Estávamos há uma semana em expedição ao norte do Espírito Santo. Nossos turnos ora ardiam ao sol vespertino, ora atravessavam intermináveis madrugadas. Os dois últimos dias foram os mais intensos, Laurinho e eu revezámos uma soneca na boleia da caminhonete ente um algoritmo e outro. Foi quando o fiscal concebeu a ideia:
- Amanhã, ao término das operações, vamos almoçar como reis no
restaurante do japonês.
Olhei ao redor. O campo a perder de vista, o gado pastando, meia dúzia
de cavalos-de-pau, a mata ciliar no horizonte, enfim, a mais idílica paisagem
rural.
- Cara, você tem certeza que a melhor coisa que servem por aqui é
Sushi? Restaurante Japonês?
- Não Lapinha, é restaurante “do” Japonês. A comida é regional, o dono
é que é japonês. O cardápio é imprevisível, esse depende do pescado do dia. Mas
confiem em mim, vocês vão gostar.
No dia seguinte fomos recebidos pelo Japonês. De fato ele possuía
feições nipônicas, mas o sotaque, a cordialidade e até mesmo a postura
corporal, eram genuinamente capixabas. O restaurante era modesto, o atendimento
excepcional. A hospitalidade do povo do interior às vezes nos faz sentir melhor
do que em casa. Ele indagou o que gostaríamos de beber. Fazia um calor
causticante. O Rivelino fez um olhar de consternação:
- E aí Lapinha?
- Tem certeza que vão deixar o carioca aqui decidir?
- Oxente!
- Seu Japonês, traz cerveja pra geral, por favor.
Ela veio sedutoramente gelada. Acompanhada de um caldinho de aratu
cujo aroma nos arrebatou ao sétimo céu. Era só a entrada. Na sequência uma
moqueca daquelas que traz sentido à expressão “estado do Espírito Santo”. O
arroz branquinho, alho no ponto certo. Feijão mulatinho, delícia. Um pirão de
um amarelo magnífico. Camarões, mariscos, lagostins. A lula macia, parecendo
massa de semolina. A salada colorida encheria de orgulho qualquer
nutricionista. O peixe de carne branca, tenro, cozido com exatidão oriental. O
polvo ao vinagrete levemente apimentado era um charme. De quebra, fomos
apresentados à muma de siri, uma iguaria.
Nossa companheira Alana, paulista, corpo esguio de maratonista, que
normalmente come comedidas porções de passarinho, repetiu o almoço ao menos
quatro vezes. Parecia um operário. Estávamos prontos para nos entregar à mais
profunda leniência quando começou a vir a sobremesa. Um pudim de leite lisinho,
outro de macadâmia. Compotas de goiaba, de araçá, de caju, doce de mamão verde,
de abóbora com coco. Pra acompanhar, um queijo minas meia cura e um cafezinho recém-passado
no coador de pano.
Ao sair coloquei a mão sobre o ombro do Japonês. A essa altura já
éramos amigos de longa data:
- Muito Obrigado. Essa foi a melhor refeição que fiz na vida.
- Mas isso é coisa simples, pescada pela gente aqui do povoado mesmo.
O Freddie, único estrangeiro entre nós, ratificou:
- No meu trabalho tenho oportunidade de conhecer muitos lugares, em
diversos países. Concordo com o Lapinha. Essa é a melhor refeição do
mundo.
O japonês agradeceu timidamente. Desconfiado, como bom caipira, achou
graça do nosso entusiasmo. No caminho de volta fizemos o contorno no fim do
vilarejo e avisamos o magnífico estuário que se forma na foz do Rio Doce. A
exuberância da natureza explicou o caráter transcendental da comida preparada
naquela região.
Agradeci a Deus por poder desfrutar tão intimamente dos produtos daquela
terra. Pedi para que ele cuidasse daquele povo de cultura tão rica e confessei
que desejava retornar ali por diversas vezes para cometer o pecado da gula.
Hoje vendo na TV o mesmo estuário sepultado pela lama da mineração sou levado a
reconhecer que não sei rezar direito.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
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