Santa Rita era uma cidade graciosa,
a igrejinha no vértice da praça com seu campanário amarelo e arredores
ajardinados, os ipês que floresciam em setembro eram moradas de saíras,
canários da terra e tizius bailarinos. As maritacas chegavam todo fim de tarde
com seu pio alvoroçado espantando os bem-te-vis que cumpriam sua sina de
delatores-mor. O tedéu dos pássaros só não era mais eufórico que o das crianças
que invadiam a praça ao final das aulas. Era um corre-corre por todos os lados,
ora perseguiam a bola, ora a si mesmos, ora aos pobres dos serelepes que se
escondiam nos ocos das árvores.
A apoteose desse espetáculo singelo
e cotidiano se dava ao encontro dos ponteiros do relógio, tanto pela manhã
quanto pela tarde, quando da padaria emergia o aroma de pão fresco. E que
aroma! O simpático centrinho era envolto em uma áurea mágica de cereais, um
perfume vindo dos céus que fazia brotar no balcão uma infinidade de pães de
centeio, semolina, milho, cevada e toda sorte de grãos que Dionísio pôs sobre a
Terra para deleite dos homens. Surgiam brioches, croissants, bolos, broas, tortas,
sonhos, pavês, rocamboles. Era uma festa para o olfato, para os olhos, para o
estômago e, sobretudo, para a alma. Tábuas de frios muito bem ornadas com
queijos, copas e salames produzidos nas fazendas da região, compotas de frutas
da estação e geleias complementavam a ópera cujo epílogo contava com uma
cafeteira italiana de onde saiam cappuccinos, mocas, macciatos. Hábito trazido
pelos turistas, cada vez mais frequentes e numerosos, que superava em finesse
mas não em sabor o bom e velho café feito no coador de pano de Dona Adélia, que
a despeito da modernidade da máquina ainda era o mais vendido.
Triste foi o dia em que seu Antônio,
gerente e proprietário da padaria veio a falecer. Sua esposa, Dona Adélia, tinha
mãos de fada para a confeitaria, mas nunca fora chegada à gestão - Venda a
padaria dona Adélia, vocês já fizeram um bom pé-de-meia. Para que trabalhar
mais? Era o que diziam os parentes e amigos mais próximos. Mas o hábito de
enfeitar os bolos e coar o café já lhe era fisiológico, uma dose diária de
alegria que ultimamente lhe fazia parar de pensar em seu Antônio, seu
companheiro dos últimos 53 anos, de quem a saudade apertava à noite quando a
padaria fechava. Se o padeiro Ataíde e o sobrinho Marcelo fossem uma só pessoa,
a decisão pelo cargo de gerente seria fácil. Seu Ataíde trabalhava com seu
Antônio desde a inauguração da padaria, conhecia a fundo todos os processos em
pormenores que nem mesmo o seu Antônio tinha ciência. Era ele quem elaborava as
receitas, encomendava as mercadorias, negociava com os produtores. Já o Marcelo,
fora o responsável pela modernização da loja. As ideias dele colocaram a
padaria e a cidade de Santa Rita no mapa turístico do estado. Havia estudado
administração e demonstrava uma paixão comovente pelos negócios do tio, que o
criou como um filho desde que um desastre de automóvel o deixara órfão aos
quatorze anos de idade.
A demora pela decisão de Dona Adélia
dividiu a cidade em duas, tinha o time do Ataíde e o time do Marcelo. – O
Ataíde sempre foi o braço direito do seu Antônio, ninguém conhece essa padaria
mais que ele, esse Marcelo mal saiu dos cueiros. Diziam uns enquanto os outros
retrucavam. – Esse menino é cheio de predicados, só se afastou da padaria
quando foi estudar na capital e se não fosse ele a gente não tinha essa fila aí
na porta todos os finais de semana. Os argumentos se fartavam e desdobravam
tanto de um lado quanto do outro. Dona Adélia escolheu o Marcelo, afinal era
moço, gente da família, poderia tocar o negócio por muitos anos. No fundo até o
Ataíde ficou satisfeito com a escolha, pois esse cargo de gerente ia lhe trazer trabalho extra e sua
paixão era mesmo a panificação.
Ninguém conseguiu me explicar o porquê, mas a cidade continuou dividida, o time do Ataíde embarcou em uma campanha
do anti-Marcelo tão ácida quanto injustificada - Isso não vai para frente, onde
já se viu um sujeitinho imberbe desses gerente de alguma coisa? Enquanto era só disse-me-disse ninguém levou a
sério. – Eles vão se acostumar. Dizia Dona Adélia. Mas quando o balconista Juca
foi às vias de fato com ajudante de padeiro Elias, se engalfinhado bem na praça
da cidade, é que a coisa ficou séria. O Marcelo acabou tendo que demitir os
dois, o que só serviu para exaltar os ânimos:
– O seu Antônio nunca
demitiu empregado algum, quem esse Marcelo pensa que é?
– O que vocês queriam? Que ele mantivesse os dois brigões
trabalhando aqui? Isso não se pode admitir minha gente!
Foi nesta época que começaram os
boatos – A qualidade do pão caiu horrores! – Olha esse bolo, está na cara que é
velho. Alguém chegou ao descaramento de dizer que tinha comprado um pão que
veio com uma asa de barata dentro e até guardava o fragmento do inseto no bolso
enrolado num guardanapo de papel para ostentar como prova do crime. – Veja aqui
com seus próprios olhos, a vigilância sanitária deveria cuidar disso. Na
realidade, a vigilância fez nove inspeções em menos de um mês, mas nunca achou
nada que comprovasse as denúncias que chagavam como enxurrada à repartição. – O
que deu nesse povo? Perguntou o fiscal ao Marcelo quando enfim entendeu que as
denúncias não passavam de bravatas. – Eles cismaram que o Ataíde tem que ser o
gerente. Respondeu. – E por que você não o demite? O Marcelo franziu a testa e aumentou
o tom de voz. – Ele está do meu lado oras, ninguém aqui me defende mais do que
ele. O Ataíde, que acabou ouvindo a
conversa se intrometeu. – Esse povo enlouqueceu, eu nunca quis ser gerente, me
deixem aqui quieto com meus fornos!
Mas os boatos eram implacáveis,
teve até um atentado num feriado quando a padaria estava cheia de turistas. Um
sujeito que era primo do Juca, aquele que havia sido demitido, tirou de uma
caixa uma dúzia de ratos, soltando os animais bem no meio do salão. Foi um
estardalhaço só, as mulheres gritando os meninos botando pra chorar, um
escândalo. O fiscal da vigilância nem se moveu da cadeira quando a denúncia de
infestação de ratos chegou à repartição. Mas Dona Adélia, que já não andava bem
de saúde, perdeu a alegria em decorar bolos e coar café. Decidiu vender a
padaria para um sujeito inglês e voltar para Portugal. Foi viver os últimos
dias ao lado da irmã que há muito não via, mas com quem sempre se correspondia.
O Marcelo recebeu da tia a maior parte do dinheiro da venda da padaria e abriu
um bistrô na capital, dizem que até saiu na revista outro dia desses recebendo
prêmio de chef du cuisine.
O inglês derrubou a padaria, a
casa de Dona Adélia que ficava nos fundos e o pomar de onde saiam as goiabas e os
figos das compotas. Ergueu um imenso galpão onde passou a funcionar um curtume.
O couro era fornecido pela fazenda do Dr. Renato, presidente da câmara e tio do
prefeito. O mau odor empesteou de tal maneira a pracinha da cidade que o padre
até mudou o horário da missa – Esses protestantes não respeitam se quer a hora
da Ave Maria! – As lojas de artesanatos e os restaurantes que abundavam no
centro foram caindo feito dominós com a mesma sistematização que o inglês os
comprava e os demolia, expandindo seu império de fedentina. – Esses sobrados
são do tempo colonial, alguém na prefeitura deveria impedir esse crime! Era um
coro para surdos, as belas fachadas cheias de barroquismos foram substituídas
por tantos cubos insossos de zinco quanto bastassem ao lucro do inglês e de
seus sócios da administração municipal. A população que não se adaptava às doze
horas de trabalho malcheiroso na manufatura inglesa teve que se mudar para os
grandes centros.
Compondo o cenário tétrico, uma
horda de urubus colonizou os ipês, afastando as saíras, os tizius, os canários,
os bem-te-vis e até mesmo as valentes maritacas que travaram uma última batalha
inglória pelos ninhos que restavam. Aqueles ratos que foram soltos pelo Juca na
extinta padaria deveriam ser exímios reprodutores, pois incentivada pelo
azedume, a sua população crescera de tal forma na cidade que os serelepes
sumiram da praça. Um menino foi mordido por uma ratazana ao achar que poderia brincar
com os novos roedores da mesma maneira que fazia outrora com os simpáticos
esquilos. As mães assustadas proibiram as brincadeiras da praça e os turistas
já não tinham motivos para subir a serra até Santa Rita. Da última vez que eu,
viajante desavisado, voltei àquela praça, perguntei atônito para um gari solitário
que varria a calçada:
- Mas me diga amigo, o que é que
aconteceu com esta cidade?
Ele ergueu os olhos e respondeu
melancólico:
- É que acabou o pão.