terça-feira, 19 de julho de 2016

Quatrocentos e sete


Ana Alice saiu mais cedo do trabalho numa quarta-feira típica do outono carioca, céu azul, mata brilhante, trânsito caótico. Havia prometido pegar o sobrinho na escola para que a irmã pudesse ir ao dentista. Foi com o menino Gabriel à padaria da Praça Lamartine Babo, na Tijuca. Comeram empadão de frango, o melhor do Rio, beberam suco de laranja. Caminharam até o prédio na esquina da Gonzaga Bastos com a Barão de Mesquita, onde Ana Alice residia no apartamento quatrocentos e sete.

Tentou abrir a porta sem sucesso, a chave entrou, mas não girou. Insistiu, praguejou, sacudiu, nada. Foi quando reparou uma sombra sob a luminosidade na soleira da porta. Seu coração gelou. Deu um paço para traz.

- Tem gente aí tia?
Pegou o menino pelo braço e afastou-se assustada até o elevador. Olhou de novo para a porta. Percebeu que, no susto, havia deixado o chaveiro na fechadura. 
- Fica aqui Gabriel.
Ao se aproximar da porta pôde, nitidamente, ouvir uma voz masculina vinda de dentro do apartamento. Desistiu da ideia de recuperar as chaves. Desceu pelas escadas arrastando o garoto assustado. Chegou esbaforida na recepção.
- O que houve Dona Alice? – Indagou Oscar, o porteiro.
- Entraram no meu apartamento! Me ajude Seu Oscar! Chama a polícia.
- Não é possível Dona Alice! Não passou ninguém diferente aqui pela portaria. Se acalma. 
- Pode ter pulado aquele muro dos fundos Seu Oscar. Eu já avisei a síndica que a gente tinha que colocar câmeras nesse prédio. Chama a polícia seu Oscar. Cadê o meu celular? – Revirava nervosamente a bolsa, deixou o aparelho cair no chão. Com o choque a tampa abriu projetando a bateria para um lado, o aparelho para outro. – Ai Jesus!
- Calma Dona Alice! Vou chamar o zelador e vou subir com a senhora.
Deixaram o menino na recepção e subiram até o quarto andar. Ana Alice se recusou a sair do elevador. Ficou na porta espiando de longe. Oscar apoiou a orelha na porta do apartamento, não ouviu nada. Sacudiu a maçaneta, voltou andando para o elevador.
- Onde mesmo a senhora disse que deixou as chaves? 
- Na porta, seu Oscar.
- Não tem chave nenhuma na porta Dona Alice...
- Ai Jesus! - Num movimento abrupto puxou para dentro do elevador o porteiro, um senhor de sessenta e dois anos. A porta fechou-se por traz dele.
- Que isso Dona Alice!
- Pegaram a minha chave seu Oscar. Estão lá dentro me esperando! Eu vou ligar para a polícia. 
A irmã de Ana Alice, que tinha uma cópia da chave, chegou antes da dupla de policiais. Um sargento gordalhão e um soldado incrivelmente alto e esguio. Pareciam uma versão às avessas de Dom Quixote e Sancho Pança. Subiram todos, menos o menino Gabriel, que ficou contrariado na recepção com o zelador. Por sinal, o sobrinho era o único que estava adorando toda aquela aventura. 
 Abriram a porta com a chave da irmã de Ana Alice. O apartamento estava intacto.
- Não há sinais de invasão senhora – Disse o sargento.
- Mas entraram moço. Eu vi. Entraram aqui.
- Eu não vi. – Interviu o porteiro.
- Bem, se entrou alguém saiu do jeito que entrou. E não levou nada. Tem alguém perseguindo a senhora? – Perguntou o soldado.
- Ai Meu Deus! – Ana Alice caiu em prantos.
- Calma Dona Alice. Não passou ninguém pela portaria.
- Pularam o muro seu Oscar. O povo daquele cortiço aí do lado é muito esquisito. Pularam o muro. Ai meu Deus, o que eu faço?!
Tudo que os policiais fizeram foi recomendar a troca do segredo da porta. Não quiseram inspecionar o muro apesar dos protestos de Ana Alice. O chaveiro chegou cerca de uma hora depois. Trocou o segredo e instalou uma fechadura extra. Faturou duzentos e trinta reais. Isso sim foi um roubo. 
Ana Alice foi passar a noite na casa da irmã. Mal pregou os olhos teve pesadelos. Levantou sobressaltada. Perambulou pelos cômodos. Pensou em voltar a fumar. Onde conseguiria um cigarro de madrugada? Desistiu da ideia. Procurou bebida na cozinha da irmã. Só achou chá verde e suco detox. – Chata natureba! – voltou para cama improvisada no chão da sala. Passou a noite em claro. 
No dia seguinte foi direto para o trabalho. Uma agência imobiliária na Conde de Bonfim. Convenceu um amigo a voltar com ela para vistoriar o apartamento na hora do almoço. Ao chegarem ao prédio foram recebidos pelo outro porteiro:
- Bom dia, seu Renan.
- Bom dia Dona Alice. O morador do trezentos e sete achou esse chaveiro na porta dele esta manhã. Por acaso é seu?



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