Antes sequer
do advento da bossa nova o historiador Sérgio Buarque de Holanda definiu o
brasileiro como “o homem cordial”. Olho por cima da minha xícara de café e
observo o movimento da Rua do Ouvidor. Rapidamente percebo que por aqui muito
se preservou da arquitetura dos tempos do velho Buarque de Holanda. Contudo me
questiono se tivemos o mesmo cuidado em manter, ao longo das décadas, o charme
do nosso ser cordial, brasileiro.
Não confundam
cordialidade com amabilidade ou polidez. O homem cordial é aquele que age com o
coração, que sabemos, possui razões que a própria razão desconhece. Pessoas
cordiais são sanguíneas, expansivas, francas e leais. Gente boa de embate e de
resenha. Entretanto me vejo rodeado por sujeitos taciturnos, debruçados sobre
seus egocêntricos smartphones. Por onde andará a nossa cordialidade? Para
encontrar a resposta, foi necessário retomar a definição que Frei Vicente do
Salvador conferiu aos nossos ancestrais colonizadores. Ele disse: são caranguejos
que vivem a arranhar o litoral. Como posso observar um coração debaixo de tão
espessa carapaça?
Numa viagem
recente conheci um caranguejo que fora arrancado da lama do mangue e afastado o
máximo do litoral. No planalto central, onde fora estabelecido, a umidade nesta
época do ano ronda os quinze por cento. Prontamente o sol secou a lama que
cobria o seu corpo crustáceo, convertida em poeira, foi levada pelo vento. E
ele então pôde despir sua armadura, tedioso exoesqueleto, e exibir desnudo o miocárdio.
Senhoras e senhores, eis o homem do serrado.
No encontro
ele é assim mesmo, arredio, turrão, direto. Vá lá, o sujeito anda por aí sem
carapaça. Tem mesmo que se proteger. Mas é tão mais fácil de lidar quando se
olha direto ao coração. Esqueça os salamaleques, as formalidades. Não seja
prolixo, coisa mais inútil. Vá direto ao ponto, pronto. - Podemos tomar uma
dose de pinga? Mais um dedo de prosa... Então. Ganhastes um amigo. Ou um
inimigo. Seja como for é sincero, verdadeiro.
Dizem por aí
que quem encontra um amigo encontra um tesouro. E se esse amigo for cordial
malandro, aí é tesouro pra Ali Babá nenhum botar defeito. Eis a grande vantagem
evolucionária do homem do serrado. A amizade. Não essa amizadezinha fuleira de
rede social que se acaba na primeira divergência. É amizade do cuidar, do
compreender, do participar. O homem do serrado não é tolerante. Tolerância é
para os cínicos. O homem do serrado aprendeu, em seu ambiente hostil, a conviver,
cultivar e compartilhar. A cordialidade do homem do cerrado é a essência da
civilidade.
No último
século, bandeirantes entramos sertão adentro e moldamos a nossa identidade mais
genuína. O homem do serrado. É tempo de fazermos o caminho oposto, do sertão ao
litoral, e resgatar a nossa cordialidade. De nada nos serve o patriotismo
vazio, ignóbil. É necessário evoluirmos ao ponto de olhar para o sujeito ao
lado e reconhecer nele um ser humano. Tal como você, potencialmente brasileiro,
potencialmente cordial.