domingo, 29 de outubro de 2023

Toti


Armando Antunes de Oliveira Toti, ou, para os íntimos, simplesmente Toti. Foi o paulistano mais carioca que já viveu por essas bandas. Eu tenho inúmeras razões para justificar esta afirmação. A principal é o fato de o Toti ser profundo conhecedor de cada caminho do Rio de Janeiro.

Eu não estou de brincadeira, ele conhece a cidade maravilhosa melhor que muito carioca por aí. Principalmente aqueles que habitam o Além Túnel.

Conheci o Toti na época que eu era office boy e toda manhã tomava uma média com pão na chapa em uma padaria que tinha ali nas cercanias da Dias da Cruz, quase chegando no Leão do Méier. Essa padaria já fechou, no local hoje acho que funciona uma Drogaria Venâncio.

Um dia eu estava pegando uma dica de como chegar numa daquelas vielas escondidas de Copacabana quando a Dona Neusa, que no caso era tia da padaria que fazia no nosso café, apontou para ele e disse:

- Pergunta pro Toti.

Pronto o Toti virou uma espécie de oráculo para mim.

Dois meus oito leitores frequentes, metade são jovens mancebos. E é a estes que eu me dirijo nos dois parágrafos abaixo:

Houve um tempo que não existia Waze, tampouco Google Maps. Daí a gente tinha que recorrer ao Guia REX para poder se deslocar por aí.

O Guia Rex era um calhamaço que ficava disponível gratuitamente em toda a agência dos correios, era atualizado anualmente e trazia todas as ruas da cidade. Indicando as linhas de ônibus que passavam por elas, as que passavam perto, se dava para ir de metrô, trem, barca, o escambau. Contudo o uso do Guia Rex exigia letramento avançado em cartografia, biblioteconomia e hermenêutica. O que fazia do Toti a opção mais acessível.

- Toti, sabe qual é essa Rua... “Marcílio Dias”?

- Isso é uma ruazinha de uma única quadra perto da Central do Brasil, ali atrás do quartel.

- O dois quatro Méiar passa lá?

- Vai de trem meu camarada! Essa hora tá tudo engarrafado.

Há alguns anos o Toti voltou para São Paulo e o Rio sem ele perdeu uma fração importante de sua poesia. O cara faz tanta falta que até virou verbo: totiar. 

Expressão que é utilizada de forma costumaz no idioma dos botecos do grande Méier e região da Leopoldina quando alguém precisa de uma informação com riqueza de detalhes:

- Meu camarada, você poderia totiar pra mim como se faz isso?

Ou ainda, quando uma pessoa está te contatando um caso com excesso de explicação você pode interpelar:

- Já entendi, não precisa ficar totiando tanto...

Recentemente um amigo foi a São Paulo da garoa e encontrou o Toti. Quando ele retornou me contou tristonho que por lá já não se vê garoa, então São Paulo é São Paulo só, sem garoa.

Mas a boa notícia é que o Toti, apesar de ter voltado para sua terra natal há muito tempo, continua chamando isquina de isquina e thiatro de thiatro. Ou seja, àquela fração de poesia carioca que eu achava que havia se perdido, na realidade está muito bem guardada na casa do Toti.


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Foto: https://www.tupi.fm

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Dinastia

Eu entro em cada cilada que só vendo. Outro dia um amigo me pediu pra tomar conta de um peixe. Você leu certo. Um peixe! 

Te explico.

Esse meu camarada, o nome dele é Marcos, tem uma filhinha de 4 anos que ganhou um aquário com um peixinho vermelho de cauda azul chamado Charles. Como era de se esperar, a pequena se afeiçoou muito pelo bichinho.

Daí veio um feriadão e eles decidiram viajar para Madalena, cidadezinha do interior do Rio onde o pessoal gosta de ir para ficar olhando estrela à noite. O meu amigo Marcos achou então que seria mais seguro deixar um tutor responsável pelo peixinho Charles. Uma vez que se ele viesse a falecer, por fome ou excesso de temperatura no aquário, seria um desastre para a pobre criança.

Eu achei a história bonitinha e não me opus a ficar cuidando do peixe, afinal, que trabalho isso poderia me dar? 

Combinei tudo direitinho e eles deixaram o aquário lá em casa com duas instruções: manter a tampa fechada e alimentar com três bolinhas diárias – eles me deram também um pote com as tais bolinhas.

No primeiro dia que eu fui alimentar o Charles, me dei conta que as tais bolinhas eram minúsculas! Menores que um grão de mostarda. Achei uma muquiranagem dar só três míseras bolinhas para o peixe. Além do mais o Charles estava me olhando com uma carinha de fome.... dei logo umas trinta e oito bolinhas e fui à padaria comprar pão.

Quando eu voltei da padaria estava lá o Charles nadando de barriga para cima:

- Ei Charles véio de guerra! Tá com o buchinho, cheio mô fio!

Algumas horas depois eu olhei para o aquário novamente e estava lá o Charles na mesma posição. Só que dessa vez com uma expressão meio abobalhada e um olhar um tanto sem brilho.  Chamei a Maria:

-  Amor... vem aqui ver uma coisa...

Ela olhou e foi logo decretando:

- Morreu.

Esse tipo de notícia não se dá assim. Mas quem conhece a Maria sabe: ela é papo reto o tempo todo.

- Ao que parece morreu feliz. 

Fiquei ali imaginando como ia contar o caso para Marcos, e a menina tadinha... Depois de muito matutar eu tive uma brilhante ideia. Peguei o corpo do Charles, levei na loja de animais e perguntei para o atendente:

- Tem um igual?

- Morreu?

- Não... ele é atleta de apneia.

- Como?

- Morreu sim meu camarada, tem igual?

- Igual... igual não tem, mas tem parecido.

- Serve.

Peguei o peixinho novo, levei para casa e coloquei no mesmo aquário. A Maria quando viu olhou pra mim e disse:

- Esse é o Charles Segundo?

- É. Será que vão notar?

Ela ficou em silêncio. 

Dois dias depois achei que a casa de Charles Segundo estava um tanto suja.  Transferi o peixe para um balde e dei uma faxina caprichada no aquário – pelo menos do hardware eu ia cuidar bem. Arrumei a decoração e tudo mais. Ficou uma beleza.

Ao terminar eu olho para o balde... Cadê Charles Segundo?

Tava lá durinho no chão. O miserávi pulou do baldeeeee! Meu deus do céu me venderam um peixe suicida.

Voltei na loja de animais levando o cadáver de Charles Segundo:

- Então... o peixe que vocês me venderam morreu, vou querer outro.

- Vai comprar mais um?

- Nada disso, tem só dois dias que comprei, ainda tá na garantia...

Olha foi uma resenha. Essa parte não vou contar aqui porque envolve o uso de intimidação e palavras de baixo calão. Mas eu fiz valer meu direito de consumidor e peguei mais um peixinho.

Terminado o feriadão meus amigos foram lá em casa para pegar o aquário. A menina ficou toda feliz, mas o danado do Marcos olhou estranho para mim e disse:

- Tá crescidinho o Charles né Lapinha?

Ao que a minha patroa respondeu:

- Charles Terceiro.


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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Temos um culpado


Pela primeira vez neste século o Botafogo vive um momento de fato glorioso. Lidera o campeonato brasileiro desde as primeiras rodadas e soma uma vantagem avassaladora na tabela de pontuação.

Juan e seus dois filhos não perdem uma única partida no Engenhão. Sempre no setor leste inferior, na vigésima fileira. Os três acomodam-se religiosamente da mesma forma. A caçula senta-se no meio, com a camisa oficial, número sete nas costas. O mais velho a esquerda da irmã, trajando a camisa preta de treino, toma o seu lugar ao lado de um jovem casal tijucano.  Sim eles sempre estão lá na mesma posição. O tijucano é um cara bonachão, com dread bem trançado e uma tatuagem de Jesus Cristo negro cobrindo todo o braço esquerdo. Sua esposa, branquinha e de cabelos encaracolados, parece uma professora da educação infantil. 

O lugar do Juan é a direita da filha. Ele sempre veste sua camisa retrô do Nilton Santos. Já ficou amigo do mageense que se senta ao seu lado. Um senhor idoso, preto e magrinho que usa a camisa do Tulio, àquela do seven-up. Toda partida  o velho torcedor mageense leva um cavaquinho sob o suvaco. Ambos, o homem e o instrumento, aparentam a mesma idade. 

A fileira de baixo invariavelmente é  ocupada por  grupo que freta uma van para vir de Volta Redonda ao Rio. E a de cima por uma turma de ex-alunos da escola técnica federal de química. E assim vai se formando a torcida do Botafogo.  

Porém, na última semana, por causa de um problema na conexão com a internet, o Juan não conseguiu comprar os ingressos para o clássico com o Flamengo. Logo contra o arquirrival. Os meninos ficaram furiosos, o mais velho então, estava à beira de um colapso.

-  Calma – tranquilizou o Juan – a gente vai proceder conforme vem dando certo nos jogos que a gente joga fora do Rio. Vamos ficar aqui neste sofá, sua irmã no meio, você de um lado, eu do outro.

- A mamãe não pode estar em casa.

- Eu sei, eu aviso pra ela, vai dar tudo certo.

A partida é na noite de sábado. O jogo se inicia com clima tenso e após dois, apenas DOIS minutos, Wesley, lateral do Flamengo, cruza uma bola na área e a defesa do Botafogo, num erro tosco, chuta contra o próprio patrimônio. Gol do Fla. Os meninos olham para o Juan, abobalhado com a garrafa verdinha da longnek paralisada no meio do caminho entre o braço do sofá e a sua boca.

- Pai!

- Quê.

- PAI!

- Que foi?

- Tá sem camisa pai... falou a menina choramingando

Juan notou o erro e saiu correndo para o guarda-roupas, revirou de um lado para o outro e nada de achar a camisa retrô do Nilton Santos. Ligou para a mulher. Ela, que estava num barzinho com as amigas da pós-graduação, deu uma enquadrada no malandro e disse que ele se virasse e não voltasse a ligar por um motivo desses.

Juan procurou mais uma vez no armário. Nada de encontrar.  Lembrou-se da pilha de roupas que aguardavam para serem passadas no cantinho da área de serviço. Correu até lá. Derrubou a pilha de roupas no chão e enfim, achou a camisa retrô do Nilton Santos.

Foi o tempo do Juan sentar-se no sofá, terminar o gole na cerveja que havia sido suspenso no início do jogo. Bola no ataque do Fogão, a zaga do Flamengo desarma o Tiquinho Soares, mas a redonda sobra aos pés de Vitor Sá, que chuta sem chances de defesa para o goleiro adversário. Botafogo um, Flamengo também um. Os três comemoraram em êxtase.

A partida segue tensa. Agora estamos no segundo tempo, jogo pegado, porém morno, sem chances claras para ambos os lados. Uma barata entra voando na sala do Juan, as crianças começam uma gritaria.

- Pega! Pega! Mata! Mata!

Poucas coisas nesse mundo são mais apavorantes que uma imensa barata voadora. Num reflexo impensado, Juan tira a camisa retrô do Nilton Santos e num rodopio acerta o inseto que cai ao chão desnorteado. Uma pisada firme, um estalo nojento, está completo o serviço.

Enquanto, ainda sem camisa, o Juan com uma pá e uma vassoura recolhia o cadáver da barata, uma bola era lançada para o Bruno Henrique, o mais talentoso atacante do Flamengo. Veloz como uma flecha Bruno Henrique passa pelos defensores do Botafogo, e num lindo chute acerta o ângulo da meta alvinegra. Golaço do Fla. Daqueles que, de tão bonitos, merecem uma placa.

Botafogo 1, Flamengo 2.

As crianças se negam a olhar para o pai. Nada se ouvia, um silêncio sepulcral se instala na sala. Silêncio que só seria quebrado ao término da partida. Decretada a derrota do Botafogo o filho mais velho do Juan respira fundo e setencia:

- Barata filha da puta.


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domingo, 27 de agosto de 2023

Solomons


Marina retornava para casa após um dia intenso de trabalho e estudo na pós-graduação do Instituto de química da UFRJ. Pegou o ônibus da linha nove três meia no fim da tarde, quando a Ilha do Fundão estava coberta por uma luz  cambaleante. As folhas dos oitis sibilavam ao sabor de um vento morno. Era o anúncio de uma frente fria, a segunda daquele ano. Sentiu um alívio danado quando tomou o assento e pousou sobre o colo a pesada mochila contendo os dois volumes do Solomons, era o trabalho do fim de semana.

Para você que, assim como eu, não sabe fazer um “ó” com um copo na areia, explico que “Solomos” é como os cientistas chamam na intimidade o livro escrito pelos americanos T.W. Graham Solomons, Craig B. Fryhle e Scott A. Snyder, intitulado: Química Orgânica. São dois volumes que somam mil duzentas e cinquenta e seis páginas em mais de três quilos de capa dura e conhecimento que eu e você jamais teremos. Nesta e na próxima vida.

Dezoito minutos depois de conseguir o assento no ônibus Marina quis pegar no sono, mas foi acordada por uma perna insistente roçando na sua. Olhou para o lado e notou um senhor de meia idade vestindo uma camisa polo listrada. A gola mal passada estava muito amarelada bem no contorno do pescoço, empapado de suor. Marina se espremeu no canto do banco, como se quisesse fundir-se à parede do coletivo. Ainda assim, a perna folgada do sujeito alcançou a sua.

 – Este ônibus não está cheio, nem esse cara é assim tão grande, eu não acredito que está acontecendo comigo de novo. – Pensou.

Aos quinze anos, quando ainda era uma estudante do ensino médio, Marina foi abusada quando passava por uma feira livre com as amigas. Um sujeito jovem, que não aparentava mais que vinte e cinco anos, se achou no direito de colocar a mão entre as pernas da moça e subir até o limite da coxa levantando a saia e expondo a menina. Marina agarrou nos braços de uma amiga e correu arrastando a colega. Chegou em casa chorando e foi incapaz de explicar o ocorrido aos pais. Inventou uma desculpa enjambrada e pôs uma pedra sobre o assunto.

A memória daquele dia voltou de forma avassaladora, ela olhou bem na cara do sujeito que se esparramava no ônibus. O canalha não desviou o olhar. Ele tinha uma expressão de lascívia e deboche, como de quem quer intimidar. Marina encolheu-se ainda mais e tentou olhar ao seu redor pelo reflexo do vidro da janela.

Lembrou que só voltara a usar saia muitos anos após aquele ocorrido na feira, bem na época que a saia evasê voltou à moda. Na ocasião, sentiu-se tão linda que dispendeu vários minutos a se medir do espelho. Naquele dia jurou para si mesma que jamais votaria a se privar de uma coisa de gostava por conta de macho babaca. Seja uma peça de vestuário, seja andar de ônibus, seja lá o que fosse.

Enquanto espremia a mochila contra o corpo sentiu uma das mãos do sujeito a lhe tocar o ombro e observou que a outra mão ele pousava sobre a própria genitália. Um arrepio percorreu toda sua coluna vertebral. A garganta secou, deu um nó.

Lembrou novamente da menina na feira, assustada. Lembrou da mulher deslumbrante de saia evasê, plena após recuperar um direito que lhe fora furtado por anos. Um direito tão elementar, não de vestir uma saia, mas de poder andar sem medo.  Ambas, duas versões de si. Nenhuma era ela naquele instante.

Olhou mais uma vez para o sujeito, ele sorriu. – ele tá rindo? – cada músculo do corpo de Marina se contorceu, de nojo e revolta. Segurou firme a mochila e num movimento furtivo descarregou com ira todas as mil duzentas e cinquenta e seis páginas do Solomons no meio da cara do sujeito. Fez um barulho opaco – toc! – e um filete melado de sangue desceu contornando a boca aberta do tarado. A motorista do ônibus freou bruscamente, olhou para trás:

- Tá tudo bem aí colega?

- Ela quebrou meu nariz!

- Eu não tô falando contigo não vacilão. Vaza daqui... Tá tudo bem contigo colega?

- Tá sim, já resolvi. – Respondeu Marina, enquanto observava o cretino descendo do ônibus.

 

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sábado, 8 de julho de 2023

Não conta lá em casa


Eu começo essa crônica pedindo encarecidamente para que não deixem essa história chegar lá no Cu da Mãe.

Para você que é novo nesta coluna, eu explico que o Cu da Mãe é um complexo de bares situado nas cercanias da estação ferroviária de Piabetá, a antepenúltima do ramal Inhomirim. Ambiente de ilibada reputação frequentado majoritariamente por trabalhadores do transporte público, garçons e chapeiros em fim de expediente, moças rechonchudas em trajes mínimos, cronistas e outros tipos de desajustados.

Como frequentador antigo eu tenho certas regalias, tais como ter a cerveja servida em copo americano, um luxo. Mas se alguma boca maldita for lá no Cu da Mãe para  contar os fatos que aqui hei de narrar e, principalmente, dizer onde eu fui parar, temo imensamente pela manutenção de meu status social.

Acontece que, por uma sequência improvável e bizarra de eventos, eu fui parar em Orlando. Lá mesmo! Orlando City. Paraíso mundano das pessoas que compram produtos fora de moda no estrangeiro com objetivo único de: tirar onda. Seja nos corredores do shopping em Ribeirão Preto ou na fila da cantina da igreja em Uberaba.

Eu sei, você deve estar se perguntando como danado eu fui parar em Orlando. Pois até o momento da edição final deste texto eu não concebi explicação plausível. Apenas uma coisa é certa: Lapinha em Orlando é como uma vaca em cima de uma árvore. Explico, se você, caro leitor, um dia avistar uma vaca no topo de uma árvore tenha duas certezas: ela não chegou lá por meios próprios e, tampouco, há de ficar por muito tempo. Eu, por exemplo, já fui e voltei e você nem percebeu.

Quando eu visito destinos assim tão exóticos tenho o mal hábito de me empenhar em descobrir a alma do lugar. Nesta tarefa, confesso que Orlando talvez tenha sido o lugar que mais me deu trabalho. Meus dias lá se esvaíam entre meus dedos e eu sequer tinha um vislumbre. Definitivamente eu não entendia aquele lugar. Relutava bravamente ante à ideia de que a cidade inteira se resumia a um grande shopping a céu aberto.  

A minha primeira pista encontrei numa manhã quando saí pra dar uma corridinha (agora que o pessoal do buteco vai acabar comigo) – Corridinha Lapa? – Mas esta é a questão. Passei correndo por um senhor pretinho bem velho, ele tinha um ombro mais erguido que o outro, o cabelo grisalho volumoso e as pernas desproporcionalmente longas. Enquanto ele usava um ancinho para, cuidadosamente, tirar as  folhas secas de cima do gramado, ergueu os olhos em minha direção e disse:

For what any misery are you running bro? – Algo como… - Por que miséra você tá correndo irmão?

Alguma coisa no sotaque... E, até mesmo no gestual dele, me lembrou que eu estava no sul da América do Norte. O mesmo Sul que deu ao mundo a maravilha do Blues.

No fim daquele dia eu achei um boteco dentro de um shopping (tisc!) com um quarteto de cordas mandando ver nas dissonâncias e demais acochambres, mas... Sei lá, não era a música, era o entorno. Talvez se fosse New Orleans, mas ali, naquele lugar, a canção me trouxe uma sensação de estar na festa certa com a roupa errada. Além do mais, eu já passei muito dos vinte e cinco anos, vocês sabem, eu também, um tango argentino me cai bem melhor que um blues.

Saindo deste boteco eu peguei um uber e o motorista veio puxar assunto comigo em espanhol. Se ele fosse do oriente médio iria puxar assunto em árabe. É assim a vida de um mulato feito eu no estrangeiro. Ocorre que tanto os árabes quanto os latinos ficam um bocado confusos quando eu digo que não compreendo o idioma – Como assim irmão! Qual foi? - Daí eu explico que sou brasileiro e um sorriso logo se abre:

- Brasileño han...

- Sí.

Daqui pra frente cabe ressaltar que eu não falo tampouco escrevo nada em espanhol. Então os diálogos serão transcritos da forma como eu acho que ouvi.

- Brasileño han...

- Si

- Yo soy de la Republica Dominicana. Caribeño papi!

- Legal!

Daí o motorista começou a cantar. Isso mesmo, cantar, do nada, do nadão:

- E tôdo passa, Tôdo passa, Tôdo paaaaaaaassará!

- Nelson Ned? – perguntei

- Si papi. El brasileño mas querido de todo el Caribe....

- Puta que pariu. Tá me zoando.

- Como? Soando?

- Jo quiz disser... no creo...

- Si... Mui amado.

Daí seguimos conversando sobre música. Provando a tese de que do “Bravo até a Terra do Fogo, desde que se tenha boa fé e fale devagar, todos se entendem”. Fui apresentado à música de  Xiomara Fortuna e a Omar Alfanno, enquanto ele me explicava a influência da cultura musical brasileira no Caribe, de Milton Nascimento a Anitta.

- Que hermosa es esta Anitta heim, papi?

- Ela é demais. - Respondi

- E nos és solamente la sensualidad, la chica tiene mucho talento hannn?

- Siii...

- E Alezandre? Por onde anda Alezandre?

- Alezandre?

- Sí Alezandre Pires.

- Ah.... Gravou disco com seu Jorge.

- Quem?

- Su Jorge, Su Rorre... põe aí no google

- Escribe aquí

O cara me entregou o celular dele, que estava pareado com a multimídia do carro, coloquei pra tocar o show do Alexandre Pires com Seu Jorge: Irmãos. 

Três acordes depois o meu amigo motorista pirou o cabeção – Como no pude haber conocido a esto Rorge? Papi de Dios!

E assim viemos, um dominicano e um brasileiro, ouvindo pagode ao longo da Palm Parckway boulevard. Quando estávamos quase chegando ao meu destino perguntei:

- Quanto tiempo estás em Orlando

- Nueve años.

- Usted já encontrou la alma deste lugar?

- Como?

- Usted entiendes este lugar?

- Orlando City?

- Si.

- Soft power papi! Los Estados Unidos inviesten RIOS de doláres en el cine.  Aquí en Orlando, los turistas los devulven toda essa grana, com la debida adición. Y... lo hacen con gusto y felicidad! 



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domingo, 28 de maio de 2023

Coragem


Minha avó Maria foi a mulher mais corajosa que viveu ao sopé da Serra da Estrela. Na ocasião o Fragoso, que atualmente é um bairro dormitório, era uma fazenda que produzia frutas e verduras à sombra da montanha.

Onde hoje passam avenidas agitadas cercadas pelo ruidoso comércio de periferia, havia trilhas de terra batida ladeadas por frondosos laranjais. Nas colinas, hoje tomadas pelo capinzal rasteiro, produzia-se abacaxis. Os grotões eram destinados aos bananais e nas várzeas e veredas, atual morada dos pobres mais pobres, plantava-se mandioca e toda sorte de hortaliças. Aquelas terras alimentavam os moradores da capital da jovem república, no extremo oposto da Baía de Guanabara, assim como havia alimentado a capital do império, e todas as civilizações anteriores.

Meus avós eram colonos da fazenda e moravam numa casinha muito distante da sede. Tinham nove filhos, a maioria seguia com meu avô para a lida no campo, enquanto os maiores pegavam pesado no roçado, os menores faziam tarefas mais simples como catar os ovos das galinhas ou tanger as cabras. Apenas as crianças muito pequenas ficavam com a minha avó em casa, dentre elas minha mãe, que se lembra de viver agarrada às anáguas de Dona Maria a testemunhar seus atos heróicos. 

Vovô saía de casa antes dos primeiros raios de luz e era comum que voltasse para casa bem depois do pôr do sol. Sempre iluminando o caminho com a luz cambaleante do candieiro. Na maior parte do tempo era a vovó que, sozinha, cuidava da pequena roça que o coronel permitia plantar ao redor da casa, sem a qual a família não comeria. Além de defender seus filhos pequenos dos mais furtivos perigos.

Teve uma vez que um tarado que rondava a casa foi colocado em seu devido lugar com chá de arrebenta cavalo e muita reza. A carabina, municiada com chumbo e sal grosso, destinava-se aos ladrões de galinha, fossem eles predadores de quatro patas ou duas pernas. Mas de todos os perigos, o que mais incomodava era uma assombração que vinha sacudir as venezianas das janelas ao cair da noite, um pouco depois da Ave Maria.

Vovó colocava os pequenos diante do oratório, passava a mão na foice, abria a porta da cozinha e botava a alma penada pra correr:

- Sangue de Jesus tem poder! Vá de retro que aqui não é seu lugar.

O troço ruim fugia correndo para as bandas do bicão, uma fonte d'água que brotava entre duas colinas.  Essa rotina se repetiu por por semanas, até que minha avó decidiu armar uma tocaia.  

Numa tarde de outono ela colocou as crianças para rezar mais cedo e escondeu-se atrás de um mafuá de quinquilharias que meu avô acumulava na varanda. Quando a alma penada apareceu vovó deu um susto no infeliz e o encurralou no canto entre o tanque de lavar roupa e a parede da casa. 

Ela apontou a foice para o pescoço do desencarnado, que se pudesse ficaria empalidecido. Seu rosto de fantasma não era muito distinguível, pois sua pele era translúcida como de uma água viva. Contudo sua silhueta denunciava que em vida fora um homem branco e rechonchudo.

- O que o sinhô tanto quer aqui, que não me deixa em paz rezando com minhas criança?

- Me desculpa senhora, eu sou de paz. É que eu ouço a senhora rezando com tanta fé. É tão bonito . Daí, eu venho aqui na injeção de pedir que a senhora acenda uma vela pra mim. 

- E por que o sinhô não me disse isso antes?

- A senhora vem pra cima de mim com essa foice, eu fico com medo e fujo.

- Como é? - Vovó enquadrou a alma penada – Não é atoa que não te querem no além, homem frouxo até depois de morto.

- Por favor, minha senhora, eu peço só uma reza, é pra eu achar meu caminho.

- Pois vá em paz, que lhe acendo uma vela e ainda encomendo uma missa.

O espírito agradeceu o foi-se embora para sempre.

Os mais antigos dizem que vovó desencantou três lobisomens, convenceu as mulas sem cabeça que seria melhor e mais organizado se elas só assombrassem  nas noites de quinta-feira, exceto a da semana santa. Curou o umbigo de toda uma geração, acabou com uma epidemia de sarampo, botou pra correr um pessoal que dava golpe vendendo ouro de tolo e desbaratou uma quadrilha que traficava charque de origem duvidosa pelo rio Saracuruna.

 

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sábado, 29 de abril de 2023

Pechincha

Elisabeth Cristina, professora do sétimo ano do colégio estadual Antônio Prado Júnior, moradora do Andaraí desde o ano de dois mil e oito quando deixou Araraquara, sua cidade natal. Queixava-se com Liliane, vizinha e colega de profissão, sobre a inexistência de uma cabeleireira profissional capaz de entender as nuances e particularidades das mulheres de pele clara que possuem cabelo crespo. 

Pois Liliane, que também era crespa de pele clara, disse que soube por fontes seguras que existia um salão especializado neste fenótipo. Onde, segundo a mesma fonte,  prestava-se um serviço de excelência. Maaassss ficava lá em Campo Grande. 

Pra você que não é do Rio deixa eu explicar uma coisa: Campo Grande aqui não é a capital do Mato Grosso do Sul, mas um bairro homônimo na cidade do Rio de Janeiro. O que não faz muita diferença pois o trânsito no Rio é tão ruim que às vezes, partindo do Andaraí, leva-se o mesmo tempo de viagem para chegar nas duas Campo Grande. 

Eis o motivo da professora Liliane dizer "maaasss" com três "as" e quatro "ésses" no início da oração: "maaassss fica lá em Campo Grande". 

Acontece que a Professora Elizabeth Cristina é sobretudo determinada. E lá foi ela atrás de informações sobre o afamado salão das crespas em Campo Grande. Algumas incursões nas redes sociais depois, ela descobriu o endereço, o telefone de  contato e uma promoção imperdível: corte e hidratação profunda por apenas 120 reais.

Pra você que não conhece os preços dos serviços de salão de beleza no Rio de Janeiro, explico que um procedimento assim não costuma sair por menos de 200 pratas. O que coloca a professora Elizabeth Cristina diante de grande oportunidade. - Uma pechincha! - Ela não ia perder.

Depois de muita insistência, a professora Liliane concordou em, no sábado seguinte, acompanhar a professora Elizabeth Cristina na incursão até o salão. Porém, na hora H ela não apareceu e, como desculpa, contou uma história confusa sobre o dente quebrado do filho, o filme do Sonic e a geladeira da cozinha.

Elizabeth Cristina não se deu por vencida.  Pensou:

- Aqui no bairro custa: 200,00...
- Salão em  Campo Grande 120,00...
- Saldo: R$ 80,00

Pegou seu pequeno Toyota Etios e partiu na manhã de sábado, bem cedinho, para não pegar engarrafamento.

Falhou miseravelmente.

De fato, sábado pela manhã é pouco provável que haja engarrafamento na avenida Brasil no sentido tomado pela professora Elizabeth Cristina. Porém, a Avenida Brasil é uma via sádica e temperamental que se reserva o direito de engarrafar quando bem entender. Duas horas e oito minutos depois de sair de casa ela chegou em Campo grande. 

- Saldo anterior: 80,00...
- Combustível: 37,50...
- Saldo: R$ 42,50

Como ela estava atrasada e não conhecia bem a região decidiu deixar o carro em um estacionamento privado. 

- Vinte e cinco reais senhora!

- Que isso moço!

- Mas pode deixar o dia todo...

- Faz um descontinho pra mim.

- Deixa vinte então.

- Saldo anterior: 42,50...
- Estacionamento: 20,00...
- Saldo: R$ 22,50.

O atendimento no salão era mesmo muito cordial. O lugar, muito bem decorado, tinha o clima animado de salão de beleza aos sábados. Falatório, barulho de secador e aquela névoa com cheiro doce de creme para pentear que deixa o ar mais denso. 

A professora Elizabeth Cristina foi convencida que a cor de cabelo da moda era "morena iluminada" e acabou comprando um"pacote imperdível" que além da tintura incluía pé, mão e sobrancelha. Era caro... Mas, dividia em dez vezes no cartão.

- Saldo anterior: 22,50...
- Pacote imperdível: 10 x 45,00...
- Saldo R$ - 427,50.

Passaram-se três horas e meia desde o início de todos esses procedimentos estéticos, além dos quarenta minutos de espera. Professora Elizabeth Cristina já estava entediada e sobretudo faminta. 

- Tem almoço?

- Saldo anterior: -427,50
- Quiche sem glúten, salada, guaravita e dois brigadeiros: 37,00.
- Saldo R$ - 464,50.

Pelo menos na volta não pegou trânsito.

- Saldo anterior: - 464,50
- Combustível da volta: 28,25
- Saldo R$ - 492,75.

Professora Elizabeth Cristina chegou em casa exausta e foi direto para o banho. Ao se despir percebeu que a tinta que usara no cabelo havia machado desastrosamente a parte de trás do vestido. Praticamente novo. 

- Saldo anterior: -492,75
- Vestido recém comprado: 215,00
- Saldo R$ - 707,75

Dois dias depois, a professora Elizabeth Cristina sentiu uma coceira esquisita. Lavou o cabelo. A coceira não passou. Lavou novamente na manhã do dia seguinte e, ao secar o cabelo, notou um bichinho esquisito na toalha, muito parecido com um que ela viu em seu ombro quando tirou a touca do salão. No dia ela não deu muita bola.

- Saldo anterior: - 707,75
- Emulsão antipiolho e pente fino de aço: 42,25
- Saldo R$ - 751,00

Passados quinze dias, o marido da professora Elizabeth Cristina diz enquanto os dois se arrumavam pela manhã:

- Amor.... Quando você chegou naquele dia eu gostei da mudança. Mas agora tá ficando com uma cor esquisita... Meio alaranjado....

- Ah benhê... - com sotaque bem paulista - benhê.... Não inveNta!

Elizabeth Cristina ficou na negação por mais uma semana a despeito das inúmeras indiretas dadas pelas amigas do trabalho. Até que veio um feriado e ela foi visitar a mãe, em Araraquara, onde foi recebida com toda cordialidade do interior paulista:

- Que cagada é essa que a senhora fez no cabelo dona Elizabeth Cristina?

Ao retornar da viagem Elizabeth Cristina decide voltar ao mesmo salão de sempre, no Andaraí, há duas quadras de sua residência.

- Saldo anterior: - 751,00
- Novo corte, mais tintura, mais hidratação ultraprofunda: 3 x 95,00
- Saldo: R$ - 1036,00

Uma pechincha. 


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.


sábado, 15 de abril de 2023

Seiscentos e dez

Em plena terça-feira, às duas horas da tarde, peguei o seiscentos e dez em Del Castilho para ir à longínqua Taquara. 

Por algum motivo os empresários acham que os ônibus dessa linha devem ser menores que os demais. - Vocês tão ligados que em certas linhas eles colocam uns ônibus menores? Faz sentido? Pra gente que é pobre não faz nenhum. Mas pra eles deve fazer. - Enfim, essa linha vive cheia.

Era uma tarde dessas de verão quando na zona norte do Rio faz quarenta e cinco graus na sombra. O forte  calor contorcia o ar próximo ao asfalto e a gente podia ver a quentura dançando sobre ele. O céu era de tamanho azul que nos causava embriaguez e o sol estava tão próximo que podia-se sentir seu gosto, metalizado. 

O ônibus tinha lá seu ar condicionado, mas ele não dava conta. Pobre máquina que nem de longe foi concebida pra resfriar aquela quantidade insana de corpos amontoados dentro de uma caixa feita de aço e vidro. A atmosfera dentro do ônibus era úmida, causticante. Uma espécie insalubre de sauna movida à ar supostamente frio.

O lado "bom" dessa linha é que seu trajeto quase não tem paradas e, se não tiver engarrafamento, o ônibus tende a esvaziar-se rapidamente. Para minha sorte, assim foi neste dia.

Quer dizer... Foi mais ou menos. A viagem fluiu bem até a estrada do Pau Ferro. O ônibus esvaziou e eu, surpreendentemente consegui sentar. Na janela! Porém, chegando  no  Largo do Pechincha, o trânsito simplesmente parou. 

Eu ali dentro daquele coletivo, tentando não sufocar no ar quente e semissólido que havia sobrado após a multidão ter lhe consumido quase todo o oxigênio disponível. Olhei com melancolia para o lado de fora. Uma confusão de carros parados em todos os sentidos e uma quantidade infernal de motocicletas tentando achar um caminho entre eles.

O tempo da vida, que estava suspenso para os infelizes feito eu, confinados dentro dos veículos, contrastava com o das pessoas nas calçadas. Ali, o dia vibrava em outra frequência. 

Armarinho de um lado, vendedor de ervas do outro. Incontáveis farmácias. Padaria, mercadinho, banca do bicho, jornaleiro, churrasquinho jogando fumaça e gordura pro alto, como se já não bastasse o calor do verão. Loja de roupa, de móveis, de eletrodomésticos, de celular. Salão de beleza, manicure e pedicure. Gente, gente e mais gente. As calçadas botavam gente pelo ladrão, porque não era possível andar somente por elas, dado a grande quantidade de camelôs.

Ah... E botequim. No Largo do Pechincha o que não falta é botequim. Num desses eu vi sentado  um senhor de pele escura com uma barba volumosa e geometricamente aparada. Ele tinha um cabelo longo, trançado com fios vermelhos e  amarrado num coque bem no topo da cabeça. Ele fez um sinal para o garçom que lhe trouxe um copo americano vazio. 

Fiquei de olho.

O garçom adentrou no estabelecimento e retornou com uma garrafa de cerveja dentro de uma camisinha. Apoiou sobre a mesa, tirou a chapinha. Verteu cuidadosamente o líquido dourado. Notei que o ar condensava ao redor do copo à medida que ele era completado. Uma espuma branquinha e perfeita se formou na borda.

O senhor agradeceu gentilmente ao garçom. Ergueu o copo com absoluta elegância e, lentamente, sorveu todo o seu conteúdo. Acho que foi coisa da minha mente, mas posso jurar que ouvi o barulho do copo vazio batendo na mesa: - tec!

O ônibus andou, engoli seco, puxei o sinal. 



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domingo, 19 de março de 2023

Reencontro


A pandemia nos afastou de tal forma que vira e mexe eu ainda encontro um ou outro amigo que há muito não vejo. Semana passada foi o professor Antônio, mais conhecido como professor Tonhão, da Federal de Minas Gerais.
 
Estava eu a perambular por São João del Rei e encontrei o professor Tonhão num bequinho que ladeia a igreja de Nossa Senhora do Pilar e dá acesso à Rua Getúlio Vargas. Bem no ponto onde um sobrado amarelinho em art déco destoa dos seus vizinhos coloniais.

Vinha eu a descer as escadas tentando acompanhar os passos acelerados do meu filho e o professor Tonhão, no sentido oposto, a subir mineiramente devagar. Ele carregava uma sacolinha branca numa mão e um guarda-chuva fechado na outra. Camisa de linho, calça de alfaiataria , o professor Tonhão é um romântico incorrigível.

- Professor Tinhão!

- Lapiiiiiinha! É você? 

- E tem outro? Olha aí o meu menino.

- Nuuuu como cresceu!

O professor havia mudado muito pouco, exceto por dois detalhes. O cabelo, outrora grisalho, agora era absolutamente branco, uma bruma. E, o que mais me causou estranheza, ele estava usando  um aparelho ortodôntico. 

Entendam, não é comum uma pessoa na faixa etária do professor Tonhão usar aparelho ortodôntico. Ok... Eu sei que não existe isso de idade, cada um faz o que quer, ou o que pode, pela sua saúde quando bem entender. Eu só estou dizendo que é raro. 

Además, era nítido o incômodo que aquele aparelho causava na boca do professor. Era uma inaptidão tão escancarada que eu fiquei matutando um jeito de perguntar, de forma educada e discreta, o porquê dele ter colocado aquilo. 

Mas, foi só no dia seguinte que tomei conhecimento dos fatos . Estávamos tomando uma pinga numa roda de samba que tem todo domingo em frente à igreja do Carmo, quando o professor Tonhão foi dar uma mordida num torresmo e soltou um sonoro:

- Fedazunha! (Quem é letrado em mineirês entende a gravidade da expressão - é bem grave)

- O que foi professor?

- Eu não aguento mais essa trenheira aqui na minha boca!

Fez-se silêncio. Fiquei olhando pra ele por cima dos óculos. Ele passou cerimonialmente o guardanapo sobre os lábios, suspirou e me disse.

- Você quer que eu te conte como eu entrei nessa roubada, não né?

- Mas desde ontem eu não penso em outra coisa professor.

- Pois bem - tomou um gole de pinga - a minha caçula, Rosângela, se formou em odontologia...

- Que maravilha!

- É. Daí ela inventou de fazer pós-graduação em ortodontia. Só que a pessoa pra ser formar ortodontista  tem que fazer aula prática. 

- Faz sentido.

- Fazer sentido faz. O difícil é achar um mineiro que queria colocar aparelho dentário com uma pessoa que ainda está se formando.

- É, não vai achar. Já entendi tudo.

- Ela precisava de uma boca - disse com forte pesar - ofereci a minha.

- Entendo professor, afinal, o que a gente não faz pelos filhos?- Percebi que o clima estava ficando pesado, fiz sinal para garçom trazer mais uma pinga.

- E o pior é que ela teve que me arrancar quatro dentes. Dois em cima e dois embaixo.

- Ela mesmo arrancou?

- Ela mesmo...

Silêncio.

- Ah professor, também não precisa ficar com essa cara aí. Toma outra, toma...

- É porque não é sua boca que dói. Faz mais de mês que eu não como um torresmo. Você sabe o que é isso?

- Deus me livre e guarde!

- Amém - virou o copo - E o pior, PIÓR, eu nem te contei ainda. 

- Ah... tem pior, pior...

- Tem. A danada foi chamada pra trabalhar numa prefeitura aí no interior... Começou no fim do ano passado. Daí agora em março veio com uma conversaiada de que não tava dando conta... Muito serviço...

Pausa dramática.

Eu não aguentei, tive que quebrar o silêncio:

- Trancou?

- Sim, trancou. Faltando menos de um ano pra acabar, ela largou o curso. E eu  fiquei aqui, com esses ferro na boca.



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domingo, 5 de março de 2023

Deus é brasileiro


Meu amigo Juan me contou que no último fim de semana foi levar o filho adolescente para assistir o clássico Vasco e Botafogo no Maracanã. 

Até aí sem novidades. O Juan e o filho não perdem um único jogo do Botafogo no Rio. Todo botafoguense é Botafogo louco. Não existe botafoguense torcedor de final.

A novidade foi que o moleque pediu pra ir na torcida mista. Pois tinha combinado de encontrar a galera da escola. O Juan não gostou nada da ideia - torcida mista é uma tremenda roubada - mas acabou cedendo aos apelos do filho.

Um dia antes do jogo o filho do Juan perguntou se poderiam levar o Gael, amigo da escola e morador do mesmo edifício. O Gael vive mais na casa do Juan que em sua própria, então meu amigo não estranhou o pedido. Naquele mesmo dia ligou para a mãe do menino Gael pelo interfone do condomínio no intuito combinar os detalhes:

- Mas ele já está com o ingresso?

- Não, mas o padrinho dele vai encontrar com vocês lá na porta do estádio...

Você, caro leitor, se tiver mais de quarenta anos de idade, já percebeu que essa história não tem como dar certo, cilada. Mas vamos em frente, o Juan é otimista. 

Chegaram ao estádio com bastante antecedência, mas nada do padrinho do Gael dar o ar de sua graça. O local combinado pra o encontro era a parada de ônibus que fica em frente à entrada lateral da UERJ, bem ao lado do Maracanã. Famoso ponto de assaltos da cidade do Rio de Janeiro. O tempo passando, os meninos tensos, o Juan um tanto mais que tenso:

- E aí Gael?

- Tá chegando tio, ele disse que tá preso na radial.

- Pede pra ele compartilhar a localização no zap.

- Tá.

Cinco minutos depois

- Ele compartilhou?

- Sim tio, olha - mostrou o celular.

- Putamerda...

Estava longe.

Cinco minutos antes do início da partida o padrinho do Gael chega, dá uma meia parada no Honda fit 2008, porta traseira amassada, abaixa o vidro, entrega o ingresso, manda um - nós se vê por aí - e dá no pé. O Juan achou estranho mas, pelo avançado da hora, saiu arrastando os meninos para o Maraca. 

A partida já tinha sido iniciada, contudo ainda havia uma fila ziguezagueando para chegar as roletas de acesso. Lá se vai o tempo, e eles lá, avançando à passos de cágado. Quando estavam à poucos metros do portão, o Juan tem um insight:

- Gael? Você avisou para pro seu padrinho que a gente ia no setor "leste inferior"?

- Num sei tio, minha mãe que falou com ele.

- Deixa eu ver aqui.

Pegou o ingresso da mão do menino.

- Putaqueopariu! - Juan ficou imóvel por alguns segundos na fila.

- O quê houve pai...? - Perguntou o filho do Juan, testa franzida, olhar oscilando entre estranheza e desespero .

- Leste superior. O Gael está com "leste SU-PE-RI-OR". E a gente "leste inferior". Não foi  esse o combinado com os amigos da sua turma filho?

- Foi pai, "leste inferior", e agora?

- E agora fudeu.

- Quê?

- O Gael não vai poder entrar com a gente...

- Ah não, pai... Vamo deixar ele aqui então!

- Você tá doido cara? Ele de menor.

Foram pra o cantinho perto da última roleta a fim de não atrapalhar o fluxo. Juan pegou o celular e ligou para a mãe do Gael. A mulher, muito constrangida, pediu um caminhão de desculpas e disse que estava indo ao estádio buscar o menino.  No mais, só restava ao Juan e ao filho esperar e torcer para ao menos conseguirem assistir o segundo tempo da partida.

Os três ficaram ali humilhados e tristonhos. Encolhidos ao lado das roletas, vendo os últimos torcedores adentrarem ao estádio.

Foi quando apareceu um senhorzinho de idade, todo pretinho, pernas arcadas, camisa do Vasco, sobre a cabeça um boné que não podia-se distinguir se era azul ou verde. O pequeno homem cruzou a aglomeração e aproximou-se de forma cordial:

- Boa noite, vocês estão sem ingresso?

O Juan explicou toda a situação.

- Olha - disse o pequeno senhor - troca comigo. Eu estou sozinho e tenho leste inferior, você me dá o do menino, eu vou em cima, e vocês entram juntos.

Solução perfeita. Os meninos saltaram de alegria enquanto o Juan mandava um áudio triunfante para a mãe do Gael - não precisa mais vir, já resolvi aqui!

Quando passaram pela roleta o filho do Juan não pode conter as lágrimas:

- Agora eu acredito.

- Acredita em quê, filho?

- Em Deus. Eu não acreditava mas agora eu acredito.

- Ih alá, qual foi?

- Eu tava rezando...

- Nunca foi na igreja. Tava rezando como?

- Do meu jeito. Papo reto - enxugou as lágrimas com o dorso da mão  - papo reto, esse cara era um anjo. Um anjo negro. Um anjo enviado por Deus.

- Como que você sabe que ele era um anjo?

- Porque ele era vascaíno, se fosse botafoguense era Deus em pessoa. 




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domingo, 19 de fevereiro de 2023

Ricifi


Cheguei no Recife no primeiro dia de fevereiro, mais de duas semanas antes do início do carnaval. Na saída do saguão do aeroporto uma placa enorme anunciava em letras coloridas e garrafais: - Bem-vindo ao Recife capital MUNDIAL da folia e do frevo. 

- Hahã...- esses caras de  Recife tem mania de grandeza, um tipo de paulista do nordeste. 

Entrei num carro de aplicativo e estava tocando a música do Léo Santana. Daí eu puxei assunto com o motorista (tenho esse mal hábito):

- Só toca esse cara, no Brasil inteiro. 

- Rapaz... Esse tá estourado. Também depois daquele clipe, a mulherada endoidou. Você viu? 

- Quem não viu?

Nesse instante, para minha surpresa, a rádio de Recife começa a tocar "História para Ninar Gente Grande" samba-enrredo da Mangueira de 2019. Fiquei surpreso não pelo fato de tocar samba-enrredo, mas por escolherem um tão recente.

- Cara, que saudades do carnaval de 2019! A Mangueira quebrou tudo nesse ano.

- Rapaz, eu vi pela TV - respondeu o motorista - visse lá ao vivo foi?

- Que nada, esse ano eu estava em Minas. Carnaval lá é animado também.

- Siiiim!

Daí começa a tocar Bell Marques e eu digo:

- Esse é um clássico! 

- Bell é o cara. Não tem carnaval sem Bell nãããão.

- Pois é. - Concordei.

- Mas o melhor...

(Lá vem)

- O ME-LHOR é Alceu. Não tem comparação não rapaz...

(Começou)

Daí seguiu um monólogo sobre o carnaval em Pernambuco que durou o resto da viagem. Sim, eu sei que é incrível, mas no Rio também é, na Bahia nem se fala. 

Cheguei no hotel. A única coisa que chamou mais minha atenção que a decoração de carnaval foi o fato de TODOS os funcionários estarem fantasiados. Como se fosse partir um bloco dali a cinco minutos. Inclusive tinha um recepcionista com camisa da CBF e tornozeleira. Achei ousado.

Deixei as malas no quarto e desci pra dar uma corridinha pela orla. Notei que os postes estavam enfeitados. Terminei o exercício e fui tomar um chope para reidratar. O porta-copos do quiosque era com tema de carnaval!

Tudo bem... A essa altura do campeonato Salvador já está toda decorada e no Rio tem bloco todo fim de semana de quinta a domingo. Não me impressiono fácil.

Mas Recife não desistiu de mim. O golpe derradeiro foi no dia seguinte. Oito e quinze da manhã, eu entro numa padaria, peço um café e noto que alguém decorou o pires da xícara. 

Veja bem.

Alguém...

Pegou uma cartolina com temas carnavalescos, recortou de um jeito que encaixava perfeitamente na xícara e colocou sobre o danado do pires.

Se eu estivesse uma hora dessas no Centro do Rio estava tomando café num copo americano naquela cafeteria do gaúcho que fica na esquina da São José com a Rodrigo Silva.

Definitivamente, não dá para competir com isso. 


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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...