quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Felicidade



O plantão de Marcos na enfermagem do Hospital Souza Aguiar encerrou-se às sete da noite, porém ele só conseguiu sair às oito e quinze. Tomou o metrô na Central do Brasil e desceu na estação de Del Castilho onde faria baldeação para o ônibus que o levaria à Zona Oeste. Após uma pausa para o lanche dirigiu-se ao ponto, chovia fino, não havia cobertura.  Praguejou em pensamento contra a prefeitura, inconformado.

Foi quando se aproximou um pedinte, esquálido, ressequido, arqueado. Era como se, por obra de algum sortilégio bizarro, tivessem dado vida aos personagens de "Os Retirantes" de Portinari. 

- Um trocado... 

Marcos observou que o pedinte colocava a mão sobre a base do pescoço para falar. Quando ele chegou mais perto, pôde notar que ele havia sido traqueostomizado e que, estranhamente, ainda estava com o filtro do respirador mecânico preso ao orifício em sua garganta. Olhou com um pouco mais de cuidado e viu que, sob o trapo improvisado como agasalho, o pedinte vestia um camisolão de hospital. Não teve dúvidas, aquele sujeito fugira. O tomou pelo braço e arrastou até a esquina. 

- Por que você saiu do hospital? 

- Alta... - Respondeu com dificuldades o pedinte. 

- Fala a verdade meu camarada! – Ralhou Marcos – fugiu por quê? 

- Fome... 

- Fome de quê? Comida aposto que eles estavam de dando. 

O pedinte baixou os olhos, envergonhado. A chuva engrossou. Marcos ofereceu um sanduíche. Ele recusou, só queria uns trocados. Enquanto conversavam o enfermeiro o examinava. A abertura da traqueostomia estava suja, apresentava sinais de infecção, talvez ele tivesse se ferido tentando tirar sozinho o tubo. 

- Você tem que voltar para o hospital... 

- Não! – Respondeu assustado. 

- Vem, eu te levo, te pago um lanche. 

Tentou escapar. Marcos o segurou pelo braço. O pedinte ficou agressivo, mas não tinha forças contra a mão firme do enfermeiro. Marcos insistia com força e persuasão, pensou em ligar para o SAMU, porém seu celular estava sem carga. Olhou para o ponto de ônibus a fim de pedir ajuda. A chuva estava muito forte, mal se podiam distinguir as pessoas que, assustadas, olhavam de longe. Fez sinal para um taxi, todavia o motorista não parou. O pedinte tomou ar com sofreguidão e disse:

- Ninguém vai parar pra ajudar a gente... 

O enfermeiro sentiu-se imensamente só e incapaz – ninguém vai parar pra ajudar a gente - a frase continha uma veracidade acachapante, uma lucidez improvável. Marcos soltou-lhe  o braço, ele não correu. Ficaram ali, dois homens de trinta anos, imóveis naquela esquina de subúrbio, encharcados sob a chuva fria.  Encaravam-se como se entre eles existisse um espelho revelando duas versões antagônicas do mesmo indivíduo. Reconheceram-se, tinham os mesmos olhos castanhos.  Marcos enfim compreendeu o caráter essencialmente solitário da condição humana. Virou-se de costas, o homem tocou gentilmente em seu ombro e o resgatou: 

- Me ajuda... 

- O que eu posso fazer por você amigo? 

- Um real pra eu comprar uma pedra. 

Marcos tirou do bolso uma moeda colorida. Prateada no núcleo, dourada na borda. O rosto do homem encheu-se de uma felicidade infantil. Sorriu, agradeceu com doçura e desapareceu sob a chuva.


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