O plantão de Marcos na
enfermagem do Hospital Souza Aguiar encerrou-se às sete da noite, porém ele só
conseguiu sair às oito e quinze. Tomou o metrô na Central do Brasil e desceu na
estação de Del Castilho onde faria baldeação para o ônibus que o levaria à Zona
Oeste. Após uma pausa para o lanche dirigiu-se ao ponto, chovia fino, não havia
cobertura. Praguejou em pensamento contra a prefeitura, inconformado.
Foi quando se aproximou um
pedinte, esquálido, ressequido, arqueado. Era como se, por obra de algum
sortilégio bizarro, tivessem dado vida aos personagens de "Os
Retirantes" de Portinari.
- Um trocado...
Marcos observou que o pedinte
colocava a mão sobre a base do pescoço para falar. Quando ele chegou mais perto,
pôde notar que ele havia sido traqueostomizado e que, estranhamente, ainda
estava com o filtro do respirador mecânico preso ao orifício em sua garganta.
Olhou com um pouco mais de cuidado e viu que, sob o trapo improvisado como
agasalho, o pedinte vestia um camisolão de hospital. Não teve dúvidas, aquele
sujeito fugira. O tomou pelo braço e arrastou até a esquina.
- Por que você saiu do
hospital?
- Alta... - Respondeu com
dificuldades o pedinte.
- Fala a verdade meu
camarada! – Ralhou Marcos – fugiu por quê?
- Fome...
- Fome de quê? Comida aposto
que eles estavam de dando.
O pedinte baixou os olhos,
envergonhado. A chuva engrossou. Marcos ofereceu um sanduíche. Ele recusou, só
queria uns trocados. Enquanto conversavam o enfermeiro o examinava. A abertura
da traqueostomia estava suja, apresentava sinais de infecção, talvez ele
tivesse se ferido tentando tirar sozinho o tubo.
- Você tem que voltar para o
hospital...
- Não! – Respondeu assustado.
- Vem, eu te levo, te pago um
lanche.
Tentou escapar. Marcos o
segurou pelo braço. O pedinte ficou agressivo, mas não tinha forças contra a
mão firme do enfermeiro. Marcos insistia com força e persuasão, pensou em ligar
para o SAMU, porém seu celular estava sem carga. Olhou para o ponto de ônibus a
fim de pedir ajuda. A chuva estava muito forte, mal se podiam distinguir as
pessoas que, assustadas, olhavam de longe. Fez sinal para um taxi, todavia o
motorista não parou. O pedinte tomou ar com sofreguidão e disse:
- Ninguém vai parar pra
ajudar a gente...
O enfermeiro sentiu-se
imensamente só e incapaz – ninguém vai parar pra ajudar a gente - a frase
continha uma veracidade acachapante, uma lucidez improvável. Marcos
soltou-lhe o braço, ele não correu. Ficaram ali, dois homens de trinta
anos, imóveis naquela esquina de subúrbio, encharcados sob a chuva fria.
Encaravam-se como se entre eles existisse um espelho revelando duas versões
antagônicas do mesmo indivíduo. Reconheceram-se, tinham os mesmos olhos
castanhos. Marcos enfim compreendeu o caráter essencialmente solitário da
condição humana. Virou-se de costas, o homem tocou gentilmente em seu ombro e o
resgatou:
- Me ajuda...
- O que eu posso fazer por
você amigo?
- Um real pra eu comprar uma
pedra.
Marcos tirou do bolso uma
moeda colorida. Prateada no núcleo, dourada na borda. O rosto do homem
encheu-se de uma felicidade infantil. Sorriu, agradeceu com doçura e
desapareceu sob a chuva.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
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