sábado, 21 de março de 2015

Acabou o pão



Santa Rita era uma cidade graciosa, a igrejinha no vértice da praça com seu campanário amarelo e arredores ajardinados, os ipês que floresciam em setembro eram moradas de saíras, canários da terra e tizius bailarinos. As maritacas chegavam todo fim de tarde com seu pio alvoroçado espantando os bem-te-vis que cumpriam sua sina de delatores-mor. O tedéu dos pássaros só não era mais eufórico que o das crianças que invadiam a praça ao final das aulas. Era um corre-corre por todos os lados, ora perseguiam a bola, ora a si mesmos, ora aos pobres dos serelepes que se escondiam nos ocos das árvores. 

A apoteose desse espetáculo singelo e cotidiano se dava ao encontro dos ponteiros do relógio, tanto pela manhã quanto pela tarde, quando da padaria emergia o aroma de pão fresco. E que aroma! O simpático centrinho era envolto em uma áurea mágica de cereais, um perfume vindo dos céus que fazia brotar no balcão uma infinidade de pães de centeio, semolina, milho, cevada e toda sorte de grãos que Dionísio pôs sobre a Terra para deleite dos homens. Surgiam brioches, croissants, bolos, broas, tortas, sonhos, pavês, rocamboles. Era uma festa para o olfato, para os olhos, para o estômago e, sobretudo, para a alma. Tábuas de frios muito bem ornadas com queijos, copas e salames produzidos nas fazendas da região, compotas de frutas da estação e geleias complementavam a ópera cujo epílogo contava com uma cafeteira italiana de onde saiam cappuccinos, mocas, macciatos. Hábito trazido pelos turistas, cada vez mais frequentes e numerosos, que superava em finesse mas não em sabor o bom e velho café feito no coador de pano de Dona Adélia, que a despeito da modernidade da máquina ainda era o mais vendido.

Triste foi o dia em que seu Antônio, gerente e proprietário da padaria veio a falecer. Sua esposa, Dona Adélia, tinha mãos de fada para a confeitaria, mas nunca fora chegada à gestão - Venda a padaria dona Adélia, vocês já fizeram um bom pé-de-meia. Para que trabalhar mais? Era o que diziam os parentes e amigos mais próximos. Mas o hábito de enfeitar os bolos e coar o café já lhe era fisiológico, uma dose diária de alegria que ultimamente lhe fazia parar de pensar em seu Antônio, seu companheiro dos últimos 53 anos, de quem a saudade apertava à noite quando a padaria fechava. Se o padeiro Ataíde e o sobrinho Marcelo fossem uma só pessoa, a decisão pelo cargo de gerente seria fácil. Seu Ataíde trabalhava com seu Antônio desde a inauguração da padaria, conhecia a fundo todos os processos em pormenores que nem mesmo o seu Antônio tinha ciência. Era ele quem elaborava as receitas, encomendava as mercadorias, negociava com os produtores. Já o Marcelo, fora o responsável pela modernização da loja. As ideias dele colocaram a padaria e a cidade de Santa Rita no mapa turístico do estado. Havia estudado administração e demonstrava uma paixão comovente pelos negócios do tio, que o criou como um filho desde que um desastre de automóvel o deixara órfão aos quatorze anos de idade.

A demora pela decisão de Dona Adélia dividiu a cidade em duas, tinha o time do Ataíde e o time do Marcelo. – O Ataíde sempre foi o braço direito do seu Antônio, ninguém conhece essa padaria mais que ele, esse Marcelo mal saiu dos cueiros. Diziam uns enquanto os outros retrucavam. – Esse menino é cheio de predicados, só se afastou da padaria quando foi estudar na capital e se não fosse ele a gente não tinha essa fila aí na porta todos os finais de semana. Os argumentos se fartavam e desdobravam tanto de um lado quanto do outro. Dona Adélia escolheu o Marcelo, afinal era moço, gente da família, poderia tocar o negócio por muitos anos. No fundo até o Ataíde ficou satisfeito com a escolha, pois esse cargo de  gerente ia lhe trazer trabalho extra e sua paixão era mesmo a panificação.

Ninguém conseguiu me explicar o porquê, mas a cidade continuou dividida, o time do Ataíde embarcou em uma campanha do anti-Marcelo tão ácida quanto injustificada - Isso não vai para frente, onde já se viu um sujeitinho imberbe desses gerente de alguma coisa?  Enquanto era só disse-me-disse ninguém levou a sério. – Eles vão se acostumar. Dizia Dona Adélia. Mas quando o balconista Juca foi às vias de fato com ajudante de padeiro Elias, se engalfinhado bem na praça da cidade, é que a coisa ficou séria. O Marcelo acabou tendo que demitir os dois, o que só serviu para exaltar os ânimos:

 – O seu Antônio nunca demitiu empregado algum, quem esse Marcelo pensa que é?

– O que vocês queriam? Que ele mantivesse os dois brigões trabalhando aqui? Isso não se pode admitir minha gente!

Foi nesta época que começaram os boatos – A qualidade do pão caiu horrores! – Olha esse bolo, está na cara que é velho. Alguém chegou ao descaramento de dizer que tinha comprado um pão que veio com uma asa de barata dentro e até guardava o fragmento do inseto no bolso enrolado num guardanapo de papel para ostentar como prova do crime. – Veja aqui com seus próprios olhos, a vigilância sanitária deveria cuidar disso. Na realidade, a vigilância fez nove inspeções em menos de um mês, mas nunca achou nada que comprovasse as denúncias que chagavam como enxurrada à repartição. – O que deu nesse povo? Perguntou o fiscal ao Marcelo quando enfim entendeu que as denúncias não passavam de bravatas. – Eles cismaram que o Ataíde tem que ser o gerente. Respondeu. – E por que você não o demite? O Marcelo franziu a testa e aumentou o tom de voz. – Ele está do meu lado oras, ninguém aqui me defende mais do que ele.  O Ataíde, que acabou ouvindo a conversa se intrometeu. – Esse povo enlouqueceu, eu nunca quis ser gerente, me deixem aqui quieto com meus fornos!

Mas os boatos eram implacáveis, teve até um atentado num feriado quando a padaria estava cheia de turistas. Um sujeito que era primo do Juca, aquele que havia sido demitido, tirou de uma caixa uma dúzia de ratos, soltando os animais bem no meio do salão. Foi um estardalhaço só, as mulheres gritando os meninos botando pra chorar, um escândalo. O fiscal da vigilância nem se moveu da cadeira quando a denúncia de infestação de ratos chegou à repartição. Mas Dona Adélia, que já não andava bem de saúde, perdeu a alegria em decorar bolos e coar café. Decidiu vender a padaria para um sujeito inglês e voltar para Portugal. Foi viver os últimos dias ao lado da irmã que há muito não via, mas com quem sempre se correspondia. O Marcelo recebeu da tia a maior parte do dinheiro da venda da padaria e abriu um bistrô na capital, dizem que até saiu na revista outro dia desses recebendo prêmio de chef du cuisine.

O inglês derrubou a padaria, a casa de Dona Adélia que ficava nos fundos e o pomar de onde saiam as goiabas e os figos das compotas. Ergueu um imenso galpão onde passou a funcionar um curtume. O couro era fornecido pela fazenda do Dr. Renato, presidente da câmara e tio do prefeito. O mau odor empesteou de tal maneira a pracinha da cidade que o padre até mudou o horário da missa – Esses protestantes não respeitam se quer a hora da Ave Maria! – As lojas de artesanatos e os restaurantes que abundavam no centro foram caindo feito dominós com a mesma sistematização que o inglês os comprava e os demolia, expandindo seu império de fedentina. – Esses sobrados são do tempo colonial, alguém na prefeitura deveria impedir esse crime! Era um coro para surdos, as belas fachadas cheias de barroquismos foram substituídas por tantos cubos insossos de zinco quanto bastassem ao lucro do inglês e de seus sócios da administração municipal. A população que não se adaptava às doze horas de trabalho malcheiroso na manufatura inglesa teve que se mudar para os grandes centros.

Compondo o cenário tétrico, uma horda de urubus colonizou os ipês, afastando as saíras, os tizius, os canários, os bem-te-vis e até mesmo as valentes maritacas que travaram uma última batalha inglória pelos ninhos que restavam. Aqueles ratos que foram soltos pelo Juca na extinta padaria deveriam ser exímios reprodutores, pois incentivada pelo azedume, a sua população crescera de tal forma na cidade que os serelepes sumiram da praça. Um menino foi mordido por uma ratazana ao achar que poderia brincar com os novos roedores da mesma maneira que fazia outrora com os simpáticos esquilos. As mães assustadas proibiram as brincadeiras da praça e os turistas já não tinham motivos para subir a serra até Santa Rita. Da última vez que eu, viajante desavisado, voltei àquela praça, perguntei atônito para um gari solitário que varria a calçada:

- Mas me diga amigo, o que é que aconteceu com esta cidade?

Ele ergueu os olhos e respondeu melancólico:

- É que acabou o pão.

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