quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Meu ideal seria uma história de Natal


Meu ideal seria escrever uma história de Natal. Mas não uma história de Natal melodramática, que causaria comoção e reflexão, disso este ano já está cheio. Eu queria escrever uma história de Natal bem engraçada, mas tão engraçada que a minha amiga que mora no Cachambi com oito gatinhos risse, risse tanto que chegasse a ter dores abdominais. E que então ela ligasse, sim ela não mandaria mensagem, ela ia telefonar, habito hoje em dia só se justifica por muita urgência ou necessidade, pois ela ia ligar não para um, mas para dois amigos só para contar a minha história. E eles também iam rir muito. E todos, inclusive ela mesma ficariam espantados por ver minha amiga do Cachambi rir tanto. E a minha história seria um fio de esperança para ela que anda doente pois viveu dias terríveis em 2020.

 

E minha história chegaria a um casal que estivesse muito aborrecido um com ou outro, pois se magoaram imensamente nos últimos meses. E a mulher ia ler a minha história e rir, o que causaria grande raiva no marido. Mas que quando ela contasse minha história para ele, ambos rissem juntos, como há muito não faziam. E decidissem conversar, e cada um a seguir o seu caminho. E encontrassem cada qual seu quinhão de felicidade na vida. E que daqui uns anos lembrassem um do outro com ternura. E que tivessem boas memórias de um amor que um dia foi eterno.

 

E que minha história se espalhasse somente pelo subúrbio. Porque ela seria tão repleta de clichês e lugares comuns que não faria o menor sentido fora daqui, sequer na Tijuca a entenderiam. Mas que em algum botequim em Quintino alguém contasse a minha história e todos rissem, e alguém nesse botequim ia ficar tão feliz que pagaria uma rodada até para os mendigos da rua. E que num salão em Santíssimo a manicure tirasse um bife de um dedão de uma senhora por não conseguir controlar a gargalhada. E a senhora de cujo dedo o bife fora tirado não chegasse a sentir dor, de tanto rir de minha história de Natal. E que na rodoviária da Pavuna um motorista ouvisse a minha história e decidisse abandonar a profissão – mas que diabos, eu não gosto mesmo de dirigir! Então ele voltaria para sua cidade no Sul de Minas e passaria a viver de contar histórias aos turistas.  

 

E que aos poucos minha história de Natal iria se espalhar pela Baixada, e seria contada de mil formas diferentes, mas que em todas elas minha história guardasse o humor, a surpresa e a leveza. E em Nilópolis ela fosse atribuída a um camelô do trem, em Edson Passos a um pastor da igreja Maranata, em Mesquita diriam tê-la ouvida de um radialista e na Chatuba jurassem que ela fora traduzida do mandarim por um dono de pastelaria. E em um Natal desses  minha história chegaria a um pescador bem pobre e bem velho em Suruí, e ele ficaria tão feliz ao ouvi-la que diria – em todos esses anos eu nunca ouvi uma história tão engraçada, ela só pode ter sido inventada pelo João lá do Cu da Mãe.

 

E um dia minha história ia chegar ao meu pai, que me ligaria na mesma hora para contar, e me perguntaria se por acaso eu conhecia o autor daquele causo. E eu diria que uma história assim tão boa e tão estapafúrdia só poderia ser uma versão mal feita de algum cronista famoso do século passado. E eu esconderia humildemente a verdade para sempre: que eu inventei toda a minha história de Natal após um gole de pinga, quando pensei na tristeza da minha amiga doente, que é louca dos gatos, e que mora no Cachambi.



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Bolo quente


Casa de vó, fim de tarde, criança para todo lado no jardim, bolo no forno, todo cenário para a mais absoluta paz e harmonia. Mas nem tanto. Iniciei uma discussão ferrenha com ela por conta de: bolo quente.

Explico, o bolo quente está no ápice de sua gostosura. É perfeito. Macio, tenro, sai aquela fumacinha que carrega todos os aromas. Os sabores explodem na sua boca. Sente-se a manteiga, o leite, o açúcar. A pessoa sente até a brisa da hora que o grão de trigo foi colhido.  Mas mamãe tem uma regra:

- Não pode comer bolo quente que dá dor de barriga.

- Dá o que mãe? Isso não faz o menor sentido.

- Espera amornar... Vai te dar piriri.

Esse “espera amornar” só serve para o bolo perder 40% de seu sabor, e no verão do Rio isso demora quatro séculos e meio para acontecer.  Grande perda de tempo.

- Vocês se formam, leem, viajam e começam a achar que o conhecimento dos antigos é só crendice.

- Não apela mãe.

- Então come, você tem quarenta anos, é pai de família, sabe de tudo né? Come então.

- Mãe não é isso.

- Agora eu quero ver você comer.

Comi.

O que tenho a dizer é que o bolo estava simplesmente espetacular. Mamãe tem mãos de fada, era uma broa de milho fofinha. Por cima uma casquinha quase imperceptível de queijo. Gotas de goiabada salpicadas no meio da massa numa proporção diminuta, no ponto de incrementar a doçura sem roubar o protagonismo. Um café para acompanhar, olha... Vocês estão vendo que estou me esforçando, mas não dá para descrever a delícia que foi comer aquele bolo quentinho. 

O que também não dá para descrever é a sensação de fraqueza e vazio que sinto após passar quase duas horas e meia sem me levantar da privada. Além de todos os fluidos, a dignidade e a macheza abandonaram por completo o meu corpo. Acho que tive um pequeno desmaio e fui acordado por mamãe que bateu a porta do banheiro e disse:

- Formou na federal né filho? Sabe de tudo esse meu menino.



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sábado, 12 de dezembro de 2020

Curitiba sabe


Hoje lembrei de Curitiba. A última vez que estive na cidade fui com o amigo Luiz Carlos. Moleque bom, cria da Vila do João. Ainda existia horário de verão então sempre dava tempo de turistar ao fim do expediente. 

Pausa para dizer que o horário de verão é  mais uma das perdas que a gente vem empilhando ultimamente. 

Um dia a gente foi ouvir Bossa Nova no lago da Pedreira Paulo Leminski, onde fica a Ópera de Arame. No outro uma corridinha no Barigui. Café com banoffi no Alto da XV. Cerveja na Vicente Machado. E assim fomos mapeando a cidade. 

No último dia fomos comer pierogi na feira do Água Verde. Local animado e de rara autenticidade. Estava até rolando um batuque:

- E esse pagode aí negão?

- Dá pro gasto Lapinha.

- E eu que pensava que São Paulo era o túmulo do samba.

- Não tem mais isso parceiro. É tudo nosso.

Saímos da feira já tarde, fomos caminhando na esperança de achar um outro boteco aberto. Quando passamos pela praça do Japão o Luiz Carlos me diz:

- Puta que pariu mas essa cidade...  É Praça do Japão, Bosque Alemão, Portal Italiano. Cadê a homenagem dos preto?

Na hora eu pensei em responder que o período pós lei áurea foi marcado por políticas de embranquecimento da população que trouxe imigrantes europeus aos milhares dando-hes condições de formar o que hoje se conhece como classe média no sul e no sudeste. Enquanto isso os descendentes dos africanos escravizados eram varridos para debaixo do tapete social. Mas daí eu estaria ensinando Padre Nosso ao vigário.

É fato que existe, há pouquíssimo tempo, um memorial da Imigração Africana, no Pinheirinho em Curitiba. É fato também que ele não consta nos roteiros turísticos. As jardineiras passam longe de lá. É fato também que o nome do monumento está errado, pois não houve imigração africana, houve diáspora, para se dizer o mínimo.

Há também uma ou outra  homenagem modesta na região central. Modesta porque, enquanto cidade Curitiba foi do nada a um importante entreposto tropeiro após a construção do complexo de casarões do Largo da Ordem. Conjunto urbano cuja grandeza foi viabilizada pela técnica de madeira e taipa trazida por construtores africanos escravizados. Tempos depois, Curitiba foi de entreposto tropeiro à grande cidade graças à abertura da Estrada Graciosa e da construção da Ferrovia Paraná-Paranaguá. Ambas obras da engenharia dos irmãos Rebouças.  Baianos que nasceram escravos, foram forros e tornaram-se os maiores urbanistas de seu tempo.

Mas, voltando ao meu passeio noturno com o amigo Luiz Carlos.  Após sua indagação eu fiz uma longa pausa em silêncio, olhei para os arredores. Uma parede de edifícios guarneciam as ruas perfeitamente paralelas, uma muralha que se estende até onde a vista alcança. Esse pedaço da cidade, tão bem arquitetado, te faz acreditar que a vida urbana é uma possibilidade real.  Lembrei de Enedina, primeira mulher formada engenheira no Brasil, curitibana e negra.

- Duvido que tenha um prédio desse que um preto não tenha colocado a mão pra levantar parceiro.

- Vai vendo... A gente sabe. Eles também.


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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...