Reclamação de defunto

Afonso Barreto, natural desta cidade, residente que foi quando vivo, em muitos endereços, sendo por último o situado numa transversal à rua Aquidabã, localidade que ninguém sabe dizer ao certo se é Meier ou Lins, veio a falecer por meios que me proibiram de tornar público e há pouco mandou-me a carta abaixo, que é endereçada ao senhor presidente da república. Ei-la:

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil. Sou um homem pobre que em vida nunca deu trabalho à polícia ou a qualquer outra autoridade pública, tampouco fiz a elas reclamação alguma. Dediquei-me unicamente a cumprir meu trabalho em inúmeras profissões sendo a última de frentista. Atividade na qual me dediquei a abastecer os automóveis dos cariocas admitindo que os outros os tivessem para abastecer e eu não.

Nunca fui de esquerda ou de direita, na realidade nunca entendi muito bem as diferenças, pois por política nunca me interessei. Também não fui de me meter em greves, de participar de manifestações ou qualquer outro modo de celeuma a perturbar a ordem e os costumes. Procurei viver na santa Paz do Senhor na qual morri quase sem pecados.

Fui membro da Assembleia de Deus desde a minha mocidade, antes disso era católico batizado e crismado. Nunca fui de macumbaria, feitiçaria, maçonaria, espiritismo, comunismo ou qualquer outra religião ligada ao inimigo de nossas almas. Pelo contrário, sempre fui servo de Deus, cheguei a ocupar o cargo de auxiliar de trabalho na minha congregação e estava cotado para diácono.

Vivi dentro da doutrina e da lei e esperava gozar o mais doce repouso após minha morte. Sou defunto há pouco tempo e minha despedida deste mundo foi singela com poucos amigos e familiares a chorar sinceramente por mim. Viver sendo pobre não é de todo ruim mas morrer na pobreza é muito bom, pois a ausência de espólio não promove desavenças familiares.  Logo não há de se carregar maldições para a cova, exceto a dos credores, com as quais eu não me importo e  confesso que tenho certa alegria.

Pois seguia eu para a glória confiante de que seria recebido no paraíso quando fui impedido de entrar aos céus e mandado a passar um tempo penando no inferno. A sentença até que é branda, não hei de ficar uma longa temporada por aqui, contudo me incomoda o fato de pagar por algo cuja culpa não é minha. O que me ocorreu é fruto do mau serviço prestado pelo governo liderado por Vossa Excelência.  Explico.

Estava eu nos portões do paraíso e já ia assinar o livro da recepção quando o segurança percebeu um hematoma em meu pulso.  

- Ora cidadão o que é isso? Por acaso estavas algemado quando morresse?

Expliquei ao segurança que por algum motivo me ataram à cama do hospital onde convalescia e antes que eu pudesse me justificar ele disse que aquilo era marca de vagabundo, que se me algemaram na cama boa coisa eu não tinha feito. E assim vim parar na situação em que me encontro.

No início aceitei minha pena e me dediquei a tentar lembrar do pecado pelo qual estava pagando a fim de me arrepender e ser salvo. Até que um amigo brasileiro que conheci no inferno, tem chegado muitos por aqui ultimamente, contou-me que estavam amarrando as pessoas nas camas dos hospitais por falta de um tipo de remédio que um certo ministro subordinado de Vossa Excelência deixou de comprar. Eis a razão de minha queixa e revolta. Nada tenho a ver com o motivo de minha pena, pelo contrário, sou vítima de um erro logístico, para se dizer o mínimo, do governo federal.

Solicito que o gabinete de Vossa Excelência elabore uma nota explicando os pormenores do ocorrido para que eu possa anexar ao processo de relaxação da pena que estou montando. Caso contrário o advogado que constituí aqui no inferno, cá estão os melhores, há de arrolar vossa excelência nos autos. 

Aguardo providências. 

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Fonte: Lima Barreto, Queixa de Defunto, 20/03/1920

Coentro

O cronista que vos fala anda afastado dos teclados por recomendação médica.

Daí decidi publicar esse singelo poema escrito em parceria com o ATA Waldman e que tornou-se concreto pelas mãos da minha amada Lili.

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Crônica em Excell

Rotina de um homem heterossexual, classe média, chato, desconstruidão, comercial de margarina, que tem emprego careta de homeoffice.

05:00    Acorda cedo para fazer exercícios

05:05    Faz a higiene pessoal

05:20    Põe a roupa de ginástica

05:25    Come banana e bebe água

05:35    Sai para correr

06:10    Termina a corrida

06:25    Chega em casa

06:40    Faz cocô

06:55    Toma banho

07:10    Veste-se

07:20    Prepara o café da manhã

07:35    Toma café da manha com toda a família

08:00    Ajuda o filho menor a trocar o pijama pela roupa do dia a dia

08:15    Ajuda o filho maior com o dever de matemática

08:40    Conversa amenidades com a esposa

09:00    Faz com a esposa o planejamento do cardápio, das atividades domésticas e das finanças

09:20    Entra no app de banco pra pagar boleto e ver se tem saldo para pagar uma explicadora para o filho

09:35    Põe a roupa para bater na máquina de lavar que é sua tarefa diária no planejamento das atividades domésticas

09:55    Põe o filho maior para assistir aula on-line e o menor para montar quebra-cabeças digital no tablet

10:13    Faz xixi

10:21   Inicia o home office

10:28    Separa uma briga entre os dois filhos

10:40    Reinicia o home office: reunião com o cliente do projeto 1

11:30    Reunião com o gerente

12:30    Entra na rede social da Cia

13:00    Encontra na rede social da Cia uma solução muito bacana que pode ajudar muito

13:10    Liga para o cara que elaborou a solução muito bacana e pôs na rede social da Cia, os dois marcam uma reunião para tratar do caso

13:30    Colação saudável com frutas

14:30    Preenche a planilha de controle de HH

15:06    Preenche a outra planilha de controle de HH 

15:57   Preenche o sistema on-line que tem as mesmas informações da planilha de controle de HH

16:38    Preenche o sistema que controla todos os dados de HH inclusive as planilhas

17:27    Faz uma apresentação em power point sobre controle de HH

18:13    Bebe água

18:19    Faz 10 min de meditação e alongamento

18:29   Dá atenção para o filho menor que está muito tempo na tela. Vão fazer atividades lúdicas com massa de modelar

18:53    Dá atenção para o filho maior que acabou a aula on-line conversam um pouco sobre livros que viram filmes de cinema

19:18    Conversa amenidades com a esposa

19:30    Volta ao home office: reunião de equipe

20:30    Prepara macarrão à bolonhesa com salada que é rápido e gostoso

21:00    Almoça com toda família reunida na mesa

21:32    Lava a louça

22:01    Tira a roupa que bateu na máquina e põe para secar

22:15    Atende um telefonema da irmã e passa para ela a receita do arroz soltinho sem uma gota de óleo 

22:30    Reunião que não estava marcada mas apareceu de última hora

23:35    Lê um relatório muito importante e tem boas ideias para solucionar um problema da Cia

24:05    Liga para o pai, pergunta sobre a saúde, sobre o jardim e se ele está precisando de alguma coisa.

24:17    Pede para o pai passar o telefone da mãe, pergunta sobre a saúde, conversa sobre o desenvolvimento dos netos e pergunta se ela está precisando de alguma coisa. 

24:33    É lembrado pela mãe que precisa marcar consulta com o Urologista

24:45    Liga para o urologista e marca consulta

25:10    Leva o filho maior para a aula presencial e o menor para a creche

25:40    Chega em casa e volta para o home office,  está  10 minutos atrasado na reunião de equipe, da outra equipe. Que é quase a mesma que a primeira equipe só que tem duas pessoas diferentes.

26:30   Reunião com o cliente do Projeto 2

27:30    Reunião para discutir os resultados da Cia

28:30    Reunião de planejamento das metas de equipe (a primeira equipe, não a segunda)

29:03    Faz xixi

29:08    Chega 8 minutos atrasado na reunião com os potenciais clientes de um novo projeto

29:33    Bebe café

29:44    Preenche a planilha de controle de projetos

30:35    Preenche a outra  planilha de controle de projetos

31:10    Preenche o sistema on-line que tem as mesmas informações da planilha de controle de projetos

32:15    Preenche o sistema que controla todos os dados de projetos inclusive as planilhas

33:04    Faz uma apresentação em power point sobre controle de projetos

34:00    Reunião com o chefe do chefe para apresentar uma parte na apresentação do chefe

35:30    Faz parte daquele relatório cujo prazo está perto do fim

36:00    Toma o chá das 5 com a esposa 

36:30    Reunião com chefe do cliente do Projeto 1

37:30    Reunião com chefe do cliente do Projeto 2

38:00    Faz um relatório completo reunindo todas as evidencias de que ele realmente trabalhou e manda para três níveis de chefia diferente

39:04    Atende uma chamada de um amigo que não entendeu um relatório, ajuda o amigo

39:30    Reunião com o chefe para aprender sobre coisas muito importantes

40:30    Vai buscar o maior na escola e o menor na creche

41:06    Chega em casa e vai recolher e dobrar as roupas que estavam no varal

41:25    Pede a janta no app

41:31    Faz xixi e bebe água

41:45    Volta para o homeoffice para a última reunião do dia

42:30    Brinca com os filhos enquanto a mulher faz os ginastica

43:05    Vai atender ao motoboy que trouxe a janta

43:15    Janta com toda a família

43:45    Conversa amenidades com a família

44:00    Curso de pós-graduação

46:00    Desentope o ralo do banheiro

46:15    Reunião com os amigos do curso de pós-graduação para fazer trabalho em grupo

47:00    Vê as mensagens eletrônicas em todas as mídias sociais

47:30    Assiste ao telejornal

48:30    Lê um jornal de um outro grupo de mídia  para ter ao menos dois tipos de informação diferente

49:30    Lê um trecho de um livro

50:00    Põe o filho menor para dormir

50:15    Faz uma vídeo chamada com os amigos só para zuar o Zé que está de aniversário

50:48    Recolhe o lixo

50:56   Põe o filho maior para dormir

51:03    Toma banho

51:20    Assiste a um show de música com a esposa

51:51    Preliminares

52:02    Faz sexo

52:06    Cochila

52:27    Novas Preliminares

52:41    Faz sexo de novo

52:08   Cochila

52:35    Levanta para beber água 

52:45    Checa as redes sociais

53:00    Faz Yoga

53:40    Organiza a agenda do dia seguinte

53:59    Toma banho

54:23    Ajusta o despertador

54:30  Vai dormir feliz pois sabe que tem quase 9 horas para descansar antes de acordar cedo para fazer exercícios antes da aglomeração.

Achou muito? 

Semana que vem a rotina da mãe solteira que mora em Oswaldo Cruz e trabalha numa padaria na Gávea. 

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Páscoa

Hoje no Hemisfério Norte há de brilhar nos céus a primeira lua cheia da primavera. Será a primeira noite luminosa após as agruras de um inverno sombrio. Há milênios os povos escolheram este marco como uma data de celebração.

Atente-se ao fato de que, na grande maioria das civilizações onde esta tradição surgiu, neste momento os campos ainda estavam inférteis, assolados pelo gelo. As dispensas das casas primitivas certamente estavam vazias e muitos provavelmente estavam doentes ou haviam perdido pessoas queridas. O que seguiria esta data seria um longo período de trabalho duro a recuperar o solo, a plantar e a esperar com fé no futuro. Contudo celebravam, pois sabiam que daquele momento em diante o clima tenderia a melhorar. E a natureza que dantes fora rude e cruel em breve revelaria campos verdes e fartos. E o ciclo se reiniciaria.

Essa é a origem do que hoje nós conhecemos como páscoa. Na tradição judaica é o momento histórico onde eles livraram-se da opressão. Daquele momento em diante ainda penariam décadas como nômades pelo deserto, num êxodo que custaria a vida de absolutamente todos, pois a história diz que somente os filhos dos que deixaram o Egito alcançaram a Terra Prometida. E eles celebram o triunfo de um tempo futuro. De uma geração futura.

Para os cristãos é o momento em que um homem triunfa sobre a morte. Porque Jesus apesar de santo e divino era sobretudo homem. E padeceu diante da barbárie, da perversão, da sede cega pelo poder. Padeceu diante dos adoradores da tortura e de torturadores. Contudo triunfou, ressurreto ao terceiro dia. Daquela data em diante os cristãos seguiriam para séculos de militância clandestina. E muitos deles ainda cairiam mártires de uma fé pautada no amor, no altruísmo e no perdão. E eles celebram, pois acreditam no poder da mensagem.

E em diversas outras tradições muito mais antigas que as atuais religiões o significado é o mesmo, o triunfo da luz sobre as trevas. Culturas que se perderam nas disputas pelas narrativas históricas, mas que sobrevivem nos sincretismos, nas histórias mal contadas de coelhos e ovos. A mensagem de nossos ancestrais é clara. Nesta noite podemos estar vivendo o pior de nossos momentos, mas é Páscoa, e adiante está a primavera e os campos verdes do verão. Não importa o quão rigoroso tenha sido o inverno e quantos de nós tenham caído ou ainda estão por cair, o futuro é luminoso.  Foi para os antigos há de ser para nós.

Contudo essa mensagem não pode ser confundida como uma ode à passividade. O inverno passou e o gelo há de se dissipar, porém os campos não vão arar-se por si próprios. O deserto não se moverá sob nossos pés, tampouco o amor irá proclamar-se pelos ventos. Há uma grande obra a ser erguida por aqueles dispostos a aprender com os erros, os próprios e os dos outros. Devemos arar a terra ouvindo aos que de terra entendem. Aprendendo com os sábios que colheram nos verões passados e refutando os loucos que se empenham no ofício da morte.

Esta Páscoa certamente não marcará o fim de nosso sofrimento, mas pode significar nossa virada de rumo. O verão é logo ali. E nas festas da colheita estaremos celebrando com o que há de melhor no Brasil, comendo milho numa feira enfeitada de bandeirolas, em Campina Grande ou em Caruaru. Oxalá.

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