sábado, 29 de abril de 2017

Justiça



Nos idos de 1830 o menino Timóteo era herdeiro de uma fazenda de café na região de Vassouras, Rio de Janeiro. Dentre suas traquinagens, a mais frequente era tomar seu cavalo favorito e se embrenhar pela mata rio acima. Gostava do conforto que lhe dava a solidão. Apreciava a sensação de liberdade em meio ao canto das saíras e o murmurinho das águas.

Numa de suas cavalgadas encontrou um negro fugido que vivia há muito numa gruta escondida na mata. O menino surpreendeu o negro que se banhava no rio. O homem fugiu arredio para o meio da mata. Esbarraram-se muitas outras tantas vezes até a primeira conversa e com o tempo estabeleceram uma relação de amizade. Timóteo vez ou outra trazia farinha ou café. O negro o pagava com histórias dos antigos congos, que o menino adorava. Sua favorita era de Xangô a quem o negro chamava de seu protetor. Davam longas risadas das diferenças entre os nomes das coisas. Enquanto os brancos chamavam de serelepe uma espécie de roedor que saltava sobre as árvores, os negros o diziam caxinguelê. Às nádegas os brancos apelidavam de traseiro, enquanto os negros a chamavam de bunda – bunda parece-me bem mais adequado – ria o menino. E assim transcorriam as tardes a beira rio. 

Certa feita, no jantar, o menino ouviu uma conversa sobre um homem que havia sido condenado por acobertar um escravo fugido. No início deu de ombros para o assunto, mas ao longo das madrugadas a questão passou a incomodar. Ele não tinha muito ideia do significado da expressão “ser condenado”, mas muito lhe preocupava a possibilidade disso também ser um pecado. Ouvira falar sobre os horrores do inferno e temia ser enviado para lá no juízo final. - E se esconder negro fujão for pecado? - Deus o livre, achou melhor perguntar ao padre.

Assim que pôde o menino contou ao padre a história de sua amizade com o negro do rio. O padre quis saber detalhes sobre a localização do homem e de como o menino fazia para não afugenta-lo quando se aproximava da tal gruta. Aconselhou o pequeno Timóteo a não mais andar por aí a dar assunto para negros, fugidos ou não. Recomendou-lhe rezar alguns rosários como penitência. 

O padre foi ao intendente delatar o esconderijo do negro, que foi prontamente recapturado e levado ao seu dono, o barão.  O fazendeiro entregou ao intendente a recompensa a ser repassada para o padre. Orientou ainda que o fugitivo fosse levado à forca, pois já era velho, inapto para o trabalho e reincidente em fugas, desta forma ao menos como exemplo serviria. Um dia após a execução, o padre foi ao intendente e recebeu quinhentos mil-réis.  Enviou o dinheiro para a Salvador, onde tinha uma irmã e dois sobrinhos menores de idade.

Eis que o padre fora tomado por um profundo sentimento de culpa. - Seria correto fazer uma denuncia baseado em um segredo de confessionário? - Foi ter com o bispo. Este ficou profundamente irritado pelo fato do dinheiro ter sido enviado à irmã do padre. Claramente o dinheiro havia sido dado à igreja, logo deveria ter sido remetido à diocese. 

De nada adiantou as explicações que o padre dera sobre a situação difícil em que sua irmã se encontrava após o falecimento do marido. Um sujeito erradio que havia torrado o patrimônio da família no jogo e em negócios mal sucedidos. Como punição o bispo transferiu o padre para uma paróquia isolada no frio da serra gaúcha. Escreveu ao intendente relatando o roubo do dinheiro, porém sem citar o padre. Na correspondência o bispo cobrava do “ilustre representante da coroa, responsável pela manutenção da lei e da ordem, um grande esforço em restituir o que fora suprimido da igreja”.

O intendente enviou ao bispo trezentos mil-réis. Disse que, apesar de compreender a posição da igreja, não havia condições de remeter toda a importância desviada e acreditava que o valor, embora reduzido, amenizaria os prejuízos tomados. Feito isso, escreveu ao dono do escravo. Explicou que, se fosse outra pessoa ou instituição, ele não se esforçaria em reaver o prejuízo, mas sendo a igreja a obra de Deus ele achara melhor fazer um novo pagamento. Disse-lhe que o fez com recursos da intendência, que eram poucos, porém só o fizera porque “acreditava que o ilustre barão compreenderia a situação e restituiria a intendência”.

O dono do escravo, não gostou da história que ouvira. Porém ponderou – não convém ficar devendo a essa gente. - Selou e enviou um envelope com setecentos e cinquenta mil-réis, a mesma quantia que entregara ao intendente da primeira vez. Na manhã seguinte o barão acordou com uma pulga atrás da orelha. Virou-se para a esposa e indagou o que fora feito do padre. Pois a alguns domingos notara que estava outro a rezar a missa. A esposa, carola, explicou que subitamente o antigo padre fora enviado ao sul, e que sequer tinha se despedido. 

- Padre filho de uma puta!

- Te esconjuro Antônio! Isso é coisa que se diga! – Disse a mulher antes de se retirar confusa e assustada. – Estás cada vez mais caduco homem!

O barão, depois de muito fumar e pensar, decidiu escrever ao bispo. Não entrou em detalhes, porém deixou claro que sabia do “sumiço dado pelo padre ao dinheiro da recompensa”. Relatou que tinha mandado dar cabo a toda descendência do negro. Afinal, de um escravo que havia feito até um padre pecar, não podia sair coisa boa. Comprometeu-se também a cuidar para que a história não se espalhasse e manchasse a imagem da Santa Madre Igreja. Concluiu a carta solicitando ao bispo fosse depor a seu favor numa questão fundiária em que estava envolvido contra um primo. As terras, anexas a sua propriedade, eram reivindicadas pelas duas famílias. Uma declaração oficial da igreja a seu favor no tribunal seria de grande valia.

 Assim foi feito. E após ganhar a contenda o barão incumbiu um funcionário de demarcar os novos limites da propriedade. A tropa encarregada pelo serviço encontrou uma estatueta de barro inexplicavelmente postada sobre uma pedra numa gruta que delimitava a fronteira sul da fazenda. O artefato fora levado ao barão, que ficou cismado com a imagem. Era dia trinta de setembro e a baronesa o convenceu a erguer nas proximidades da gruta uma capela em homenagem a São Jerônimo. 

Ainda hoje, a estatueta encontrada pelos tropeiros enfeita o altar.



Licença Creative Commons
 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.



Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...