domingo, 28 de maio de 2023

Coragem


Minha avó Maria foi a mulher mais corajosa que viveu ao sopé da Serra da Estrela. Na ocasião o Fragoso, que atualmente é um bairro dormitório, era uma fazenda que produzia frutas e verduras à sombra da montanha.

Onde hoje passam avenidas agitadas cercadas pelo ruidoso comércio de periferia, havia trilhas de terra batida ladeadas por frondosos laranjais. Nas colinas, hoje tomadas pelo capinzal rasteiro, produzia-se abacaxis. Os grotões eram destinados aos bananais e nas várzeas e veredas, atual morada dos pobres mais pobres, plantava-se mandioca e toda sorte de hortaliças. Aquelas terras alimentavam os moradores da capital da jovem república, no extremo oposto da Baía de Guanabara, assim como havia alimentado a capital do império, e todas as civilizações anteriores.

Meus avós eram colonos da fazenda e moravam numa casinha muito distante da sede. Tinham nove filhos, a maioria seguia com meu avô para a lida no campo, enquanto os maiores pegavam pesado no roçado, os menores faziam tarefas mais simples como catar os ovos das galinhas ou tanger as cabras. Apenas as crianças muito pequenas ficavam com a minha avó em casa, dentre elas minha mãe, que se lembra de viver agarrada às anáguas de Dona Maria a testemunhar seus atos heróicos. 

Vovô saía de casa antes dos primeiros raios de luz e era comum que voltasse para casa bem depois do pôr do sol. Sempre iluminando o caminho com a luz cambaleante do candieiro. Na maior parte do tempo era a vovó que, sozinha, cuidava da pequena roça que o coronel permitia plantar ao redor da casa, sem a qual a família não comeria. Além de defender seus filhos pequenos dos mais furtivos perigos.

Teve uma vez que um tarado que rondava a casa foi colocado em seu devido lugar com chá de arrebenta cavalo e muita reza. A carabina, municiada com chumbo e sal grosso, destinava-se aos ladrões de galinha, fossem eles predadores de quatro patas ou duas pernas. Mas de todos os perigos, o que mais incomodava era uma assombração que vinha sacudir as venezianas das janelas ao cair da noite, um pouco depois da Ave Maria.

Vovó colocava os pequenos diante do oratório, passava a mão na foice, abria a porta da cozinha e botava a alma penada pra correr:

- Sangue de Jesus tem poder! Vá de retro que aqui não é seu lugar.

O troço ruim fugia correndo para as bandas do bicão, uma fonte d'água que brotava entre duas colinas.  Essa rotina se repetiu por por semanas, até que minha avó decidiu armar uma tocaia.  

Numa tarde de outono ela colocou as crianças para rezar mais cedo e escondeu-se atrás de um mafuá de quinquilharias que meu avô acumulava na varanda. Quando a alma penada apareceu vovó deu um susto no infeliz e o encurralou no canto entre o tanque de lavar roupa e a parede da casa. 

Ela apontou a foice para o pescoço do desencarnado, que se pudesse ficaria empalidecido. Seu rosto de fantasma não era muito distinguível, pois sua pele era translúcida como de uma água viva. Contudo sua silhueta denunciava que em vida fora um homem branco e rechonchudo.

- O que o sinhô tanto quer aqui, que não me deixa em paz rezando com minhas criança?

- Me desculpa senhora, eu sou de paz. É que eu ouço a senhora rezando com tanta fé. É tão bonito . Daí, eu venho aqui na injeção de pedir que a senhora acenda uma vela pra mim. 

- E por que o sinhô não me disse isso antes?

- A senhora vem pra cima de mim com essa foice, eu fico com medo e fujo.

- Como é? - Vovó enquadrou a alma penada – Não é atoa que não te querem no além, homem frouxo até depois de morto.

- Por favor, minha senhora, eu peço só uma reza, é pra eu achar meu caminho.

- Pois vá em paz, que lhe acendo uma vela e ainda encomendo uma missa.

O espírito agradeceu o foi-se embora para sempre.

Os mais antigos dizem que vovó desencantou três lobisomens, convenceu as mulas sem cabeça que seria melhor e mais organizado se elas só assombrassem  nas noites de quinta-feira, exceto a da semana santa. Curou o umbigo de toda uma geração, acabou com uma epidemia de sarampo, botou pra correr um pessoal que dava golpe vendendo ouro de tolo e desbaratou uma quadrilha que traficava charque de origem duvidosa pelo rio Saracuruna.

 

 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.


 


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