domingo, 28 de fevereiro de 2021

Um evento realmente histórico e importante


Há muito tempo atrás ocorreu um evento realmente histórico e importante em Minas Gerais. Este cronista, quando soube de tal história, ficou tremendamente surpreso por evento tão histórico e tão importante ter ficado a largo da imprensa e historiografia.

 

Eu soube de tal evento num botequim copo sujo de ilibada reputação e clientela lá pelas bandas de São João del Rei. Lá, contaram-me a história desta Dona que morava não se sabe ao certo onde, mas com certeza era por ali pelos Campos das Vertentes, dado que dela haviam guardado uma fotografia. Nesta foto ela posava de frente a uma casinha cercada por muro de adobe, ao fundo a serra de São José e uma inscrição feita sobre um punhado de nuvens - refúgio que herdei de papai - escrita com uma caligrafia pequena e bem redondinha:

 

Conta-se que essa Dona era uma cozinheira de mão cheia e trabalhava na casa de uma família muito elegante. Toda segunda-feira essa Dona ralava um queijo inteiro para fazer pão de queijo, pois pão de queijo que mereça o nome dever ser feito com um queijo inteiro. Segue a receita para você parar de comer pão de queijo ruim:

 

Pão de queijo

1 copo cheio de leite

1 copo cheio de água

1 copo faltando dois dedos para ficar cheio de óleo

100 g de manteiga

1 colher de café de sal

Misture tudo e ferva

Depois que ferver, derrame sobre 800 g de polvilho.

Misture e vá colocando mais polvilho até dar ponto de massa de pão

Enquanto espera amornar rale UM QUEIJO INTEIRO

Misture o queijo ralado na massa

Acrescente 4 ovos

Misture bem e faça as bolinhas

 

Voltando ao caso realmente histórico e importante.

Essa Dona, que era cozinheira de mão cheia e trabalhava na casa de uma família muito elegante, toda segunda-feira pela manhã ralava um queijo inteiro para fazer pão de queijo. E antes das sete horas a casa era tomada pelo aroma de pão de queijo caseiro, e os que ali moravam tomavam o café da manhã com pão de queijo, broa de milho, doce de leite de corte, torradinha de polvilho e um café bem pretinho e doce.

 

Daí a Dona se arrumava e saía para trabalhar. E por onde ela passava arrancava juras de amor. Pois eu ainda não contei, que me contaram, que a Dona era o mal caminho inteiro indo e voltando em pista de mão dupla sem pedágio. Rosto formoso, olhar noturno, sorriso largo. Dizem que ela tinha uma cinturinha de dar inveja as marombeiras de hoje em dia. Um cronista melhor que eu diria que “aquela terra jamais vira tampouco voltaria a ver um andar tão dança de uma Dona tão bela a se equilibrar pelas calçadas de pedra”.

 

- Casa comigo morena!

 

- Vai dar milho a bode soZé.

 

Ela não era de dar trela a um soZé da vida. SoZé é como os mineiros chamam um cidadão qualquer, desses que ficam na rua a vigiar a vida alheia. A Dona, que era uma cozinheira de mão cheia, trabalhava na casa de uma família muito elegante, ralava um queijo inteiro toda segunda-feira para fazer pão de queijo e arrancava juras de amor por onde passava, só gostava de moço bonito. Mas nem para esses ela dava muito papo com receio de ficar mal falada.

 

Como todo bom mineiro a Dona adorava pagode e  cerveja. Nas noites de sexta-feira, antes de ir para o pagode, ela desfiava um pernil e passava na frigideira com cebolas e manteiga até caramelizar bastante. Daí enchia uma cumbuca de canjiquinha e colocava o pernil desfiado todo acebolado por cima – nos Campos das Vertentes faz um frio desgraçado nas noites de sexta-feira – a Dona tomava a sua sopa, bebia uma dose de pinga para aquecer o pescoço, e ia para o pagode que era ali pertinho da sua casa.

 

Eis que em uma sexta-feira dessas, a Dona que era uma cozinheira de mão cheia, trabalhava na casa de uma família muito elegante, ralava um queijo inteiro toda segunda-feira para fazer pão de queijo, arrancava juras de amor por onde passava, só gostava de moço bonito e adorava pagode e cerveja, esqueceu de comprar canjiquinha. E só se deu conta depois que já tinha desfiado o pernil e passado na frigideira com bastante cebola e manteiga até ficar tudo bem caramelizado.

 

A Dona olhou para um lado, olhou para o outro, abriu a geladeira e achou as bolinhas de pão de queijo congeladas – eu não falei que ela fazia pão de queijo segunda-feira, comia três bolinhas e congelava o restante para ir comendo aos poucos, mas o leitor já devia ter deduzido isso. Pois se não fosse assim a Dona não teria aquela cinturinha de fazer inveja as marombeiras de hoje em dia, sobre a qual eu ouvi falar e te contei há pouco.

 

Voltando: a Dona achou as bolinhas de pão de queijo, pôs para assar, aquele cheiro maravilhoso encheu a casa. Ela pegou um pão de queijo, abriu com uma faca de serra, subiu aquela fumacinha cheia de aroma. A Dona pegou uma colher generosa do pernil desfiado cheio de cebola toda caramelizada na manteiga, com bastante especiarias e gosto de refeição caseira. Um pernil desfiado que só poderia ser feito por uma Dona que é mineira e cozinheira de mão cheia. Então, ela recheou o pão de queijo e comeu.

 

Estava inventado o pão de queijo recheado com pernil.

 

E caso você, meu caro leitor, assim como toda a imprensa e historiografia, faça pouco caso de minha crônica e ache que isso não é um evento realmente histórico e importante eu lhe direi que só pensas assim porque, além de invejoso, você nunca comeu pão de queijo recheado com pernil.

 


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domingo, 21 de fevereiro de 2021

Ciranda

 

O menino deu uma das mãos ao pai e com a outra segurou a mão da prima. Então, cantaram a canção e giraram a ciranda. Num dado momento o menino percebeu que conhecia a música. E mais que isso, ele sabia os momentos de ir, e voltar e se agachar.

 

A percepção desse conhecimento lhe trouxe tanta felicidade que ele foi chamar a mãe, e tio, e a tia. Que demoraram muito a vir pois estavam extremamente assoberbados com seus afazeres de adulto. Enquanto esperava o menino estava aflito, e insistia num trabalho de Sísifo a ir e a vir, da casa para o quintal e voltando.

 

Puxava a saia da mãe – a mamãe tá numa ligação importante filho, depois a gente brinca. E importunava o tio – titio tá trabalhando agora eu não posso. Insistia com a tia – já falei que cozinha não é lugar de criança, espera no quintal que já vou. A prima começou até outra brincadeira. O pai observava curioso qual seria o desfecho daquela empreitada épica que o moleque abraçou como se fosse um cruzado, convicto do bem que fazia.

 

O sol já havia se retirado quando enfim o menino insistente consegui reunir todos da casa numa grande ciranda. E cantaram, e rodaram e dançaram sob o luar e a amoreira. E foram intensamente felizes. E em seus pensamentos questionaram o porquê de terem demorado tanto. Não encontraram respostas plausíveis e guardaram as dúvidas em seus corações fechados de gente adulta.

 

Porém, de todos que foram felizes naquela noite ninguém sequer sentiu uma felicidade comparável à do menino. Ele foi tomado por uma alegria plena, que quis chamar os vizinhos, e a rua, e o bairro. Imaginou a humanidade como uma grande cantiga de roda ainda a se organizar. E percebeu-se gente pela primeira vez na vida. E também pela primeira vez sentiu orgulho quando parou no centro da roda e viu o olhar de cada adulto e cada criança a cantar e dançar – sua primeira criação: uma ciranda. E acenou para o pai, que respondeu aplaudindo.

 

O menino dançou, cantou e girou na ciranda. E agachou na parte da música que diz – miau! E riu muito, até às pernas sucumbirem. E foi ao chão. E naquele início de noite, sob a amoreira e o luar o menino entendeu que a vida é boa, desde que haja ânimo para se dançar ciranda.



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Imagem:https://pin.it/7M70Op

sábado, 13 de fevereiro de 2021

No Rio sempre há o que se ouvir.


O Rio nunca está quieto. Há sempre o que se ouvir. Seja uma moto no meio da madrugada, o martelo de uma construção, a música alta na casa do vizinho.

As vezes a gente ouve tiro. Sim é verdade. Não há como negar que a cidade continua em guerra. Conflito que só os muito tolos ainda acreditam ser por conta de maconha e de pó.

Contudo a gente ouve de vez em quando um sabiá, um sagui ou uma maritaca. Daí você olha ao redor e vê ao longe uma montanha e é lembrado que essas terras dantes fora uma selva. E de uma forma um tanto quanto torpe, ela ainda é. 

Ouve-se também catraca de ônibus. Batida de garrafa em mesa de aço. Sirene de tudo que é tipo. Apito de guarda. Menino brincando, menino chorando. Carro do ovo. Britadeira. Burburinho de feira. Comemoração de gol de pelada. Comemoração de gol de futebol. Comemoração de todo tipo. Gente brigando, gente gozando (às vezes fica-se na dúvida). Rojão de balão. Estouro de doze por um. Compressor de oficina. Bomba d'água. Bomba de efeito moral. Bomba bomba mesmo. Falatório de festa. Caminhão de lixo. Furadeira. Cachorro de rua brigando, gato de rua transando (o que ensina muito sobre cães e gatos). Avião decolando. Helicóptero - é da Globo ou da polícia? - Campainha, buzina, telefone. Rádio AM, rádio gospel, Rádio Tupi, FM o Dia, Band News - eu prefiro a Tupi, todo domingo, Bola em Jogo, com Gilson Ricardo e Gerson Canhotinha de Ouro.

De tudo que se ouve,  o barulho mais frequente por aqui é: batuque. Batuque de samba e de funk. Tambor de sertanejo e zabumba forró, pois cá também é terra de migrantes. Atabaque de candomblé, cada vez mais raro. Pandeiro de igreja, esse cada vez mais frequente. 

Mas nesse carnaval de 2021 a cidade está estranhamente silenciosa. Acalme-se caro leitor, eu não vou contradizer o título da crônica. O silêncio do Rio é ruidoso. 

Ouço aqui da minha janela suburbana um tambor tristonho um tanto bêbado e solitário. Pelo descompasso ele toca envergonhado entre caixas de Brahma e telhas de zinco num terreiro escondido onde uma única moça  de vestido vermelho dança expatriada.  Uma festa de carnaval que dirão clandestina, julguem vocês que esse carma não é meu. 

Cá no meu canto eu queria que esse tambor triste, do domingo de carnaval mais triste, tocassae para algum santo bom e poderoso. E que ele ouvisse, e viesse nos livrar desta peste, salvando ao menos o carnaval do ano que vem. Porque isso aqui parceiro, está de dar pena.  



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

 

Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...