Segundo a
doutrina cristã, apenas dois pecados são considerados imperdoáveis: a blasfêmia
e o suicídio. Sim companheiro, apenas
estes dois. Genocídio, infanticídio ou qualquer outra atrocidade que você por
ventura possa estar imaginado não consta na lista. Todo o resto é passível de
perdão. Desde que você de fato se arrependa, e passe a viver em plenitude os
desígnios da fé cristã. O perdão é um
dos pilares do cristianismo.
Antes que
você me dê a alcunha de herege - a de comunista já me foi dada a revelia - deixe-me
ao menos explicar que existe uma razão muito sábia para esses dois pecados
serem irredimíveis. Blasfêmia, segundo o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, é “toda palavra ou atitude injuriosa contra uma divindade ou
religião”. Ora, dentro da lógica cristã, nada é mais sagrado que o divino. Logo,
é razoável que uma ofensa ao próprio Deus seja considerada o ponto mais abjeto
e mais profundo do poço da vilania humana. Se você for ateu e/ou comunista, ou
ao menos quiser politizar o tema, também é fácil de compreender a
intransigência em relação à blasfêmia. Se voltarmos aos primórdios do
cristianismo, pelo menos desta forma de cristianismo que se consolidou no
ocidente, chegaremos à época em que a igreja era o maior poder constituído.
Neste período uma ofensa à religião se confundia a uma transgressão ao sistema
vigente, logo, imperdoável.
Agora a
questão do suicídio me é particularmente curiosa. Os sacerdotes passam o tempo
todo te convencendo que a morte não é tão ruim assim, que nos pós mortem você
terá outra vida, muito melhor que essa. Num paraíso, sem dor, sem fome, sem
injustiças, cercado de anjos e tudo mais. No entanto não vale furar a fila,
espere a sua vez e se comporte, não vá se suicidar. A justificativa é brilhantemente
inteligente. Se você se matar não vai haver tempo hábil de se arrepender. Sendo
o arrependimento condição sine qua non
para o perdão, perdeu playboy, vai arder no colo do Coisa Ruim.
Não só o
cristianismo, mas talvez todas as religiões (pelo menos todas que conheço) que
apregoam a vida após a morte, seja no paraíso ou através da reencarnação,
condenam veementemente o suicídio. O que é muito sábio. Acredito que em algum
momento no passado esse papo de vida após a morte começou dar muito problema.
Tem muita gente que adora um atalho. Para que ficar aqui sofrendo se posso
literalmente “partir dessa para uma melhor”? Quando as autoridades viram que a galera
estava se matando, deram um jeito de tronar isso abominável. Afinal de contas,
o sistema precisa de gente para colher o trigo, ir à guerra, erguer os palácios,
etc.
A parte o
sarcasmo do parágrafo anterior – eu não resisti, perdoem-me. Penso que o suicídio
é abominável e doentio, pois viola o extinto mais elementar de qualquer
espécie: o da sobrevivência. Você nunca viu por aí um cachorro, um tigre ou um
peixe se suicidando. E nem vai ver. Os animais agarram-se ao último fio de vida
com a mais comovente das obsessões, até que o último suspiro seja inevitável.
O filosofo francês Jean-Paul Sartre disse que
fomos condenados a liberdade. Ao contrario dos animais, cujos atos são
delineados pelo instinto, nós seres humanos temos liberdade para agir segundo
nossos próprios desígnios. Rompemos os grilhões do fatalismo biológico. Freud,
o pai da psicanálise, disse uma vez que “a renúncia progressiva dos instintos
parece ser um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana”. Ora, neste
contexto, o suicídio é coisa bicho civilizado. Recorrendo novamente ao Aurélio:
civilizado é o sujeito adaptado ou integrado à vida humana em sociedade. A
reflexão que devemos fazer é que, se a civilização está levando indivíduos à
autodestruição, é por que há nela a algo de insano. A civilização fracassa em
seus objetivos em cada suicida que produz. Devemos repensar o nosso estilo de
vida, dito moderno, que prima pelo individualismo e pela competição. Ao que me
parece há pouco de humanidade na civilização humana.
Uma segunda
reflexão que se faz necessária é sobre o conceito de suicídio. É considerada
suicida uma pessoa que escolhe não tratar de uma doença, a despeito dos
recursos, por preferir sucumbir ao invés de se submeter a um tratamento
doloroso e incerto? E a eutanásia, enquanto opção por uma morte assistida e
supostamente sem sofrimentos diante de um quadro de enfermidade irreversível, é
igualmente abominável? O que dizer de um soldado que marcha rumo à morte certa,
em nome da pátria, da família ou da religião? A palavra infantaria tem a mesma
raiz etimológica de infante, imaturo, inconsequente. Semana passada li um
artigo do Papa Francisco, onde ele exaltava o ato heroico do pai que, durante
uma tempestade, ao perceber que a parede da casa ia ruir, jogou-se sobre os
filhos, seu corpo sucumbiu aos ferimentos, as crianças sobreviveram incólumes.
Suicida?
Podemos dar
cabo a nossa vida de maneira covarde ou heroica. Pessoalmente prefiro que não
seja nem de um jeito nem de outro. Nesse quesito, é bom que sejamos tão teimosos
quanto uma mula e nos agarraremos ao que nos há de primitivo, sobreviver. Mas
não se pode esquecer que terminar com a própria vida é a última e mais desesperada
instância do exercício de nossa liberdade. Este livre arbítrio, segundo Sartre
é uma sentença, segundo Moisés é uma benção.