domingo, 27 de agosto de 2023

Solomons


Marina retornava para casa após um dia intenso de trabalho e estudo na pós-graduação do Instituto de química da UFRJ. Pegou o ônibus da linha nove três meia no fim da tarde, quando a Ilha do Fundão estava coberta por uma luz  cambaleante. As folhas dos oitis sibilavam ao sabor de um vento morno. Era o anúncio de uma frente fria, a segunda daquele ano. Sentiu um alívio danado quando tomou o assento e pousou sobre o colo a pesada mochila contendo os dois volumes do Solomons, era o trabalho do fim de semana.

Para você que, assim como eu, não sabe fazer um “ó” com um copo na areia, explico que “Solomos” é como os cientistas chamam na intimidade o livro escrito pelos americanos T.W. Graham Solomons, Craig B. Fryhle e Scott A. Snyder, intitulado: Química Orgânica. São dois volumes que somam mil duzentas e cinquenta e seis páginas em mais de três quilos de capa dura e conhecimento que eu e você jamais teremos. Nesta e na próxima vida.

Dezoito minutos depois de conseguir o assento no ônibus Marina quis pegar no sono, mas foi acordada por uma perna insistente roçando na sua. Olhou para o lado e notou um senhor de meia idade vestindo uma camisa polo listrada. A gola mal passada estava muito amarelada bem no contorno do pescoço, empapado de suor. Marina se espremeu no canto do banco, como se quisesse fundir-se à parede do coletivo. Ainda assim, a perna folgada do sujeito alcançou a sua.

 – Este ônibus não está cheio, nem esse cara é assim tão grande, eu não acredito que está acontecendo comigo de novo. – Pensou.

Aos quinze anos, quando ainda era uma estudante do ensino médio, Marina foi abusada quando passava por uma feira livre com as amigas. Um sujeito jovem, que não aparentava mais que vinte e cinco anos, se achou no direito de colocar a mão entre as pernas da moça e subir até o limite da coxa levantando a saia e expondo a menina. Marina agarrou nos braços de uma amiga e correu arrastando a colega. Chegou em casa chorando e foi incapaz de explicar o ocorrido aos pais. Inventou uma desculpa enjambrada e pôs uma pedra sobre o assunto.

A memória daquele dia voltou de forma avassaladora, ela olhou bem na cara do sujeito que se esparramava no ônibus. O canalha não desviou o olhar. Ele tinha uma expressão de lascívia e deboche, como de quem quer intimidar. Marina encolheu-se ainda mais e tentou olhar ao seu redor pelo reflexo do vidro da janela.

Lembrou que só voltara a usar saia muitos anos após aquele ocorrido na feira, bem na época que a saia evasê voltou à moda. Na ocasião, sentiu-se tão linda que dispendeu vários minutos a se medir do espelho. Naquele dia jurou para si mesma que jamais votaria a se privar de uma coisa de gostava por conta de macho babaca. Seja uma peça de vestuário, seja andar de ônibus, seja lá o que fosse.

Enquanto espremia a mochila contra o corpo sentiu uma das mãos do sujeito a lhe tocar o ombro e observou que a outra mão ele pousava sobre a própria genitália. Um arrepio percorreu toda sua coluna vertebral. A garganta secou, deu um nó.

Lembrou novamente da menina na feira, assustada. Lembrou da mulher deslumbrante de saia evasê, plena após recuperar um direito que lhe fora furtado por anos. Um direito tão elementar, não de vestir uma saia, mas de poder andar sem medo.  Ambas, duas versões de si. Nenhuma era ela naquele instante.

Olhou mais uma vez para o sujeito, ele sorriu. – ele tá rindo? – cada músculo do corpo de Marina se contorceu, de nojo e revolta. Segurou firme a mochila e num movimento furtivo descarregou com ira todas as mil duzentas e cinquenta e seis páginas do Solomons no meio da cara do sujeito. Fez um barulho opaco – toc! – e um filete melado de sangue desceu contornando a boca aberta do tarado. A motorista do ônibus freou bruscamente, olhou para trás:

- Tá tudo bem aí colega?

- Ela quebrou meu nariz!

- Eu não tô falando contigo não vacilão. Vaza daqui... Tá tudo bem contigo colega?

- Tá sim, já resolvi. – Respondeu Marina, enquanto observava o cretino descendo do ônibus.

 

 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

 

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