- Tiziu
Não pula.
- Tiziu
Não pula.
- Tiziu
Não pula.
Percebeu que havia algo de errado.
Por maior que fosse o seu esforço ele não conseguia saltar. E cantar assim
parado no galho o deixava profundamente entristecido. Para os pretos o canto e
a dança são faces de uma mesma moeda. Cantar é o que dá significado ao dançar.
E dançar confere existência ao cantar.
Era um dia escaldante no verão de
Ipitangas, distrito de Saquarema, região dos lagos do Rio de Janeiro. E cumprir
assim, pela metade, o seu ofício fora por demais penoso. Tão logo pôde foi procurar Dona Rita,
costureira de mão cheia, mãe de todos, era a única conhecida que poderia
resolver o seu problema. Assobiou em frente ao portão – Tiziu – e foi recebido
pela filha de Dona Rita, uma negra esguia de olhar altivo e postura de
bailarina:
- Bom dia seu Tiziu? A que devo
sua visita?
- Bom dia moça, estou precisado
da ajuda da senhora sua mãe. Minhas molas se quebraram, não consigo mais
saltar.
- Que horror seu Tiziu! O pior é
que mamãe acabou de sair. Ela desceu para o Rio hoje. Talvez volte ao fim do
dia ou então só amanhã.
- Minha Nossa Senhora! E agora?
- Acalma-se seu Tiziu. Ela ficou
de passar antes em Vilatur, na casa de seu Mota, se fores bem rápido...
Nem esperou terminar a frase -
obrigado dona moça!
Voou o mais rápido possível por
cima da restinga, cortou o vento, passou ligeiro pelas nuvens, quase se chocou
com uma garça que voava despretensiosamente.
- Olha por onde anda mal-educado!
Vai salvar o pai da forca?
- Me perdoe dona Garça. É caso de
urgência!
Chegou ofegante à casa de seu
Mota. Um senhor de meia idade, roupas coloridas e longas madeixas. O andar
pendular e os gestos alongados denunciavam que os dias de surf tinham chegado
ao fim. Restara o estilo de vida.
- Bom dia seu Tiziu! O que houve?
Estas esbaforido.
- Minhas molas se quebraram seu
Mota. Só Dona Rita é capaz de ajudar-me.
- Pois ela veio tomar um chá
comigo pela manhã e já se foi. Ao que me parece para o Rio. Mas se achegue,
ainda tenho bolo.
- Não posso seu Mota, amanhã
tenho que trabalhar, preciso das molas.
- Mas o bolo é de massa integral!
Entra logo amigo, o senhor já é de casa.
- Mas seu Mota...
- Vamos fazer o seguinte, tomamos
chá com bolo e então te passo o endereço do seu Walter. Ele mora em Itaúna e conserta de tudo, com
certeza vai lhe ajudar.
- Prefiro café – sorriu.
A conversa descontraída acalmou o
pássaro. Afinal a vida não é só trabalho. Um café, um bolo, uma mesa na varanda,
um par de amigos e o vento da praia são antídotos à falsa sensação de brevidade
do tempo. Um convite à realidade. Ao fim da refeição o tiziu se despediu e voou
despretensiosamente observando a textura da relva. Planou sobre o ar para
descansar, brincou com uma nuvem rechonchuda acenou para o amigo Sabiá.
- Boas tardes seu Tiziu!
Olhou no relógio passara quinze
minutos do meio dia.
- Boas tarde seu Sabiá. Conheces
a casa de seu Walter?
- É aquela na esquina caro amigo,
passar bem.
- Passar Bem.
Seu Walter não estava. Sua esposa
explicou que ele fora resolver a falta d’agua do bairro e só voltaria ao fim da
missão. O Tiziu agradeceu, rodopiou sem rumo no ar e resolveu tomar um açaí na
praia pra refrescar a memória. Tomou banho de mar, enamorou-se com uma turista
de pele branca que usava um biquíni vermelho de cintura alta, estilo bossa
nova. Sentou com ela ao fim da tarde na Praia da Vila. Contaram todos os tons
de dourado que puderam até o sol se apagar no mar. Despediram-se sob as luzes
da igreja de Nossa Senhora de Nazareth.
O tiziu até pensou em voltar na
casa de Seu Walter, mas achou que não caía bem perturbar, ao avançado da hora,
alguém que trabalhara o dia inteiro. Voltou pra Ipitangas com cautela e
coragem. Temia as investidas das corujas e os demais perigos da noite, porém
tinha plena confiança em sua capacidade de voo e em sua percepção.
Sobrevoou a casa de Dona Rita, as
luzes estavam acesas, resolveu tentar:
- Tiziu – assobiou.
- Meu amigo Tiziu! Que bom que
veio! Minha filha contou-me que estivestes a minha procura pela manhã.
- Pois é Dona Rita, fiquei
preocupado da Senhora não voltar hoje.
- E eu lá ia deixar um amigo na
mão. Entre, deixe-me ver essas molas... Hum... Estão gastas... Tenho cá um par
novinho... Mas amigo Tiziu... Suas penas estão cheias de sal. Fostes à praia?
O Tiziu confirmou encabulado.
- Pois então vá ao toalete e
aproveite pra tomar um banho. Passe-me as botas pela porta que num instante lhe
costuro molas novas.
E assim foi feito, o Tiziu tomou
seu banho, pegou de volta as botas pela fresta na porta, experimentou e já pode
sentir o amortecimento novinho em folha. Agradeceu Dona Rita e ia se despedindo
quando foi interpelado:
- Não se vá seu Tiziu, preciso de
uma ajuda sua em outra questão.
Apontou a garrafa de água
ardente.
- Mas Dona Rita, essa passarinho
não bebe.
Riram longa e despretensiosamente.
Entraram pela madrugada a beber e a conversar. Dona Rita contou a história de
como, ainda aos oito anos, aprendera o seu ofício. O Tiziu ensinou à amiga dois
novos passos de dança. Despediram-se quase ao raiar do dia.
Mal pestanejou em seu ninho e já
era hora do expediente do pássaro. Voou feliz da vida para seu galho e:
- Tiziu.
Pulou tão alto que quase errou o
galho na aterrisagem.
- Essas molas novas estão uma
beleza.
- Tiziu!
Pula.
- Tiziu!
Pula.
- Tiziu!!
Pula.