domingo, 25 de abril de 2021

Reclamação de defunto


Afonso Barreto, natural desta cidade, residente que foi quando vivo, em muitos endereços, sendo por último o situado numa transversal à rua Aquidabã, localidade que ninguém sabe dizer ao certo se é Meier ou Lins, veio a falecer por meios que me proibiram de tornar público e há pouco mandou-me a carta abaixo, que é endereçada ao senhor presidente da república. Ei-la:

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil. Sou um homem pobre que em vida nunca deu trabalho à polícia ou a qualquer outra autoridade pública, tampouco fiz a elas reclamação alguma. Dediquei-me unicamente a cumprir meu trabalho em inúmeras profissões sendo a última de frentista. Atividade na qual me dediquei a abastecer os automóveis dos cariocas admitindo que os outros os tivessem para abastecer e eu não.

Nunca fui de esquerda ou de direita, na realidade nunca entendi muito bem as diferenças, pois por política nunca me interessei. Também não fui de me meter em greves, de participar de manifestações ou qualquer outro modo de celeuma a perturbar a ordem e os costumes. Procurei viver na santa Paz do Senhor na qual morri quase sem pecados.

Fui membro da Assembleia de Deus desde a minha mocidade, antes disso era católico batizado e crismado. Nunca fui de macumbaria, feitiçaria, maçonaria, espiritismo, comunismo ou qualquer outra religião ligada ao inimigo de nossas almas. Pelo contrário, sempre fui servo de Deus, cheguei a ocupar o cargo de auxiliar de trabalho na minha congregação e estava cotado para diácono.

Vivi dentro da doutrina e da lei e esperava gozar o mais doce repouso após minha morte. Sou defunto há pouco tempo e minha despedida deste mundo foi singela com poucos amigos e familiares a chorar sinceramente por mim. Viver sendo pobre não é de todo ruim mas morrer na pobreza é muito bom, pois a ausência de espólio não promove desavenças familiares.  Logo não há de se carregar maldições para a cova, exceto a dos credores, com as quais eu não me importo e  confesso que tenho certa alegria.

Pois seguia eu para a glória confiante de que seria recebido no paraíso quando fui impedido de entrar aos céus e mandado a passar um tempo penando no inferno. A sentença até que é branda, não hei de ficar uma longa temporada por aqui, contudo me incomoda o fato de pagar por algo cuja culpa não é minha. O que me ocorreu é fruto do mau serviço prestado pelo governo liderado por Vossa Excelência.  Explico.

Estava eu nos portões do paraíso e já ia assinar o livro da recepção quando o segurança percebeu um hematoma em meu pulso.  

- Ora cidadão o que é isso? Por acaso estavas algemado quando morresse?

Expliquei ao segurança que por algum motivo me ataram à cama do hospital onde convalescia e antes que eu pudesse me justificar ele disse que aquilo era marca de vagabundo, que se me algemaram na cama boa coisa eu não tinha feito. E assim vim parar na situação em que me encontro.

No início aceitei minha pena e me dediquei a tentar lembrar do pecado pelo qual estava pagando a fim de me arrepender e ser salvo. Até que um amigo brasileiro que conheci no inferno, tem chegado muitos por aqui ultimamente, contou-me que estavam amarrando as pessoas nas camas dos hospitais por falta de um tipo de remédio que um certo ministro subordinado de Vossa Excelência deixou de comprar. Eis a razão de minha queixa e revolta. Nada tenho a ver com o motivo de minha pena, pelo contrário, sou vítima de um erro logístico, para se dizer o mínimo, do governo federal.

Solicito que o gabinete de Vossa Excelência elabore uma nota explicando os pormenores do ocorrido para que eu possa anexar ao processo de relaxação da pena que estou montando. Caso contrário o advogado que constituí aqui no inferno, cá estão os melhores, há de arrolar vossa excelência nos autos. 

Aguardo providências. 




 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

Fonte: Lima Barreto, Queixa de Defunto, 20/03/1920

4 comentários:

  1. Genial!! Que maneira inteligente de se fazer uma crítica. Mas lamento informar que Vossa Excelência não emitirá nota alguma. Ele mal consegue articular uma frase... Ah...ele já está arrolado pelo conjunto da obra (de terror).

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  2. Temos muitas excelências que devem prestar contas... da cabeça ao prelo! Muitos inúteis, infelizmente.

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