terça-feira, 3 de outubro de 2017

Comuna carioca



Na contramão da difusão do individualismo e de toda frescura decorrente da invenção do mertiolate que não arde, resiste nos subúrbios cariocas um costume que tem muito mais a dizer sobre a natureza do homem que o clássico do Buarque de Holanda, o pai.

Se alguém quiser conferir a vera o que estou falando, o melhor lugar a se visitar é a Rua Paratinga em Vista Alegre, onde reza a lenda existe um cruzamento com quatro botequins, um em cada vértice. Nesses estabelecimentos, enquanto a conversa se desenrola, as garrafas acumulam-se na mesa. Daí, quando alguém precisa ou simplesmente cisma em ir embora, levanta, pega quantas garrafas puder pagar e acerta no balcão. Outrora o cara simplesmente se despede e fala: na próxima a forra é minha. Tudo numa boa, como se diz por aqui: ninguém esquenta a cabeça. Nem o dono do bar, que guarda o costume de deixar a saideira por conta – essa é da casa.

Isso porque por aqui a mesa do bar não é um lugar de consumo, ou de gastronomia - eca! Porém um lugar de encontro. Ao longo do dia a mesa vai enchendo-se e esvaziando-se. Não de garrafas a pagar, mas de pessoas que compartilham histórias e vidas. Às vezes, o cara passa no bar, toma uma, sai, vai ao mercado, almoça com a família, tira um cochilo e volta para mesma mesa continuando a resenha.  Não necessariamente com os mesmos caras, pouco importa.

Outro dia me encontrei com um cidadão que até hoje está inconformado com o desfecho da copa de 82, segundo ele a culpa foi do Oscar. Semana passada um advogado reivindicava a invenção do aplicativo que permite dividir a conta do Uber – a ideia foi minha! Dois dias antes um maluco jurava de pé junto ter um Portinari inédito no corredor de sua casa em Teresópolis. O quadro teria sido doado pelo próprio a uma tia, supostamente sua amante.  Perguntei se por acaso a velha tinha feito o primeiro nudes conhecido na história do Brasil, o cara se ofendeu... vai vendo.

Conheci uma menina dona de dezessete cópias da mesma chave, a da porta de casa, ela sempre “acha” que perdeu e acaba persuadindo o namorado a ir ao chaveiro. Uma outra garota é de Minas, mas odeia queijo e torce pelo Flamengo. Tem também um cara de cento e quarenta e dois quilos decidido a me convencer que coca zero emagrece. Um botafoguense que não possui uma única peça de vestuário vermelha para não correr o risco de, por descuido, conjugar com qualquer outra peça preta – tesconjuro, pé de pato, mangalô três vezes! E por fim, ouvi falar de um paulista expatriado que decorou o nome de todas as ruas do Rio.

- Aí Toti, onde fica a Rui Barbosa?

- Se for rua é na Pavuna, a avenida fica no Flamengo. Qual o CEP?

Dizem que quando o Google demora a responder é porque os caras do Vale do Silício estão ligando pro Toti.

Assim, pesar do embrutecimento decorrente das desigualdades obscenas da cidade a carioquisse resiste nas ruas. Sejam elas sinuosas como na Ilha do Governador, ou paralelas como em Bangu. Morar no Rio de Janeiro tem sido barra pesada, mas conviver é galho fraco, fraquíssimo. O carioca vive da amizade de um dono de bar resmungão, do informalismo da mesa na calçada e sobretudo da parceria nos bairros.

- Partiu trocar uma ideia?




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E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...