quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A última melhor refeição do mundo ou eu não sei rezar direito


Estávamos há uma semana em expedição ao norte do Espírito Santo. Nossos turnos ora ardiam ao sol vespertino, ora atravessavam intermináveis madrugadas. Os dois últimos dias foram os mais intensos, Laurinho e eu revezámos uma soneca na boleia da caminhonete ente um algoritmo e outro. Foi quando o fiscal concebeu a ideia:

- Amanhã, ao término das operações, vamos almoçar como reis no restaurante do japonês.

Olhei ao redor. O campo a perder de vista, o gado pastando, meia dúzia de cavalos-de-pau, a mata ciliar no horizonte, enfim, a mais idílica paisagem rural.

- Cara, você tem certeza que a melhor coisa que servem por aqui é Sushi? Restaurante Japonês?

- Não Lapinha, é restaurante “do” Japonês. A comida é regional, o dono é que é japonês. O cardápio é imprevisível, esse depende do pescado do dia. Mas confiem em mim, vocês vão gostar.

No dia seguinte fomos recebidos pelo Japonês. De fato ele possuía feições nipônicas, mas o sotaque, a cordialidade e até mesmo a postura corporal, eram genuinamente capixabas. O restaurante era modesto, o atendimento excepcional. A hospitalidade do povo do interior às vezes nos faz sentir melhor do que em casa. Ele indagou o que gostaríamos de beber. Fazia um calor causticante. O Rivelino fez um olhar de consternação:

- E aí Lapinha?

- Tem certeza que vão deixar o carioca aqui decidir?

- Oxente!

- Seu Japonês, traz cerveja pra geral, por favor.

Ela veio sedutoramente gelada. Acompanhada de um caldinho de aratu cujo aroma nos arrebatou ao sétimo céu. Era só a entrada. Na sequência uma moqueca daquelas que traz sentido à expressão “estado do Espírito Santo”. O arroz branquinho, alho no ponto certo. Feijão mulatinho, delícia. Um pirão de um amarelo magnífico. Camarões, mariscos, lagostins. A lula macia, parecendo massa de semolina. A salada colorida encheria de orgulho qualquer nutricionista. O peixe de carne branca, tenro, cozido com exatidão oriental. O polvo ao vinagrete levemente apimentado era um charme. De quebra, fomos apresentados à muma de siri, uma iguaria.

Nossa companheira Alana, paulista, corpo esguio de maratonista, que normalmente come comedidas porções de passarinho, repetiu o almoço ao menos quatro vezes. Parecia um operário. Estávamos prontos para nos entregar à mais profunda leniência quando começou a vir a sobremesa. Um pudim de leite lisinho, outro de macadâmia. Compotas de goiaba, de araçá, de caju, doce de mamão verde, de abóbora com coco. Pra acompanhar, um queijo minas meia cura e um cafezinho recém-passado no coador de pano.

Ao sair coloquei a mão sobre o ombro do Japonês. A essa altura já éramos amigos de longa data:

- Muito Obrigado. Essa foi a melhor refeição que fiz na vida.

- Mas isso é coisa simples, pescada pela gente aqui do povoado mesmo.

O Freddie, único estrangeiro entre nós, ratificou:

- No meu trabalho tenho oportunidade de conhecer muitos lugares, em diversos países. Concordo com o Lapinha. Essa é a melhor refeição do mundo. 

O japonês agradeceu timidamente. Desconfiado, como bom caipira, achou graça do nosso entusiasmo. No caminho de volta fizemos o contorno no fim do vilarejo e avisamos o magnífico estuário que se forma na foz do Rio Doce. A exuberância da natureza explicou o caráter transcendental da comida preparada naquela região.

Agradeci a Deus por poder desfrutar tão intimamente dos produtos daquela terra. Pedi para que ele cuidasse daquele povo de cultura tão rica e confessei que desejava retornar ali por diversas vezes para cometer o pecado da gula. Hoje vendo na TV o mesmo estuário sepultado pela lama da mineração sou levado a reconhecer que não sei rezar direito.




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7 comentários:

  1. Muito bom como sempre....você sabe rezar...mas o ser humano também sabe ser desumano e FDP.

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  2. Muito bom como sempre....você sabe rezar...mas o ser humano também sabe ser desumano e FDP.

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  3. Nossa que bonito! Mas infelizmente pude comprovar a última parte, que tristeza vê um Rio desses naquele estado!!!!

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