sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Sobre quando eu me apaixonei pelo mar



Quando eu era menino, vivia longe do mar, ao sopé da Serra da Estrela. No meu coração habitavam as colinas, os rios e as goiabeiras. O mar era um parente distante do qual eu ouvia falar de quando em vez.

O conheci numa viagem que fiz a Piratininga. Estava na praia catando tatuí com meus primos. O mar veio furtivamente, empurrou-me e levou um dos meus chinelos. Fiquei com um único e inútil pé de havaianas. Fui motivo de chacota para as outras crianças durante o restante do feriado. Este ataque gratuito me deixou com uma raiva tremenda do mar e de sua mania de roubar os meninos menores. Guardei mágoa do oceano anos a fio – anos de moleque que são diferentes de anos de adultos.

Até que fui a Saquarema acompanhar meu pai numa apresentação do coral onde ele era tenor – a minha família vem de uma longa linhagem de artistas. Paramos em Vilatur numa rua cercada de cajueiros onde os outros meninos, filhos dos amigos de meu pai, e eu fizemos a festa. Trepamos em todas as árvores quase que ao mesmo tempo, devorando tantos cajus quanto coubessem na barriga e nos olhos. Éramos um enxame de lagartas vorazes. Foi preciso uma operação de guerra para livrar o pomar de nossa fúria.

Ao fim da tarde fomos até a igreja onde seria a apresentação. Uma edificação singela de paredes brancas, erguida a beira mar com porta e janelas azuis. O maestro do coral levou todos para a praia à esquerda do templo e decidiu fazer um último ensaio ali mesmo. Eu, muito contrariado, fiquei sentado na areia de frente para o meu desafeto, o mar, agressor de meninos, ladrão de chinelos.

O Coral começou a cantar uma canção que dizia que além do azul do mar, além da linha onde o firmamento joga-se sobre a imensidão azul, há um lugar onde habita a paz. Não a paz líquida da modernidade, mas a paz definitiva, essencial. A paz não era nada de importante para minha meninice, que a essas alturas só pensava se no dia seguinte seria possível voltarmos ao pomar dos cajueiros. Olhei inquieto para trás e meu pai, com sua voz de tenor, disse-me para prestar atenção no mar. Insistia, como um professor, que eu me fixasse naquela infinitude, onde segundo ele habitava a paz.

Olhei novamente e enfim ouvi o mar, que se juntou ao coro, a marcar o compasso – paz, perfeita paz, habita além do escuro mar - cantavam-me meu pai e o mar. Um tenor e um barítono, num dueto de consonância improvável, repleta de boniteza de ouvir, de ver e de sentir. O canto do mar, embora forte, era tão suave que se desfazia em espuma branca sobre a areia. E ele dizia:

- Chuuuá...

Meu pai e seu coro respondiam:

- Paz...

- Chuuuá...

- Paaaz...

- Chuuuuuuuuuá...

- Per-fei-ta paz...

- Chuuuá...

- Além...

- Chuuuá...

- Do es-cu-ro...

- Chuuuá...

- MAR!!!

Fui tomado por um imenso abraço azul, salgado e paterno. Olhei para trás, ouvi meu pai sorrindo em música. Voltei adiante, ouvi o mar sorrindo em ondas, num não acabar de águas. Perdoei o mar, e do perdão me veio o amor. E o amor me trouxe a paz, a paz essencial sobre a qual meu pai cantava.

Desde então, diante do oceano, ouço o velho coro de meu pai, vejo o mesmo infinito sorriso azul da natureza e sinto a mesma paz de menino brejeiro.


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