sábado, 9 de março de 2024

Meu primo Célio


E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da década de noventa ele já usava o cabelo enroladinho, com as molinhas para cima e a lateral aparada na régua. Hoje em dia não tem um neguinho que jogue bola na Europa e não use este corte, vide o Vini Jr.

Metade das coisas úteis que aprendi entre a infância e a adolescência, e que continuam úteis até hoje, eu aprendi com o Celinho. Foi com ele que eu aprendi a andar de bicicleta (já poderia parar por aqui né). Mas com ele eu também aprendi a fazer minha própria pipa reciclando os cadáveres das pipas mortas. Aprendi a gostar do meu cabelo crespo. Aprendi a subir montanha e a mergulhar na cachoeira.

Ele era uma espécie de guru da minha infância, era o menino mais velho que eu queria ser. Quando o meu avô morreu, não o avô que também era avô dele, mas o outro avô, quando ele morreu o Celinho foi passar uma semana dormindo lá em casa para me tirar a tristeza. Dessa vez ele me ensinou a fazer uma asa delta com a carcaça da pipa reciclada. A asa delta era tão boa que até voava, desde que o vento estivesse bem forte, dava até para desbicar.

A coisa mais importante que eu aprendi com o Celinho foi: gostar de Hip Hop. Isso moldou a minha personalidade de hoje. Sabe como é, lá em casa só rolava música religiosa. Então eu fugia para a casa do Celinho para ouvir as músicas do mundo. Ele colocava os vinis para tocar na pick-up que ele comprou da sucata e reformou sozinho. O som saia cristalino e bem equalizado da caixa que ele mesmo montou. Um luxo! Se vocês conhecessem o Celinho não dariam a mínima para esse Rodrigo Hilbert.

Com ele aprendi a diferença entre o Charme e o Funk. E entre o Funk e o Miami Bass (essa eu aposto que você, caro leitor, nunca ouviu falar). Ele me apresentou o estilo mais importante da música (depois do blues e do samba): o RAP.

- RAP significa “ritmo e poesia”. É só isso. Mas é tudo. – Celinho me explicava.

Na casa dele eu ouvi pela primeira vez o Cidinho e Doca. E todas as outras duplas de Mcs que vieram a reboque. Mas a coisa ficou séria mesmo quando ele me apresentou o Notorius B I G. Ficou séria porque na sequência veio 2Pac e Public Enemy. Eu devorava as músicas enquanto ele me explicava as histórias por traz de cada letra. E dizia de onde o DJ tinha tirado cada sample . Até hoje eu não sei de onde ele tirava aquelas informações, era uma época que a gente nem concebia a ideia do que seria o Google.

Eu já era homem feito quando no verão, num dia cinzento, abafado e sem graça até então, adentrei a casa do Celinho e me deparei com aquele álbum duplo:

- Os Racionais lançaram um CD novo Celinho?

- Já tinha passado da hora né?

- Quem é esse negão na capa?

- É o Blue.

- E esse carro?

- É um Impala.

Ele botou o som pra tocar. Áudio impecável como sempre. Eu fiquei ali esparramado na varanda, olhando para o teto, prestando atenção na letra. Quando chegou na quinta faixa meu mundo desabou: Negro Drama.

- Tá chorando mané?

- Porram Célinho, você me conhece... Tem que me avisar antes de colocar essas coisas pra gente ouvir.

Na semana passada eu estava num engarrafamento na Linha Amarela, altura de Bonsucesso. Ali sempre está engarrafado, pode ser sexta a tarde, domingo pela manhã ou terça de madrugada. Eu não consigo entender. Pois lá estava eu ouvindo RAP do modo randômico do aplicativo. E o danado do algoritmo me põe para tocar Negro Drama. Antes que eu pudesse me defender ouvi uma voz vinda do banco de traz do carro:

- Papai... Você tá chorando de novo...

Até o meu filho já sabe. Nas duas últimas décadas eu ouvi essa mesma música uma infinidade de vezes. Chorei em todas elas. No mesmo trecho. É um carma que eu tenho. Um dia hei de encontrar com o Brown para cobrar esta fatura.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0

Imagem: Racionais MC's, Nada Como Um Dia Após O Outro, Capa do Álbum, 2002

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Montanha russa




As amizades me levam por caminhos definitivamente inglórios. Outro dia desses eu fui parar num parque de diversões junto com o Celsinho, o Alemão e o Encantado. A gente chama o Encantado de Encantado porque ele se parece com o Príncipe Encantado daquele filme do Shireck. Figuraça. 

Agora vejam vocês,  eu e três outros marmanjos de meia idade concordamos que seria uma ótima ideia andar de montanha russa num calor de quarenta graus. Sabe aquele dia em que até o vento é quente? Aquele vento escaldante que perde a sua função apaziguadora e passa a atuar como aliado da quentura a nos cozinhar lentamente. Pois então estava assim o clima.

A primeira volta de montanha russa foi divertidíssima, tão divertida quanto a sensação de tontura ao término da brincadeira. Se o amigo leitor é da minha estirpe sabe bem como é legal essa sensação de tontura. Eu mesmo quando era menino brincava de rodar até cair no chão. Dizem que isso é porta de entrada para outras drogas no futuro. Deve ser. Cá estou eu a andar de montanha russa no verão.

O problema é que a tontura não passou dentro do tempo regulamentar de uma pessoa normal que anda numa montanha russa normal. O amigo Celsinho foi o primeiro a notar.

- Tá tudo bem aí Lapa?

- Rapaz... Bateu aqui uma onda... O mundo meio que tá girando mais rápido que o de costume.

Celsinho deu uma gargalhada. Acontece que o Alemão estava empenhado em ir na montanha russa o máximo de vezes possível e, pouco tempo depois, arrastou a gente para a segunda andada de montanha russa. Eu deveria ter negado. Mas sabe como é. Preciso manter minha fama de mau. Lá fui novamente, claramente sem ter condições para tal.

Aí bateu uma bad trip sinistra. Perdi totalmente o sinal do GPS. Parecia que o mundo estava descendo uma corredeira de rafting. E se passou dez minutos, quinze, meia hora, metade da tarde. Nada da tontura passar. Os amigos andaram de montanha russa o restante do passeio e eu fiquei bebendo água gelada sentadinho na sarjeta. Foi humilhante? Nem tanto, eu já cometi vexames muito menos publicáveis que este. Muitíssimo.

Justiça seja feita o único amigo que se se solidarizou comigo foi o Encantado. Mesmo porque, em se tratando de experiência em cometer vexame, ele está na mesma categoria que eu. Nesse mesmo dia ele aprontou uma. O nome disso é empatia:

- Lapinha será que você não tem labirintite?

Pois bem senhores, lá fui eu na semana seguinte faze exame de labirintite. Vocês já fizeram exame de labirintite? É o único da medicina com cem por cento de eficácia. Porque se você não tem labirintite acaba contraindo no momento do exame. Uma maravilha.  O procedimento consiste em enfiar uma mangueira no seu ouvido e soprar um ar quente até te provocar uma labirintite. Daí eles te perguntam: – É isso que o senhor sente quando fica tonto? –  Você responde que sim e ganha um certificado de labirintite. Sucesso total.

O inferno é que, terminado o exame, o mundo não para de rodar por um longo tempo. Olha que eu tenho experiência nisso de mundo girando. Mas é num rpm que não tem porre que alcance. Vai por mim.

No dia seguinte levei o exame para a doutora que o havia me prescrito. Ela receitou um remedinho, limitou meu café a três míseras doses diárias – não antes de me ensinar que uma dose de café são, pasmem, 60 ml – pediu para cortar tudo que tem açúcar em excesso e toda sorte de coisa que pode acelerar o sujeito. Tá ficando difícil ser eu. 

- Doutora e o álcool.

- Como assim?

Me arrepiei de medo

- A cervejinha doutora?

- Ah... Sem restrições adicionais por conta disto. Bebida alcoólica você pode continuar tomando, mas com a moderação de sempre.

Ainda bem que ela não me conhece.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Ano novo


Eu aprendi muito com um antigo compositor baiano, mas essa foi um cearense que me ensinou: o novo sempre vem.

Pois o ano novo está aí,  nas últimas semanas de gestação, a previsão é que nasça algum dia depois do carnaval. Cuidar de menino não é fácil. Então eis aqui algumas dicas que cataloguei entre os amigos que fiz nas cercanias na Estrada Real e pelos muitos sertões por onde tenho andado. 

Como todos os pais vocês vão achar que ele é muito diferente dos demais. Não é. 2024 vai ser muito parecido com 2023 que foi parecido com 22. Um pé de limão cravo, vai sempre dar limão cravo, todos eles igualmente limões e igualmente cravos. Seu filho vai ser uma criança como todas as outras crianças.

Mas, aqui vai um conselho de quem já partiu e espremeu muito limão cravo: nem um limão cravo é igual ao outro. Cada limão é único desde a flor até a semente. E sendo semente vai gerar um broto único. E do broto vai crescer um limoeiro absolutamente singular em todo o universo. No dia que meu filho nasceu, poderiam escondê-lo entre vinte mil outros recém nascidos, eu o acharia fácil. Nesse sentido, 2024 vai ser incrivelmente imprevisível. E é isso que faz a vida ser o que é. 

Você não controla nem o seu intestino, então não tente controlar o novo. Com o tempo você descobre que a paternidade é sobre não atrapalhar. E muito ajuda quem não atrapalha. A despeito disso, é preciso agir. É preciso decidir. E fiquem tranquilos. Vocês vão errar. Mas nossos pais também erraram. Nossos avós também erraram. Assim como todos os nossos ancestrais. E cá estamos nós.As crianças são muito mais resistentes do que parecem.

Não temam o ano novo. Façam o que tem que ser feito, da melhor maneira que puderem. Isso basta. E se não bastar, peça ajuda. De preferência aos mais velhos.

Os conselhos dos mais velhos vão lhe parecer obsoletos. Ou anacrônicos. Ou sem sentido. Ou  simplórios de mais. Assim parecem porque de fato o são. Então caberá a você segui-los. Eu, por exemplo, nunca os sigo, e quando sigo, o faço  com adaptações. E quase sempre descubro que de fato os velhos estavam certos. E isso torna minha vida terrivelmente mais difícil do que deveria. Não sejam teimosos feito eu.

Haverá adversidades, algumas fáceis, outras difíceis e também as impossíveis. As impossíveis não tem solução, então saibam identificá-las e as aceitem rápido. Quanto mais demorar, mais vai doer. Agora para os demais problemas existem dois tipos de solução, as simples e as complexas. Para os problemas fáceis use a solução mais simples. E para os problemas difíceis use a solução mais simples também.  Não complique.

O novo sempre vem e vocês serão incríveis. Como eu posso saber disso? Bem, na verdade eu não sei. Mas eu gosto tanto de vocês que eu não consigo imaginar de outro jeito. E quando eu escrevo bêbado o texto sempre sai assim, emotivo.

O ano novo é um recém nascido. Esse texto poderia ter um título mais poeticamente comum, como Joaquim , por exemplo. 2024 tem muita sorte de ter vocês como pais.  Então, feliz ano novo!


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...