí brother? Vai uma miçanga? Um colar?

- Vou querer não meu amigo...

- Ô meu Rei, me dê uma moral que tô varado de fome!

- Sente-se aí com a gente – disse meu sócio apontando uma cadeira – este vermelho está grande demais, dá pra nós três e ainda sobra.

Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...