Nos idos de 1830
o menino Timóteo era herdeiro de uma fazenda de café na região de Vassouras,
Rio de Janeiro. Dentre suas traquinagens, a mais frequente era tomar seu cavalo
favorito e se embrenhar pela mata rio acima. Gostava do conforto que lhe dava a
solidão. Apreciava a sensação de liberdade em meio ao canto das saíras e o
murmurinho das águas.
Numa de suas cavalgadas
encontrou um negro fugido que vivia há muito numa gruta escondida na mata. O
menino surpreendeu o negro que se banhava no rio. O homem fugiu arredio para o
meio da mata. Esbarraram-se muitas outras tantas vezes até a primeira conversa
e com o tempo estabeleceram uma relação de amizade. Timóteo vez ou outra trazia
farinha ou café. O negro o pagava com histórias dos antigos congos, que o menino
adorava. Sua favorita era de Xangô a quem o negro chamava de seu protetor. Davam
longas risadas das diferenças entre os nomes das coisas. Enquanto os brancos
chamavam de serelepe uma espécie de roedor que saltava sobre as árvores, os
negros o diziam caxinguelê. Às nádegas os brancos apelidavam de traseiro,
enquanto os negros a chamavam de bunda – bunda parece-me bem mais adequado –
ria o menino. E assim transcorriam as tardes a beira rio.
Certa feita,
no jantar, o menino ouviu uma conversa sobre um homem que havia sido condenado
por acobertar um escravo fugido. No início deu de ombros para o assunto, mas ao
longo das madrugadas a questão passou a incomodar. Ele não tinha muito ideia do
significado da expressão “ser condenado”, mas muito lhe preocupava a
possibilidade disso também ser um pecado. Ouvira falar sobre os horrores do
inferno e temia ser enviado para lá no juízo final. - E se esconder negro fujão
for pecado? - Deus o livre, achou melhor perguntar ao padre.
Assim que
pôde o menino contou ao padre a história de sua amizade com o negro do rio. O padre
quis saber detalhes sobre a localização do homem e de como o menino fazia para
não afugenta-lo quando se aproximava da tal gruta. Aconselhou o pequeno Timóteo
a não mais andar por aí a dar assunto para negros, fugidos ou não.
Recomendou-lhe rezar alguns rosários como penitência.
O padre foi
ao intendente delatar o esconderijo do negro, que foi prontamente recapturado e
levado ao seu dono, o barão. O fazendeiro
entregou ao intendente a recompensa a ser repassada para o padre. Orientou ainda
que o fugitivo fosse levado à forca, pois já era velho, inapto para o trabalho
e reincidente em fugas, desta forma ao menos como exemplo serviria. Um dia após
a execução, o padre foi ao intendente e recebeu quinhentos mil-réis. Enviou o dinheiro para a Salvador, onde tinha
uma irmã e dois sobrinhos menores de idade.
Eis que o
padre fora tomado por um profundo sentimento de culpa. - Seria correto fazer
uma denuncia baseado em um segredo de confessionário? - Foi ter com o bispo.
Este ficou profundamente irritado pelo fato do dinheiro ter sido enviado à irmã
do padre. Claramente o dinheiro havia sido dado à igreja, logo deveria ter sido
remetido à diocese.
De nada
adiantou as explicações que o padre dera sobre a situação difícil em que sua
irmã se encontrava após o falecimento do marido. Um sujeito erradio que havia
torrado o patrimônio da família no jogo e em negócios mal sucedidos. Como
punição o bispo transferiu o padre para uma paróquia isolada no frio da serra gaúcha.
Escreveu ao intendente relatando o roubo do dinheiro, porém sem citar o padre.
Na correspondência o bispo cobrava do “ilustre representante da coroa,
responsável pela manutenção da lei e da ordem, um grande esforço em restituir o
que fora suprimido da igreja”.
O intendente
enviou ao bispo trezentos mil-réis. Disse que, apesar de compreender a posição
da igreja, não havia condições de remeter toda a importância desviada e acreditava
que o valor, embora reduzido, amenizaria os prejuízos tomados. Feito isso, escreveu
ao dono do escravo. Explicou que, se fosse outra pessoa ou instituição, ele não
se esforçaria em reaver o prejuízo, mas sendo a igreja a obra de Deus ele
achara melhor fazer um novo pagamento. Disse-lhe que o fez com recursos da
intendência, que eram poucos, porém só o fizera porque “acreditava que o
ilustre barão compreenderia a situação e restituiria a intendência”.
O dono do
escravo, não gostou da história que ouvira. Porém ponderou – não convém ficar
devendo a essa gente. - Selou e enviou um envelope com setecentos e cinquenta
mil-réis, a mesma quantia que entregara ao intendente da primeira vez. Na manhã
seguinte o barão acordou com uma pulga atrás da orelha. Virou-se para a esposa e
indagou o que fora feito do padre. Pois a alguns domingos notara que estava
outro a rezar a missa. A esposa, carola, explicou que subitamente o antigo
padre fora enviado ao sul, e que sequer tinha se despedido.
- Padre filho de uma puta!
- Te esconjuro Antônio! Isso é
coisa que se diga! – Disse a mulher antes de se retirar confusa e assustada. –
Estás cada vez mais caduco homem!
O barão, depois
de muito fumar e pensar, decidiu escrever ao bispo. Não entrou em detalhes,
porém deixou claro que sabia do “sumiço dado pelo padre ao dinheiro da recompensa”.
Relatou que tinha mandado dar cabo a toda descendência do negro. Afinal, de um
escravo que havia feito até um padre pecar, não podia sair coisa boa. Comprometeu-se
também a cuidar para que a história não se espalhasse e manchasse a imagem da Santa
Madre Igreja. Concluiu a carta solicitando ao bispo fosse depor a seu favor
numa questão fundiária em que estava envolvido contra um primo. As terras, anexas
a sua propriedade, eram reivindicadas pelas duas famílias. Uma declaração
oficial da igreja a seu favor no tribunal seria de grande valia.
Assim foi feito. E após ganhar a contenda o
barão incumbiu um funcionário de demarcar os novos limites da propriedade. A
tropa encarregada pelo serviço encontrou uma estatueta de barro
inexplicavelmente postada sobre uma pedra numa gruta que delimitava a fronteira
sul da fazenda. O artefato fora levado ao barão, que ficou cismado com a
imagem. Era dia trinta de setembro e a baronesa o convenceu a erguer nas
proximidades da gruta uma capela em homenagem a São Jerônimo.
Ainda hoje, a
estatueta encontrada pelos tropeiros enfeita o altar.