sábado, 22 de outubro de 2016

Preconceito


Jorge trabalhava numa loja de colchões na região do Saara, Centro do Rio de Janeiro. Contava seus quarenta e tantos anos, os cabelos exibiam avançados tons de grisalho e a barriga uma teimosa proeminência. Era Carioca do Cachambi, mas o jeito sereno e brincalhão lhe rendeu o apelido de “baiano”. A rapaziada da loja adorava pegar no pé do Jorge, que gastava muito mais tempo que os demais a conversar com os fregueses.

- Vocês é que são acelerados! – Defendia-se Jorge. O que ele não revelava era que a estratégia da Boa Terra vinha dando certo. As suas comissões pelas vendas eram as maiores da loja.

Naquela terça-feira ele perdera boa parte do tempo do almoço a rodar pelas papelarias do Centro em busca de uma dúzia de cartolinas a um preço razoável. Item, trivial no mercado num passado recente, tornado caro e incomum pela era do Power Point. Sua filha precisava delas para fazer um trabalho de artes na escola. Encontrou as cartolinas num bazar no Largo de São Francisco, doze folhas enroladas num volume desconfortável – levar isso no Metrô vai ser um inferno – pensou.

Saiu da loja as sete, parou para tomar mate gelado e comer uns pães de queijo com os amigos do comércio. Comprou com um ambulante uma barra de chocolate para cada uma de, como ele dizia, “suas meninas”, esposa e filha.  Tomou o metrô da linha dois na estação Uruguaiana, por sorte conseguiu encostar na parede do vagão, prendeu as cartolinas entre as pernas e tirou da bolsa a tiracolo o livro que lhe fazia companhia há uma semana. O Nome da Rosa de Umberto Eco. Enquanto a composição serpenteava sobre o subúrbio, Jorge se embrenhava nos corredores de mosteiros medievais junto com o frade Guilherme de Baskerville, tomando cuidado para não deixar as cartolinhas lhe escaparem.

Desceu na estação Maria da Graça e foi para o ponto de ônibus esperar o 679, que não demorou. Tomou o coletivo, passou pela roleta e sentou-se próximo à saída. Pegou novamente o livro e retomou a leitura. Quando o ônibus virou na Rua Miguel Ângelo as luzes foram apagadas. Jorge olhou ao seu redor e percebeu que os demais passageiros, mergulhados em seus smartphones, nem notaram a diferença. Ele fora o único atrapalhado, sentiu-se obsoleto. Ficou segurando o livro na mão esquerda com o indicador entre as páginas, para não se perder na leitura.

Logo lhe chamou atenção a movimentação de três rapazolas. Um deles, muito alto e desengonçado, andou na direção da porta de trás. Os outros dois permaneceram na frente, próximo à roleta, pareciam dizer algo ao motorista. Um russinho de cabelo amarelo e um rapaz negro, que não passava dos quinze anos, mas era carnudo como um touro. O de cabelo amarelo virou-se direção dos passageiros, Jorge observou que uma cicatriz profunda lhe marcava a face. O rapaz amarrou o olhar, puxou uma pistola e anunciou o assalto.

O pequeno touro passou a tomar com violência os celulares, carteiras, relógios e o que mais pudesse dos passageiros assustados. Jogava tudo em uma mochila enxovalhada presa ao peito. Gritava palavrões e ameaçava quem ousava lhe olhar nos olhos. Quando chegou a sua vez, Jorge ergueu o braço para tirar o relógio tentando não soltar o livro e perder a página marcada na mão trêmula. O touro furioso olhou aquele movimento desengonçado, viu a cartolina atravessada sobre seu colo e disse a Jorge num tom de voz mais baixo.

- Tá tranquilo professor. Não vou assaltar o senhor não.

Olhou para a passageira do banco de trás:

- Tá olhando o quê, vagabunda? Passa a porra do celular!

Limpou os outros três pobres sentados a jusante e desceu com o comparsa pela traseira. O de cara riscada recolheu a arma, pulou a roleta e saiu pela frente. Jorge ainda trêmulo desceu alguns quarteirões adiante, abraçou o livro como a um relicário, fez a oração de seu padroeiro homônimo e foi encontrar suas meninas.



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