Na contramão da
difusão do individualismo e de toda frescura decorrente da invenção do
mertiolate que não arde, resiste nos subúrbios cariocas um costume que tem
muito mais a dizer sobre a natureza do homem que o clássico do Buarque de Holanda,
o pai.
Se alguém
quiser conferir a vera o que estou falando, o melhor lugar a se visitar é a Rua
Paratinga em Vista Alegre, onde reza a lenda existe um cruzamento com quatro botequins,
um em cada vértice. Nesses estabelecimentos, enquanto a conversa se desenrola, as
garrafas acumulam-se na mesa. Daí, quando alguém precisa ou simplesmente cisma
em ir embora, levanta, pega quantas garrafas puder pagar e acerta no balcão. Outrora
o cara simplesmente se despede e fala: na próxima a forra é minha. Tudo numa
boa, como se diz por aqui: ninguém esquenta a cabeça. Nem o dono do bar, que
guarda o costume de deixar a saideira por conta – essa é da casa.
Isso porque por
aqui a mesa do bar não é um lugar de consumo, ou de gastronomia - eca! Porém um
lugar de encontro. Ao longo do dia a mesa vai enchendo-se e esvaziando-se. Não
de garrafas a pagar, mas de pessoas que compartilham histórias e vidas. Às vezes,
o cara passa no bar, toma uma, sai, vai ao mercado, almoça com a família, tira
um cochilo e volta para mesma mesa continuando a resenha. Não necessariamente com os mesmos caras, pouco
importa.
Outro dia me
encontrei com um cidadão que até hoje está inconformado com o desfecho da copa
de 82, segundo ele a culpa foi do Oscar. Semana passada um advogado reivindicava
a invenção do aplicativo que permite dividir a conta do Uber – a ideia foi
minha! Dois dias antes um maluco jurava de pé junto ter um Portinari inédito no
corredor de sua casa em Teresópolis. O quadro teria sido doado pelo próprio a
uma tia, supostamente sua amante. Perguntei
se por acaso a velha tinha feito o primeiro nudes conhecido na história do
Brasil, o cara se ofendeu... vai vendo.
Conheci uma
menina dona de dezessete cópias da mesma chave, a da porta de casa, ela sempre
“acha” que perdeu e acaba persuadindo o namorado a ir ao chaveiro. Uma outra
garota é de Minas, mas odeia queijo e torce pelo Flamengo. Tem também um cara
de cento e quarenta e dois quilos decidido a me convencer que coca zero
emagrece. Um botafoguense que não possui uma única peça de vestuário vermelha para
não correr o risco de, por descuido, conjugar com qualquer outra peça preta –
tesconjuro, pé de pato, mangalô três vezes! E por fim, ouvi falar de um
paulista expatriado que decorou o nome de todas as ruas do Rio.
- Aí Toti,
onde fica a Rui Barbosa?
- Se for rua
é na Pavuna, a avenida fica no Flamengo. Qual o CEP?
Dizem que
quando o Google demora a responder é porque os caras do Vale do Silício estão
ligando pro Toti.
Assim, pesar
do embrutecimento decorrente das desigualdades obscenas da cidade a carioquisse
resiste nas ruas. Sejam elas sinuosas como na Ilha do Governador, ou paralelas
como em Bangu. Morar no Rio de Janeiro tem sido barra pesada, mas conviver é
galho fraco, fraquíssimo. O carioca vive da amizade de um dono de bar
resmungão, do informalismo da mesa na calçada e sobretudo da parceria nos
bairros.
- Partiu
trocar uma ideia?
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.