sábado, 21 de agosto de 2021

Bar da Lôra

Aí, pelos botecos que você já frequentou na vida, deve ter um Bar da Lôra. Se não tem um Bar da Lôra tem um Bar da Baixinha. Se tiver os dois você está de parabéns. Se não tem nem um nem outro, já sabe né, você provavelmente foi criado tomando leite com pera.

Meu Bar da Lôra favorito é um que frequento desde a época de estudante. Fica ali nos arredores do Maracanã. Um sobrado antigo, de fachada alongada, espremido entre dois edifícios bregas supostamente mais modernos. A decoração da parte interna conta com azulejos em xadrez azul e branco  “em parede meia”. Paredes cuja metade de cima não vê um ademão de tinta há tanto tempo que já não é possível lhes definir a cor. As mesas são de aço, daquelas que fazem barulho quando a gente bate o copo. E, o mais importante, a cerveja está sempre muito gelada.

A lôra fica circulando de mesa em mesa. Vez ou outra ela ergue a cerveja da camisinha e sacode. Se estiver vazia, ou quase, ela substitui por uma nova automaticamente. Não precisa nem pedir. Se o cliente questiona, ela oferece um petisco com toda educação e polidez . Persistindo a negativa ela traz a conta. E se você por ventura entrar numa de – não espera aí , só um minuto, estamos decidindo – ela, mui respeitosamente, aponta o ponto de ônibus e diz - o lugar de conversar é ali.

Hoje eu entendo a lôra. Nós éramos um bando de estudante duro que ficava empacando uma mesa, principalmente em dia de futebol, quando o bar estava botando gente pelo ladrão. É que na verdade nós ficávamos fazendo hora até dar o intervalo do jogo quando íamos para o Maracanã tentar entrar de graça. Quase sempre dava certo, desde que o estádio não estivesse lotado.

Nesse tempo era necessário toda uma engenharia financeira para viver esses momentos de lazer e felicidade. Eu dava calote no ônibus, economizava o vale transporte e o vendia num açougue lá em Curicica com deságio de vinte por cento. Dessa complexa operação saía a grana para almoçar no bandejão de 1 real e para bancar a cerveja de quarta e sexta. Ocasiões onde eu dividia a conta com cidadãos igualmente abastados. Cansamos de ser expulsos do Bar da Lôra até a gente descobrir o Altino. 

Altino, moleque boa pinta de São Cristóvão, estudante de engenharia no curso noturno da UERJ. Tinha porte de jogador de vôlei, esguio, dorso bem marcado, bronzeado, braços muito fortes e compridos. O rosto geométrico ornado com cabelos cacheados perfeitamente desalinhados. Os cílios alongados e o olhar firme lhe davam ares de árabe. Colar de contas, roupa despojada. O cara era presença, há de se admitir. Quando a lôra vinha em nossa direção o Altino, vulgo Tino, abria o sorrisão:

- Só um minutinho meu amor, a gente já vai pedir outra.

Ao que ela respondia.

- Ai moreno, assim você me quebra.

O melhor foi o dia que o Tino saiu para ir ao banheiro e ela veio nos expulsar.

- Já deu né rapaziada? Cerveja de vocês está dando dengue aí.

- Calma, cara. A gente tá esperando o Tino.

- Quem?

- Ele - respondi apontando a porta do banheiro.

Corta para o Tino saindo do WC masculino com seu andar de mestre-sala. A lôra ficou estatelada enquanto aquele acontecimento cinematográfico vinha em sua direção.

- Vai me expulsar Lorena? - Lorena era o nome da lôra, dizem.

Malandro.... Deu tela azul na lôra. Ela encarou o Tino por quase um minuto. Colocou uma Brahma na mesa.

- Saideira, por minha conta.

O BAR INTEIRO olhou pra gente. A lôra nunca tinha dado um centavo de desconto para NINGUÉM desde que tinha herdado o bar de seu pai. O portuga morreu de alegria em outubro de 1970 quando o Vasco deu de 5 x 1 no Santos dos recém campeões mundiais Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Pelé e Edu. Eu não me canso de contar essa história e até hoje um total de zero frequentadores do Bar da Lôra acredita em mim. Mas juro que aconteceu, tenho testemunhas.

A gente fechou o Bar da Lôra na despedida de solteiro do Tino. E isso é tudo que posso publicar sobre este dia. 



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional



domingo, 15 de agosto de 2021

Mineiro falando mal de queijo

Dois dos cinco leitores desta coluna queixaram-se comigo da baixa produção no mês que se passou. Escrevi pouco mesmo. Ocorre que passei uns dias exilado em Minas Gerais. Ultimamente, sempre que possível, tenho fugido pra roça. Ando preferindo canário e bem-te-vi a essa gente que não respeita o distanciamento na fila do açougue do Mundial. Diga-se de passagem, entrar na fila do açougue tem se tornado um privilégio.

Em Minas sinto um acolhimento ímpar, comparável talvez ao que sinto na Bahia. Saudades da Bahia.... Esse meu bem-estar mineiro é compreensível: papai veio de lá. Então estar em Minas é estar na casa de meus avós. Sinto um pertencimento incomum em cada ladeira, em cada rua coberta de pedras, em cada sombra de montanha das Gerais. A minha ligação com a Bahia segue um mistério, talvez coisa de uma ancestralidade ainda mais antiga, vai saber.

Quando peguei a Estrada Real, em retorno ao Rio, passei num queijeiro conhecido e comprei algumas peças. Voltar de Minas é assim, a bagagem é sempre maior na volta que na ida. Um docinho de leite aqui, uma pinga acolá, uma linguiça e tal. Quando você vê tem que comprar malas extras. Leva-se sempre um pedaço de Minas no retorno, mais parecido com casa de vó impossível.

 Pois bem, deixei um dos queijos comprados na viagem com papai. Uma semana depois, em uma ligação telefônica, ele me questiona:

- Onde você comprou aquele queijo que você deixou aqui?

- No Airton lá de São João.

- O Airton filho da Isadora?

- Esse mesmo.

- Airton desaprendeu a fazer queijo?

- É,  eu também achei que ele errou na mão de sal dessa vez?

-Errou foi muito. Esse queijo tá horrível. Ruim, muito ruim.

- É...

- Ó... sozinho não dá pra comer, salgado demais. Pra tira-gosto também não presta. Tentei ralar pra fazer pão de queijo num deu também. Ele se esgulepa todo, num rala direito. Com doce de leite estraga o gosto do doce. Botei no angu, talhou o angu. Botei de recheio no pastel, na hora de fritar o pastel pocou todo, quase que me queima. Fiz outro dia aqui um doce de laranja da terra, aquele azedim que você gosta sabe?

- Sei

- Num casou o gosto também. Botei no pão e coloquei na chapa pra derreter, num derreteu, ficou borrachento. Tentei comer com sopa de abóbora, tirou o gosto de abóbora da sopa de abóbora. Esse queijo é tão ruim que nem com goiabada combina. E olha que eu testei com duas goiabadas, aquela de corte a outra derretida, não prestou com nenhuma. Sua mãe quis botar no quindim, não deixei. Outro dia o filho da Genésia veio aqui. Coloquei na mesa pra ver se ele comia. Cê sabe que o fi da Genésia parece frieira, come de tudo...

-Sei...

- Pois é, o fi da Genésia só provou. Você já viu o fi da Genésia só provar alguma coisa?

- Não.

- Pois é. Só provou. Num dá. O danado do queijo é ruim, ruim mesmo. Horrível. Ruim demais da conta. Ruim, ruim, muito ruim.

- Oh, meu pai... Você me desculpa, eu vou reclamar lá com o Airton. Joga esse queijo fora que levo um outro pra você no fim de semana.

- Jogar fora? Cê tá doido? Agora só resta um tiquim, vou acabar de comer ele.





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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...