O pessoal da Lapa
estranhou quando cheguei antes das sete da manhã no domingo. Sóbrio, bermuda e
tênis. Teve boêmio fundamentalista virando a cara para mim. A concentração foi
em frente aos arcos. O clima, embora urbano, era essencialmente tribal. A mesma
roupa, a mesma euforia, a mesma vibração. Cada qual amarrava aos cadarços uma
crônica sobre asfalto, suor e disciplina.
O outono no
Rio é uma estação magnífica. Pela manhã, a luz morna contorna um céu
impecavelmente polido. Um vento preguiçoso soprava da Guanabara quando largamos
na Evaristo da Veiga em direção ao Theatro Municipal. Não demoramos a encontrar
a obra do VLT – Vai ser corrida de obstáculos! – Gritou um corredor gaiato. Alguns
operários da obra, contrariados no serão, nos olhavam com estranheza – Que tipo
de gente vem ao centro espontaneamente na manhã de domingo? – Outros ensaiavam
um incentivo – Vamo galera! –
Ouvia-se entre aplausos tímidos.
Ganhamos a
México e a Almirante Barroso num silêncio curioso, quase alienígena. Adentramos
a Av. Chile, talvez a mais cosmopolita do Centro, quando o sol ainda
tangenciava o topo dos edifícios modernistas. No primeiro posto de hidratação
um grupo de roqueiros; camisas de banda, calça e botas pretas, piercings e acessórios
metálicos de toda sorte; oferecia cerveja rivalizando com os funcionários da
organização da corrida – Não bebe água não parceiro, essa porra enferruja, toma
cerveja que você vai ser o primeirão!
Quando
cruzamos o Largo da Carioca, um grupo atravessava um clássico do Paulinho – não
sou eu quem me navega... – enquanto dois pares de pernas esguias rabiscavam um
samba trôpego. Uma delas mandou um beijo na nossa direção, acho que foi pra
mim. Avançamos até a Praça Tiradentes. Quando entrei na Avenida Passos pensei
que nunca o nome da rua fizera tanto sentido. O som de nosso trote reverberava
como a marcha de um batalhão descompassado. Achei engraçado.
Logo
estávamos no Saara, pulei de supetão uma poça, não sei se era d’água, quase
caí. Olhei pra cima vi uma bandeira do Líbano no topo de um sobrado, ao lado,
um armazém de paredes brancas exibia sobre a porta uma estrela de Davi. Mais
adiante uma senhora chinesa acenava da janela com uma camisa da seleção – Blasil! Blasil! Blasil! – Na Rua
Uruguaiana um sujeito vestido de porteiro tentava conter o cachorro que
investia contra nós corredores. Um cara que seguia na minha frente tentou
repreender o dono na fera, que respondeu na lata: – Não se preocupe amigo, meu
cachorro não come merda! – Mau humor matinal.
Foi na Presidente
Vargas que encontrei o sol. Foi difícil manter o passo, senti queimar a nuca,
inverti o boné para a aba proteger o pescoço, no movimento caiu suor nas vistas.
Perdi a concentração. Fui ultrapassado pelo Flash e pelo Chapolin. O
incômodo durou até encontrar o outro posto de hidratação já quase no retorno,
perto da Central do Brasil. Agora o sol era frontal, reverti o boné. Mirei no
Chapolin e acelerei, deixei comendo poeira. Perdi o Flah de vista, mas é o flash
pow! Voltamos à Passos e à Praça Tiradentes. Um grupo de Travestis que deixava
um prédio parou pra nos aplaudir – Uhuuuuuuuuuu! Assim eu me apaixono! Casa
comigo! – Uma menina que corria ao meu lado respondeu - Corre meu bem, te
espero na chegada! – Fiquei confuso.
Na Ladeira da
República do Paraguai, a moral tentou manter o corpo no ritmo, mas a
panturrilha reclamou, senti o ombro pesando, perdi o fôlego e o compasso. Um
morador de rua magrinho com um cobertor cinza nas costas e uma garrafa sob o
braço olhou bem dentro dos meus olhos – Para não porra! Tá acabando! – Apertei
o passo – Isso garoto, corre
miséria! Acelerei feito um queniano, ladeira
vencida, pude avistar o pórtico da chegada, já na descida para os Arcos. A
fadiga desapareceu, passos largos, os pés quase batiam nas costas. Missão
cumprida, de volta à Lapa.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.