terça-feira, 14 de novembro de 2017

Tape o buraco

Outro dia eu estava viajando pela BR-110, no trecho entre Catu e Alagoinhas na Bahia. Uma localidade de mata verde e campos exuberantes onde a estrada serpenteia evitando as colinas. Nesta região há um céu cálido, sempre adornado com nuvens ligeiras que fazem fibrilar a luz azulada da Boa Terra. A pobreza das vilas que ladeiam a rodovia contrasta com a exuberância de recursos da região. Vez ou outra cai uma chuva de oito minutos e um cheiro mágico invade o ambiente como quem diz – Cê tá na Bahia nego!

Meu amigo Cícero, baiano do recôncavo, conduzia o carro e reclamava das condições da estrada:

- Oá pá isso, ó pá isso, é buraco véi... Bu-ra-co! O cara não tem condições de dirigir numa Bahia véia dessa não pae... Ó pa isso! Agora você vê... O cara...  Ter que escolher... O buraco... Que vai cair? ... Por que se pega no fundo ele se arromba todo... Aí o cara... Escolhe o raso... Que é pra ver se perde só um pneu... Tá entendendo? É pau viu!

- Não é mole não Cícero – Concordei.

- Você acredita Lapinha que outro dia... Eu fui parar em Feira de Santana por conta de uma suspensão quebrada? ... É o quÊ pae? ... Eu rodei foi tudo...   Catu...  Pojuca... Madre... E não tinha UM cara que desse jeito! Foram oito horas de relógio meu amigo... Oito horas andando de reboque nessa Bahia pra arranjar um cara que desse jeito numa suspensão dum prisma... Não tem condições um troço desses não pae!

Foi quando nos aproximamos de um trecho da estrada que estava em obras. Os operários instalavam placas de sinalização na beira do acostamento. O Cícero franziu a testa e disse com um ar consternado:

- Agora você vê Lapinha. Que trabalho sem futuro véi!!! Onde já se viu botar placa numa estrada dessa TO-DA FU-RADA rapaz?

Freou bruscamente o carro. Fui jogado com violência para frente e puxado de volta pelo cinto. O Cícero parou bem na frente de um operário e baixou o vidro:

- Ei! .... EEEEEEI... Cê tá pondo placa?

- É o quÊ?

- Você taí pondo placa?

- Não, eu tô é pescando. Você não tá vendo?

- Vá pra porra véi! Serviço sem futuro esse o seu. Uma estrada lascada dessa, toda furada e você aí pondo placa?

- Sim.

- E tá escrito o que aí? Cuidado com o buraco?

- Cuide de sua vida pae... Eu lá tô ligando pro que tá escrito.

- Pois não ponha placa não meu filho... Tape o buraco?

- Que que é pae?

- Tape o buraco. Não ponha a placa nãaaaao véi.

- Mas rapaz... Você não tem o que fazer não é?

- Tape a zorra do buraco meu amigo. Não ponha placa não... Adianta o que isso? Ó pa lá, é só buraco , tape essa zorra toda. Não ponha placa não vá.

- E você acha que tô aqui fazendo o que quero?  Não me aborreça não viu!

- Pois então... Já que tá aqui tape o buraco.

- Mas meu amigo... Eu tÔ aqui trabalhando...

- Então pae... Não ponha placa não...

- Cê quer que eu faça O quÊ?

- Oxente! Tape a zorra do buraco!

- Rapaz... O lance aqui é por placa...  Isso de buraco não é com a gente não...

- Que placa?... Pra que placa?...  

- E eu lá sei?

- Ó pra lá o buraco... E vocês aí pondo placa... Ó pra lá o buraco... Ó pra lá o cara se lascando to-di-nho lá pra passar com o caminhão... Tá Vendo? ... Adianta o que essa placa aí pae?

- Rapaz...

- Ponhaplacanãotapeoburaco!

- Má...

- Adianta o quÊ esse serviço de vocês?

- Quem sabe?

- Me diga você!

- Ah... Vá perguntar ao prefeito que mandou fazer zorra... Eu não tenho nada com isso não pae!

- Prefeito?

- Sim

- Pre-fei-to?

- SIMMM

- PRE-FEI-TO!?

Subiu o vidro e saiu cantando pneu. Resmungou por alguns minutos. Virou-se para mim e sentenciou:

- Agora você vê Lapinha... Toda vez que me lasco tem um porra dum político no meio.



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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Comuna carioca



Na contramão da difusão do individualismo e de toda frescura decorrente da invenção do mertiolate que não arde, resiste nos subúrbios cariocas um costume que tem muito mais a dizer sobre a natureza do homem que o clássico do Buarque de Holanda, o pai.

Se alguém quiser conferir a vera o que estou falando, o melhor lugar a se visitar é a Rua Paratinga em Vista Alegre, onde reza a lenda existe um cruzamento com quatro botequins, um em cada vértice. Nesses estabelecimentos, enquanto a conversa se desenrola, as garrafas acumulam-se na mesa. Daí, quando alguém precisa ou simplesmente cisma em ir embora, levanta, pega quantas garrafas puder pagar e acerta no balcão. Outrora o cara simplesmente se despede e fala: na próxima a forra é minha. Tudo numa boa, como se diz por aqui: ninguém esquenta a cabeça. Nem o dono do bar, que guarda o costume de deixar a saideira por conta – essa é da casa.

Isso porque por aqui a mesa do bar não é um lugar de consumo, ou de gastronomia - eca! Porém um lugar de encontro. Ao longo do dia a mesa vai enchendo-se e esvaziando-se. Não de garrafas a pagar, mas de pessoas que compartilham histórias e vidas. Às vezes, o cara passa no bar, toma uma, sai, vai ao mercado, almoça com a família, tira um cochilo e volta para mesma mesa continuando a resenha.  Não necessariamente com os mesmos caras, pouco importa.

Outro dia me encontrei com um cidadão que até hoje está inconformado com o desfecho da copa de 82, segundo ele a culpa foi do Oscar. Semana passada um advogado reivindicava a invenção do aplicativo que permite dividir a conta do Uber – a ideia foi minha! Dois dias antes um maluco jurava de pé junto ter um Portinari inédito no corredor de sua casa em Teresópolis. O quadro teria sido doado pelo próprio a uma tia, supostamente sua amante.  Perguntei se por acaso a velha tinha feito o primeiro nudes conhecido na história do Brasil, o cara se ofendeu... vai vendo.

Conheci uma menina dona de dezessete cópias da mesma chave, a da porta de casa, ela sempre “acha” que perdeu e acaba persuadindo o namorado a ir ao chaveiro. Uma outra garota é de Minas, mas odeia queijo e torce pelo Flamengo. Tem também um cara de cento e quarenta e dois quilos decidido a me convencer que coca zero emagrece. Um botafoguense que não possui uma única peça de vestuário vermelha para não correr o risco de, por descuido, conjugar com qualquer outra peça preta – tesconjuro, pé de pato, mangalô três vezes! E por fim, ouvi falar de um paulista expatriado que decorou o nome de todas as ruas do Rio.

- Aí Toti, onde fica a Rui Barbosa?

- Se for rua é na Pavuna, a avenida fica no Flamengo. Qual o CEP?

Dizem que quando o Google demora a responder é porque os caras do Vale do Silício estão ligando pro Toti.

Assim, pesar do embrutecimento decorrente das desigualdades obscenas da cidade a carioquisse resiste nas ruas. Sejam elas sinuosas como na Ilha do Governador, ou paralelas como em Bangu. Morar no Rio de Janeiro tem sido barra pesada, mas conviver é galho fraco, fraquíssimo. O carioca vive da amizade de um dono de bar resmungão, do informalismo da mesa na calçada e sobretudo da parceria nos bairros.

- Partiu trocar uma ideia?




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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O primeiro sabiá do ano

Os sabiás têm por hábito cantar ao fim do inverno, inaugurando a luz e os ventos da primavera. Ventos que alcançaram-me numa viagem pelas montanhas de Minas Gerais, num trecho de estrada às margens do Parque Estadual do Itacolomi.

Há no topo desta rodovia uma ponte seca e uma curva acentuada à esquerda donde se descortina uma imensidão de serra. A sensação é de que uma infinitude de colinas caminha ao vento numa marcha serena. A luz que neste trecho é prata e vibrante vai tomando um tom de sépia na medida em que nos aproximamos de Ouro Preto, onde uma linha assimétrica de casarões ergue uma montanha do fundo de um vale.

Uma fila de janelas coloridas serpenteia pelas encostas num traçado de córrego, teimoso e cambaleante. Diante desta visão fui tomado por uma sensação de pertencimento ímpar. De alguma maneira que não posso explicar eu era parte daquele acontecimento: ouropretano. Andei ladeira por ladeira com paradas estratégicas para broas de milho e cafés passados no coador de pano. Outras ladeiras mais e encontrei velhos amigos. Tomamos pinga, um jiló para tirar o gosto da pinga, um torresmo para tirar o gosto do jiló...

Segui minha caminhada e me deparei com um largo onde havia uma igreja que parecia concebida por um sonho. Perdi a conta de quanto tempo me custou observar todos os contornos da faixada barroca.  Nos fundos havia um cemitério pequenino e mais adiante um jardim donde se avista todo o casario colonial. Pude ver a brisa acariciando os telhados e senti a luz parar como numa fotografia antiga. Foi então que aconteceu, assim mesmo de repente, mágico. Ouvi o primeiro sabiá do ano, saudando a vida com sua canção de flautista apaixonado.


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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Bodocongó



Chuva fina, vento frio, cortante. Uma névoa espessa cobrindo o céu e o horizonte donde mal se podiam distinguir os edifícios. Assim a Paraíba me recebeu, no inverno de Campina Grande.

Fui recepcionado com pompas de poeta, logo eu. Levaram-me para jantar no “La Forneria”. Salão bem decorado, quadros renascentistas nas paredes, guardanapos de pano e o escambau. Tudo muito bem ornado com uma pegada moderninha, acabamento industrial, tijolos aparentes, pé direto elevado. Enfim, ambiente de deixar caído qualquer queixo barbudo de hipster.

Pois bem, enquanto eu descobria meu risoto com basílico, pinoli e tudo mais, deixei escapulir em voz alta um pensamento:

- Eu pensava mesmo em comer um bodezinho assado hoje...

- E é o que?

O estrago já estava feito, deixei fluir o sincericídio:

- Um bodezinho, uma carne de sol ... e no lugar desse vinho, que está ótimo por sinal, eu queria mesmo era essa cachaça boa que vocês fazem aqui na Paraíba.

- Então quer dizer que o poeta é da bagaceira?

- Ha ha ha.... - respondi com uma gargalhada

- Oxente! E eu aqui nessa frescura que nem gosto!?

            - Foi você que me trouxe aqui. Sofreu porque que quis.

- Sofreu um breu! Simbora que você tá é na Paraíba.

Perdemos a noite, mas ganhamos a madrugada. Urbana e fria, porém agora, estrelada. Num instante estávamos margeando o Açúde Velho com suas obras modernistas. Descemos a Vigário Calixto e adentramos ao “Bar na Volta”. Do presunto Parma e merlot para tripa e cachaça de Areia. Cachaça extremamente gelada, viscosa, como manda a tradição paraibana.

Dalí retornamos ao centro. O comércio da Rua Venâncio Neiva dormia tranquilo, nos permitindo observar o contorno delicado de seus sobrados em art nouveau, timidamente espremidos, entre letreiros e toldos de lona. Rodeamos a rua Marques do Herval onde a Praça da Bandeira é ornada por algarobas, poucos buritis e pelo evidente prédio azul do Colégio da Imaculada Conceição Damas. Nesta praça as barraquinhas fazem a alegria dos boêmios mais resitentes.

Seguimos vagando pela madrugada. No alto da rua Dom Pedro II, pense numa ladeira, avisa-se o Bodocongó. Com suas águas plácidas e arredores ajardinados. No meio do açude um único barquinho, à deriva na madrugada. Donde talvez, àquela hora, um casal de universitários era feliz perdidos com um remo só. Do outro lado do açude, atravessando o Campus da Universidade Estadual da Paraíba há um mirante, onde os românticos velam o sono da cidade.

Os primeiros raios de sol ganhavam o horizonte da Borborema e eu ainda declamava meus versos aos últimos notívagos.

- Simbora pra feira Lapinha.

- Fazer o quê?

- Tomar café da manhã ué?

- Na Feira?

- Você não queira comer bode?



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domingo, 2 de julho de 2017

Casamento

Era um desses feriadões em que os cariocas debandam para o interior do estado. Fui com um grupo de amigos para um sítio na verde Guapimirim. O caseiro nos recebeu com péssimo humor. Na realidade não era caseiro, era um sujeito que invadira o sítio  para plantar umas mudas de aipim. Dias depois descobrimos que o sujeito que nos alugara o sítio também era um invasor, o que nos tornava uma espécie de metainvasores. Mas isso é assunto para outra crônica, escrita talvez pelo INCRA.


O local era um pouco menos que modesto, porém adorável. Havia um fogão a lenha, um campinho para o futebol, uma cachoeira a poucos metros da soleira da porta e um singelo jardim de maria-sem-vergonhas sombreadas por enormes samambaias. Durante o dia as borboletas amarelas só não superavam em número as estrelas que ornavam o magnífico céu noturno. O mais iluminado céu noturno jamais visto pelos nossos olhos cariocas, acostumados com as lâmpadas vapor de sódio do subúrbio.


Num fim de tarde preguiçoso, quando o horizonte esboçava tons violáceos,  meu campadre Luciano e eu jogavamos duas dúzias de conversa fora. Estávamos fazendo fumaça para espantar os maruins quando, vindo da cachoeira, apareceu o Otelo. Otelo era um negão botafoguense e budista,  sujeito de riso fácil, mas que trazia a cara amarrada.


- O que houve meu amigo?


- Um absurdo Lapinha! Uma afronta, uma desonra!


Nós tentamos acalma-lo,  mas o sujeito estava indomável feito um siri enlatado. Praguejava, gesticulava e trazia os olhos mareados. Quem explicou a história toda foi o Natanael que veio da cachoeira minutos depois. Natanael era o maranhense mais maranhense da história. Contou que foi um pitu, malandro crustáceo de águas fluviais, que, sem autorização, mordera a bunda do Otelo.


- Mordeu?


- Mordeu e fugiu!


- A gente não pode admitir isso! Vai ter que casar.


- Vai ter que casar - repetimos em coro


Organizamos um grupo de busca. Otelo se animou. Dividiu as tarefas - você vai revirar as pedras, você arruma uma vara pra catucar as locas - dava ordens feito um sargento. A noite já tinha caído, Luciano arrancou a bateria do passat e improvisou uma lanterna com uma lâmpada incandescente. Entramos mata a dentro como um bando de jagunços furiosos.


Reviramos cada canto do Rio. Um grupo de cascudos juntou-se à nossas causa. Interrogamos os bagres, as piabas e duas traíras muito suspeitas .  Capituramos oito pitus e levamos ao Otelo para reconhecimento. Nenhum era o meliante. Uma rã falastrona se identificou como testemunha. Deu um longo depoimento, o relato tinha tantos detalhes que só serviu para tumultuar.


Quando perdermos a esperança de achar o pitu fujão fizemos uma conferência e decidimos exigir ao menos o pagamento do dote. Levamos da cachoeira uma penca de banana da terra e duas acarás. Para preservar a honra do Otelo colocamos uma pedra sobre o assunto.


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terça-feira, 30 de maio de 2017

Aqueles dias

Denise acordou sobressaltada. Olhou o relógio, estava atrasada. Pulou da cama, sentiu uma dor aguda na base do abdômen. Teve vontade de voltar pra cama. Lembrou de sua mãe - olha o pé no chão frio menina - calçou os chinelos.

Banhou-se em tempo recorde. Vestiu-se, foi a cozinha, teve vontade de comer pão com manteiga e de beber café. Tomou um shake sem graça.

Antes de sair olhou-se no espelho, conferiu que horas eram. Só dava tempo de "passar um batonzinho", escolheu um par de óculos escuros bem grandes. Pôs os brincos, detestou, trocou o par, bem melhor. Abriu a porta ainda estava escuro. Sentiu medo. Saiu.

Desceu a rua, chegou na avenida Automóvel Clube. Se fosse mais cedo poderia ir até o ponto final pra tentar viajar sentada, porém não havia tempo. Lá vem o ônibus, cheio. Teve vontade de esperar o próximo. Pegou aquele mesmo, foi de pé.

Antes de chegar na avenida Brasil o coletivo já estava apinhado. Alguém gritou: - Lotou piloto! Mas ele seguia parando em todos os pontos. Num certo momento Denise sentiu um cotovelo em sua costela, deu uma chegadinha pro outro lado. Ficou bem debaixo do suvaco de  um sujeito. Suvaco ou cotovelo? Sentiu vontade de gritar.  Calou- se e escolheu o suvaco, pelo menos o coleguinha tinha tomado banho.

Cochilou sob o suvaco  amigo, acordou não tinha andado cem metros, tudo parado - é hoje. Seguiu cochilando e acordando. Duas eternidades e meia depois chegou na Central do Brasil, desceu às pressas. Sentiu fome, tomou o metrô.

Chegou milagrosamente dois minutos antes do expediente. Sentiu-se uma heroína. A dor apertou um pouquinho - não sei pra quê esse ar condicionado tão forte! Saiu do elevador topou com a supervisora - a make tem que vir pronta de casa Denise, que cara pálida é essa? Sentiu vontade de mandá-la pra puta que pariu. Disse bom dia e foi para o vestiário se maquiar.

A manhã passou num flash. Foi almoçar com os amigos. Sentiu vontade de comer filé com fritas. Pediu quiche de ricota e salada. De sobremesa um brigadeiro, não dois. Voltou para o trabalho, havia um burburinho de que a empresa faria um novo corte de pessoal - dizem que vai passar outra barca - sentiu vontade de chorar. Pensou que poderia ser fofoca, engoliu o choro.

Foi do trabalho pra faculdade. Assistiu uma aula e meia. A metade da segunda aula dormiu mesmo. Na volta havia fila para o ônibus. - Gente esse povo não foi pra casa ainda não? Sai da rua povo! Negou-se a voltar em pé. Sentiu pressa de chegar em casa, mas ficou na fila até entrar no terceiro ônibus.

Sentou na janela. Um sujeito com pinta de estagiário sentou ao seu lado. Ficou torcendo para o ônibus encher - assaltante só pega ônibus vazio. O coletivo lotou. Denise sentiu-se estranhamente protegida pela multidão. Teve vontade de dormir.  Mas o sono, abundante na aula, havia ido embora. Foi revisando a matéria.

O motorista serpenteava ligeiro pelas ruas. Denise sentiu-se enjoada, fechou o livro - não tem condições da pessoa estudar assim gente! Ficou assistindo a cidade pela janela. Sentiu-se entediada e melancólica. Abriu o Facebook. Sentiu-se menos entediada e muito mais melancólica.

Várias avenidas depois a dor ainda incomodava.  O sujeito ao seu lado levantou-se e deixou cair uma folha de papel. - Moço... Denise tentou chama-lo, mas ele sorriu e desceu apressado. Ela desdobrou a folha e leu - tu é muito gata - escrito em letra de forma com um coração desenhando no final. Denise sentiu vontade de sorrir. Sorriu.



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sábado, 29 de abril de 2017

Justiça



Nos idos de 1830 o menino Timóteo era herdeiro de uma fazenda de café na região de Vassouras, Rio de Janeiro. Dentre suas traquinagens, a mais frequente era tomar seu cavalo favorito e se embrenhar pela mata rio acima. Gostava do conforto que lhe dava a solidão. Apreciava a sensação de liberdade em meio ao canto das saíras e o murmurinho das águas.

Numa de suas cavalgadas encontrou um negro fugido que vivia há muito numa gruta escondida na mata. O menino surpreendeu o negro que se banhava no rio. O homem fugiu arredio para o meio da mata. Esbarraram-se muitas outras tantas vezes até a primeira conversa e com o tempo estabeleceram uma relação de amizade. Timóteo vez ou outra trazia farinha ou café. O negro o pagava com histórias dos antigos congos, que o menino adorava. Sua favorita era de Xangô a quem o negro chamava de seu protetor. Davam longas risadas das diferenças entre os nomes das coisas. Enquanto os brancos chamavam de serelepe uma espécie de roedor que saltava sobre as árvores, os negros o diziam caxinguelê. Às nádegas os brancos apelidavam de traseiro, enquanto os negros a chamavam de bunda – bunda parece-me bem mais adequado – ria o menino. E assim transcorriam as tardes a beira rio. 

Certa feita, no jantar, o menino ouviu uma conversa sobre um homem que havia sido condenado por acobertar um escravo fugido. No início deu de ombros para o assunto, mas ao longo das madrugadas a questão passou a incomodar. Ele não tinha muito ideia do significado da expressão “ser condenado”, mas muito lhe preocupava a possibilidade disso também ser um pecado. Ouvira falar sobre os horrores do inferno e temia ser enviado para lá no juízo final. - E se esconder negro fujão for pecado? - Deus o livre, achou melhor perguntar ao padre.

Assim que pôde o menino contou ao padre a história de sua amizade com o negro do rio. O padre quis saber detalhes sobre a localização do homem e de como o menino fazia para não afugenta-lo quando se aproximava da tal gruta. Aconselhou o pequeno Timóteo a não mais andar por aí a dar assunto para negros, fugidos ou não. Recomendou-lhe rezar alguns rosários como penitência. 

O padre foi ao intendente delatar o esconderijo do negro, que foi prontamente recapturado e levado ao seu dono, o barão.  O fazendeiro entregou ao intendente a recompensa a ser repassada para o padre. Orientou ainda que o fugitivo fosse levado à forca, pois já era velho, inapto para o trabalho e reincidente em fugas, desta forma ao menos como exemplo serviria. Um dia após a execução, o padre foi ao intendente e recebeu quinhentos mil-réis.  Enviou o dinheiro para a Salvador, onde tinha uma irmã e dois sobrinhos menores de idade.

Eis que o padre fora tomado por um profundo sentimento de culpa. - Seria correto fazer uma denuncia baseado em um segredo de confessionário? - Foi ter com o bispo. Este ficou profundamente irritado pelo fato do dinheiro ter sido enviado à irmã do padre. Claramente o dinheiro havia sido dado à igreja, logo deveria ter sido remetido à diocese. 

De nada adiantou as explicações que o padre dera sobre a situação difícil em que sua irmã se encontrava após o falecimento do marido. Um sujeito erradio que havia torrado o patrimônio da família no jogo e em negócios mal sucedidos. Como punição o bispo transferiu o padre para uma paróquia isolada no frio da serra gaúcha. Escreveu ao intendente relatando o roubo do dinheiro, porém sem citar o padre. Na correspondência o bispo cobrava do “ilustre representante da coroa, responsável pela manutenção da lei e da ordem, um grande esforço em restituir o que fora suprimido da igreja”.

O intendente enviou ao bispo trezentos mil-réis. Disse que, apesar de compreender a posição da igreja, não havia condições de remeter toda a importância desviada e acreditava que o valor, embora reduzido, amenizaria os prejuízos tomados. Feito isso, escreveu ao dono do escravo. Explicou que, se fosse outra pessoa ou instituição, ele não se esforçaria em reaver o prejuízo, mas sendo a igreja a obra de Deus ele achara melhor fazer um novo pagamento. Disse-lhe que o fez com recursos da intendência, que eram poucos, porém só o fizera porque “acreditava que o ilustre barão compreenderia a situação e restituiria a intendência”.

O dono do escravo, não gostou da história que ouvira. Porém ponderou – não convém ficar devendo a essa gente. - Selou e enviou um envelope com setecentos e cinquenta mil-réis, a mesma quantia que entregara ao intendente da primeira vez. Na manhã seguinte o barão acordou com uma pulga atrás da orelha. Virou-se para a esposa e indagou o que fora feito do padre. Pois a alguns domingos notara que estava outro a rezar a missa. A esposa, carola, explicou que subitamente o antigo padre fora enviado ao sul, e que sequer tinha se despedido. 

- Padre filho de uma puta!

- Te esconjuro Antônio! Isso é coisa que se diga! – Disse a mulher antes de se retirar confusa e assustada. – Estás cada vez mais caduco homem!

O barão, depois de muito fumar e pensar, decidiu escrever ao bispo. Não entrou em detalhes, porém deixou claro que sabia do “sumiço dado pelo padre ao dinheiro da recompensa”. Relatou que tinha mandado dar cabo a toda descendência do negro. Afinal, de um escravo que havia feito até um padre pecar, não podia sair coisa boa. Comprometeu-se também a cuidar para que a história não se espalhasse e manchasse a imagem da Santa Madre Igreja. Concluiu a carta solicitando ao bispo fosse depor a seu favor numa questão fundiária em que estava envolvido contra um primo. As terras, anexas a sua propriedade, eram reivindicadas pelas duas famílias. Uma declaração oficial da igreja a seu favor no tribunal seria de grande valia.

 Assim foi feito. E após ganhar a contenda o barão incumbiu um funcionário de demarcar os novos limites da propriedade. A tropa encarregada pelo serviço encontrou uma estatueta de barro inexplicavelmente postada sobre uma pedra numa gruta que delimitava a fronteira sul da fazenda. O artefato fora levado ao barão, que ficou cismado com a imagem. Era dia trinta de setembro e a baronesa o convenceu a erguer nas proximidades da gruta uma capela em homenagem a São Jerônimo. 

Ainda hoje, a estatueta encontrada pelos tropeiros enfeita o altar.



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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...