sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Raiz

 

Raiz, é assim que os locais chamam o bairro de Raiz da Serra, em Magé. Um pequeno povoado cravado no vale que marca o início da subida da Serra da Estrela, cujo cume abriga a cidade de Petrópolis. A montanha, coberta pela mata atlântica, ladeia o bairro num formato de concha, os dias de ventania são frequentes. Algumas décadas se passaram desde a última vez que estive lá, mas eu fecho os olhos e ainda consigo ouvir o som do vento marinho contornando os paredões. Um mantra entoado pelas árvores e suas bromélias. A reza só é interrompida pelo trem, a ferrovia corta o bairro ao meio. Na minha infância a gente podia marcar a hora pelo apito – Quando descer o das dez eu passo na sua casa!  

Meus avós moravam numa das vilas de funcionários da Fábrica de Pólvora da Estrela. As casas eram separadas por um gramado dos muros baixinhos perfeitamente caiados pelos recrutas. Foram pensadas iguaizinhas, mas com o tempo, os moradores iam personalizando suas varandas. Uma tinha samambaias, outra begônias. Numa, cadeiras de vime, na outra um redário.

A dos meus avós, por ficar na esquina, era uma das mais diferentes. Ao adentrar o terreno avistava-se a casa à esquerda, no alto de um pequeno aclive. Como todas as outras era branca de janelas azuis. Aos fundos uma horta – tinha até aipim –  o limite do quintal era marcado por uma cerca viva, geometricamente podada pelo meu avô, jardineiro de profissão. Na frente um corredor de margaridas brancas marcava o limite da calçada.  A gente atravessava a rua, passava pela escolinha e chegava ao rio. Era uma festa.

É nesse lugar que está plantada minha raiz. Falar de raiz, para um sujeito de pele marrom feito eu, é muito complexo. Já sofri racismo tantas vezes quanto ouvi – Ah, você não é preto. Com o tempo me acostumei, a depender do fórum eu sou visto como branco ou como preto. Uma vez ouvi a professora ‎Lilia Schwarcz dizer que o órgão que vê é o olho, mas o que enxerga é a cultura. Contudo, por muito tempo olhei para o cara que aparece no espelho e perguntei:  quem és tu cara-pálida? Pois essa conversa fiada é para contar a vocês como encontrei a resposta.

A minha lembrança mais remota, a primeira que tenho da infância, vem desse quintal das margaridas. Eu e meus primos batucando com gravetos nas latas de leite e cantando para  a fúria de minha tia Maria Celeste:

- Dona Celestina, me dá água pra beber. Se você não me der água. Vou falar mal de você...

Por algum motivo ela detestava essa música, saía de tamanco na mão atrás da gente – Já falei pra não cantar isso peste! – E minha vó caía na gargalhada – Corre muriquinho! Corre, que hoje ela pega vocês!

Eu não devia ter quatro anos de idade, mas esta memória me vem com absoluta clareza. Pois é isto: a minha primeira memória é um jongo do Guineto. Sacou? Se eu não for preto parceiro, ninguém mais é.




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E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...