domingo, 19 de março de 2023

Reencontro


A pandemia nos afastou de tal forma que vira e mexe eu ainda encontro um ou outro amigo que há muito não vejo. Semana passada foi o professor Antônio, mais conhecido como professor Tonhão, da Federal de Minas Gerais.
 
Estava eu a perambular por São João del Rei e encontrei o professor Tonhão num bequinho que ladeia a igreja de Nossa Senhora do Pilar e dá acesso à Rua Getúlio Vargas. Bem no ponto onde um sobrado amarelinho em art déco destoa dos seus vizinhos coloniais.

Vinha eu a descer as escadas tentando acompanhar os passos acelerados do meu filho e o professor Tonhão, no sentido oposto, a subir mineiramente devagar. Ele carregava uma sacolinha branca numa mão e um guarda-chuva fechado na outra. Camisa de linho, calça de alfaiataria , o professor Tonhão é um romântico incorrigível.

- Professor Tinhão!

- Lapiiiiiinha! É você? 

- E tem outro? Olha aí o meu menino.

- Nuuuu como cresceu!

O professor havia mudado muito pouco, exceto por dois detalhes. O cabelo, outrora grisalho, agora era absolutamente branco, uma bruma. E, o que mais me causou estranheza, ele estava usando  um aparelho ortodôntico. 

Entendam, não é comum uma pessoa na faixa etária do professor Tonhão usar aparelho ortodôntico. Ok... Eu sei que não existe isso de idade, cada um faz o que quer, ou o que pode, pela sua saúde quando bem entender. Eu só estou dizendo que é raro. 

Además, era nítido o incômodo que aquele aparelho causava na boca do professor. Era uma inaptidão tão escancarada que eu fiquei matutando um jeito de perguntar, de forma educada e discreta, o porquê dele ter colocado aquilo. 

Mas, foi só no dia seguinte que tomei conhecimento dos fatos . Estávamos tomando uma pinga numa roda de samba que tem todo domingo em frente à igreja do Carmo, quando o professor Tonhão foi dar uma mordida num torresmo e soltou um sonoro:

- Fedazunha! (Quem é letrado em mineirês entende a gravidade da expressão - é bem grave)

- O que foi professor?

- Eu não aguento mais essa trenheira aqui na minha boca!

Fez-se silêncio. Fiquei olhando pra ele por cima dos óculos. Ele passou cerimonialmente o guardanapo sobre os lábios, suspirou e me disse.

- Você quer que eu te conte como eu entrei nessa roubada, não né?

- Mas desde ontem eu não penso em outra coisa professor.

- Pois bem - tomou um gole de pinga - a minha caçula, Rosângela, se formou em odontologia...

- Que maravilha!

- É. Daí ela inventou de fazer pós-graduação em ortodontia. Só que a pessoa pra ser formar ortodontista  tem que fazer aula prática. 

- Faz sentido.

- Fazer sentido faz. O difícil é achar um mineiro que queria colocar aparelho dentário com uma pessoa que ainda está se formando.

- É, não vai achar. Já entendi tudo.

- Ela precisava de uma boca - disse com forte pesar - ofereci a minha.

- Entendo professor, afinal, o que a gente não faz pelos filhos?- Percebi que o clima estava ficando pesado, fiz sinal para garçom trazer mais uma pinga.

- E o pior é que ela teve que me arrancar quatro dentes. Dois em cima e dois embaixo.

- Ela mesmo arrancou?

- Ela mesmo...

Silêncio.

- Ah professor, também não precisa ficar com essa cara aí. Toma outra, toma...

- É porque não é sua boca que dói. Faz mais de mês que eu não como um torresmo. Você sabe o que é isso?

- Deus me livre e guarde!

- Amém - virou o copo - E o pior, PIÓR, eu nem te contei ainda. 

- Ah... tem pior, pior...

- Tem. A danada foi chamada pra trabalhar numa prefeitura aí no interior... Começou no fim do ano passado. Daí agora em março veio com uma conversaiada de que não tava dando conta... Muito serviço...

Pausa dramática.

Eu não aguentei, tive que quebrar o silêncio:

- Trancou?

- Sim, trancou. Faltando menos de um ano pra acabar, ela largou o curso. E eu  fiquei aqui, com esses ferro na boca.



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Um comentário:

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