terça-feira, 26 de abril de 2016

Corrida



O pessoal da Lapa estranhou quando cheguei antes das sete da manhã no domingo. Sóbrio, bermuda e tênis. Teve boêmio fundamentalista virando a cara para mim. A concentração foi em frente aos arcos. O clima, embora urbano, era essencialmente tribal. A mesma roupa, a mesma euforia, a mesma vibração. Cada qual amarrava aos cadarços uma crônica sobre asfalto, suor e disciplina.

O outono no Rio é uma estação magnífica. Pela manhã, a luz morna contorna um céu impecavelmente polido. Um vento preguiçoso soprava da Guanabara quando largamos na Evaristo da Veiga em direção ao Theatro Municipal. Não demoramos a encontrar a obra do VLT – Vai ser corrida de obstáculos! – Gritou um corredor gaiato. Alguns operários da obra, contrariados no serão, nos olhavam com estranheza – Que tipo de gente vem ao centro espontaneamente na manhã de domingo? – Outros ensaiavam um incentivo – Vamo galera! – Ouvia-se entre aplausos tímidos.

Ganhamos a México e a Almirante Barroso num silêncio curioso, quase alienígena. Adentramos a Av. Chile, talvez a mais cosmopolita do Centro, quando o sol ainda tangenciava o topo dos edifícios modernistas. No primeiro posto de hidratação um grupo de roqueiros; camisas de banda, calça e botas pretas, piercings e acessórios metálicos de toda sorte; oferecia cerveja rivalizando com os funcionários da organização da corrida – Não bebe água não parceiro, essa porra enferruja, toma cerveja que você vai ser o primeirão!

Quando cruzamos o Largo da Carioca, um grupo atravessava um clássico do Paulinho – não sou eu quem me navega... – enquanto dois pares de pernas esguias rabiscavam um samba trôpego. Uma delas mandou um beijo na nossa direção, acho que foi pra mim. Avançamos até a Praça Tiradentes. Quando entrei na Avenida Passos pensei que nunca o nome da rua fizera tanto sentido. O som de nosso trote reverberava como a marcha de um batalhão descompassado. Achei engraçado.

Logo estávamos no Saara, pulei de supetão uma poça, não sei se era d’água, quase caí. Olhei pra cima vi uma bandeira do Líbano no topo de um sobrado, ao lado, um armazém de paredes brancas exibia sobre a porta uma estrela de Davi. Mais adiante uma senhora chinesa acenava da janela com uma camisa da seleção – Blasil! Blasil! Blasil! – Na Rua Uruguaiana um sujeito vestido de porteiro tentava conter o cachorro que investia contra nós corredores. Um cara que seguia na minha frente tentou repreender o dono na fera, que respondeu na lata: – Não se preocupe amigo, meu cachorro não come merda! – Mau humor matinal.

Foi na Presidente Vargas que encontrei o sol. Foi difícil manter o passo, senti queimar a nuca, inverti o boné para a aba proteger o pescoço, no movimento caiu suor nas vistas. Perdi a concentração. Fui ultrapassado pelo Flash e pelo Chapolin. O incômodo durou até encontrar o outro posto de hidratação já quase no retorno, perto da Central do Brasil. Agora o sol era frontal, reverti o boné. Mirei no Chapolin e acelerei, deixei comendo poeira. Perdi o Flah de vista, mas é o flash pow! Voltamos à Passos e à Praça Tiradentes. Um grupo de Travestis que deixava um prédio parou pra nos aplaudir – Uhuuuuuuuuuu! Assim eu me apaixono! Casa comigo! – Uma menina que corria ao meu lado respondeu - Corre meu bem, te espero na chegada! – Fiquei confuso.

Na Ladeira da República do Paraguai, a moral tentou manter o corpo no ritmo, mas a panturrilha reclamou, senti o ombro pesando, perdi o fôlego e o compasso. Um morador de rua magrinho com um cobertor cinza nas costas e uma garrafa sob o braço olhou bem dentro dos meus olhos – Para não porra! Tá acabando! – Apertei o passo­ – Isso garoto,  corre miséria!   Acelerei feito um queniano, ladeira vencida, pude avistar o pórtico da chegada, já na descida para os Arcos. A fadiga desapareceu, passos largos, os pés quase batiam nas costas. Missão cumprida, de volta à Lapa.

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