quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Temos um culpado


Pela primeira vez neste século o Botafogo vive um momento de fato glorioso. Lidera o campeonato brasileiro desde as primeiras rodadas e soma uma vantagem avassaladora na tabela de pontuação.

Juan e seus dois filhos não perdem uma única partida no Engenhão. Sempre no setor leste inferior, na vigésima fileira. Os três acomodam-se religiosamente da mesma forma. A caçula senta-se no meio, com a camisa oficial, número sete nas costas. O mais velho a esquerda da irmã, trajando a camisa preta de treino, toma o seu lugar ao lado de um jovem casal tijucano.  Sim eles sempre estão lá na mesma posição. O tijucano é um cara bonachão, com dread bem trançado e uma tatuagem de Jesus Cristo negro cobrindo todo o braço esquerdo. Sua esposa, branquinha e de cabelos encaracolados, parece uma professora da educação infantil. 

O lugar do Juan é a direita da filha. Ele sempre veste sua camisa retrô do Nilton Santos. Já ficou amigo do mageense que se senta ao seu lado. Um senhor idoso, preto e magrinho que usa a camisa do Tulio, àquela do seven-up. Toda partida  o velho torcedor mageense leva um cavaquinho sob o suvaco. Ambos, o homem e o instrumento, aparentam a mesma idade. 

A fileira de baixo invariavelmente é  ocupada por  grupo que freta uma van para vir de Volta Redonda ao Rio. E a de cima por uma turma de ex-alunos da escola técnica federal de química. E assim vai se formando a torcida do Botafogo.  

Porém, na última semana, por causa de um problema na conexão com a internet, o Juan não conseguiu comprar os ingressos para o clássico com o Flamengo. Logo contra o arquirrival. Os meninos ficaram furiosos, o mais velho então, estava à beira de um colapso.

-  Calma – tranquilizou o Juan – a gente vai proceder conforme vem dando certo nos jogos que a gente joga fora do Rio. Vamos ficar aqui neste sofá, sua irmã no meio, você de um lado, eu do outro.

- A mamãe não pode estar em casa.

- Eu sei, eu aviso pra ela, vai dar tudo certo.

A partida é na noite de sábado. O jogo se inicia com clima tenso e após dois, apenas DOIS minutos, Wesley, lateral do Flamengo, cruza uma bola na área e a defesa do Botafogo, num erro tosco, chuta contra o próprio patrimônio. Gol do Fla. Os meninos olham para o Juan, abobalhado com a garrafa verdinha da longnek paralisada no meio do caminho entre o braço do sofá e a sua boca.

- Pai!

- Quê.

- PAI!

- Que foi?

- Tá sem camisa pai... falou a menina choramingando

Juan notou o erro e saiu correndo para o guarda-roupas, revirou de um lado para o outro e nada de achar a camisa retrô do Nilton Santos. Ligou para a mulher. Ela, que estava num barzinho com as amigas da pós-graduação, deu uma enquadrada no malandro e disse que ele se virasse e não voltasse a ligar por um motivo desses.

Juan procurou mais uma vez no armário. Nada de encontrar.  Lembrou-se da pilha de roupas que aguardavam para serem passadas no cantinho da área de serviço. Correu até lá. Derrubou a pilha de roupas no chão e enfim, achou a camisa retrô do Nilton Santos.

Foi o tempo do Juan sentar-se no sofá, terminar o gole na cerveja que havia sido suspenso no início do jogo. Bola no ataque do Fogão, a zaga do Flamengo desarma o Tiquinho Soares, mas a redonda sobra aos pés de Vitor Sá, que chuta sem chances de defesa para o goleiro adversário. Botafogo um, Flamengo também um. Os três comemoraram em êxtase.

A partida segue tensa. Agora estamos no segundo tempo, jogo pegado, porém morno, sem chances claras para ambos os lados. Uma barata entra voando na sala do Juan, as crianças começam uma gritaria.

- Pega! Pega! Mata! Mata!

Poucas coisas nesse mundo são mais apavorantes que uma imensa barata voadora. Num reflexo impensado, Juan tira a camisa retrô do Nilton Santos e num rodopio acerta o inseto que cai ao chão desnorteado. Uma pisada firme, um estalo nojento, está completo o serviço.

Enquanto, ainda sem camisa, o Juan com uma pá e uma vassoura recolhia o cadáver da barata, uma bola era lançada para o Bruno Henrique, o mais talentoso atacante do Flamengo. Veloz como uma flecha Bruno Henrique passa pelos defensores do Botafogo, e num lindo chute acerta o ângulo da meta alvinegra. Golaço do Fla. Daqueles que, de tão bonitos, merecem uma placa.

Botafogo 1, Flamengo 2.

As crianças se negam a olhar para o pai. Nada se ouvia, um silêncio sepulcral se instala na sala. Silêncio que só seria quebrado ao término da partida. Decretada a derrota do Botafogo o filho mais velho do Juan respira fundo e setencia:

- Barata filha da puta.


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