sexta-feira, 3 de julho de 2015

Não vale furar a fila



Segundo a doutrina cristã, apenas dois pecados são considerados imperdoáveis: a blasfêmia e o suicídio.  Sim companheiro, apenas estes dois. Genocídio, infanticídio ou qualquer outra atrocidade que você por ventura possa estar imaginado não consta na lista. Todo o resto é passível de perdão. Desde que você de fato se arrependa, e passe a viver em plenitude os desígnios da fé cristã.  O perdão é um dos pilares do cristianismo.

Antes que você me dê a alcunha de herege - a de comunista já me foi dada a revelia - deixe-me ao menos explicar que existe uma razão muito sábia para esses dois pecados serem irredimíveis. Blasfêmia, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, é “toda palavra ou atitude injuriosa contra uma divindade ou religião”. Ora, dentro da lógica cristã, nada é mais sagrado que o divino. Logo, é razoável que uma ofensa ao próprio Deus seja considerada o ponto mais abjeto e mais profundo do poço da vilania humana. Se você for ateu e/ou comunista, ou ao menos quiser politizar o tema, também é fácil de compreender a intransigência em relação à blasfêmia. Se voltarmos aos primórdios do cristianismo, pelo menos desta forma de cristianismo que se consolidou no ocidente, chegaremos à época em que a igreja era o maior poder constituído. Neste período uma ofensa à religião se confundia a uma transgressão ao sistema vigente, logo, imperdoável.

Agora a questão do suicídio me é particularmente curiosa. Os sacerdotes passam o tempo todo te convencendo que a morte não é tão ruim assim, que nos pós mortem você terá outra vida, muito melhor que essa. Num paraíso, sem dor, sem fome, sem injustiças, cercado de anjos e tudo mais. No entanto não vale furar a fila, espere a sua vez e se comporte, não vá se suicidar. A justificativa é brilhantemente inteligente. Se você se matar não vai haver tempo hábil de se arrepender. Sendo o arrependimento condição sine qua non para o perdão, perdeu playboy, vai arder no colo do Coisa Ruim.

Não só o cristianismo, mas talvez todas as religiões (pelo menos todas que conheço) que apregoam a vida após a morte, seja no paraíso ou através da reencarnação, condenam veementemente o suicídio. O que é muito sábio. Acredito que em algum momento no passado esse papo de vida após a morte começou dar muito problema. Tem muita gente que adora um atalho. Para que ficar aqui sofrendo se posso literalmente “partir dessa para uma melhor”?  Quando as autoridades viram que a galera estava se matando, deram um jeito de tronar isso abominável. Afinal de contas, o sistema precisa de gente para colher o trigo, ir à guerra, erguer os palácios, etc.

A parte o sarcasmo do parágrafo anterior – eu não resisti, perdoem-me. Penso que o suicídio é abominável e doentio, pois viola o extinto mais elementar de qualquer espécie: o da sobrevivência. Você nunca viu por aí um cachorro, um tigre ou um peixe se suicidando. E nem vai ver. Os animais agarram-se ao último fio de vida com a mais comovente das obsessões, até que o último suspiro seja inevitável.

 O filosofo francês Jean-Paul Sartre disse que fomos condenados a liberdade. Ao contrario dos animais, cujos atos são delineados pelo instinto, nós seres humanos temos liberdade para agir segundo nossos próprios desígnios. Rompemos os grilhões do fatalismo biológico. Freud, o pai da psicanálise, disse uma vez que “a renúncia progressiva dos instintos parece ser um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana”. Ora, neste contexto, o suicídio é coisa bicho civilizado. Recorrendo novamente ao Aurélio: civilizado é o sujeito adaptado ou integrado à vida humana em sociedade. A reflexão que devemos fazer é que, se a civilização está levando indivíduos à autodestruição, é por que há nela a algo de insano. A civilização fracassa em seus objetivos em cada suicida que produz. Devemos repensar o nosso estilo de vida, dito moderno, que prima pelo individualismo e pela competição. Ao que me parece há pouco de humanidade na civilização humana.

Uma segunda reflexão que se faz necessária é sobre o conceito de suicídio. É considerada suicida uma pessoa que escolhe não tratar de uma doença, a despeito dos recursos, por preferir sucumbir ao invés de se submeter a um tratamento doloroso e incerto? E a eutanásia, enquanto opção por uma morte assistida e supostamente sem sofrimentos diante de um quadro de enfermidade irreversível, é igualmente abominável? O que dizer de um soldado que marcha rumo à morte certa, em nome da pátria, da família ou da religião? A palavra infantaria tem a mesma raiz etimológica de infante, imaturo, inconsequente. Semana passada li um artigo do Papa Francisco, onde ele exaltava o ato heroico do pai que, durante uma tempestade, ao perceber que a parede da casa ia ruir, jogou-se sobre os filhos, seu corpo sucumbiu aos ferimentos, as crianças sobreviveram incólumes. Suicida?

Podemos dar cabo a nossa vida de maneira covarde ou heroica. Pessoalmente prefiro que não seja nem de um jeito nem de outro. Nesse quesito, é bom que sejamos tão teimosos quanto uma mula e nos agarraremos ao que nos há de primitivo, sobreviver. Mas não se pode esquecer que terminar com a própria vida é a última e mais desesperada instância do exercício de nossa liberdade. Este livre arbítrio, segundo Sartre é uma sentença, segundo Moisés é uma benção.

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E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...