sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Poeta


Otto era um erradio, tal como o Elisiário do conto de Machado. Mais que notívago era um apaixonado pela madrugada. Um carioca como os de outrora, elegante, cortes e festeiro. Dava-me gosto ouvir os seus discursos. A oratória de professor e a formalidade com que escolhia as palavras davam-lhe ares de poeta.  As meninas que o diga, apaixonadas.

Bom versador nas rodas de samba do Grajaú. Sujeito de carisma imensurável. Era impossível andar com ele duas quadras na Tijuca sem parar um abraço, uma conversa, uma resenha sobre o jogo do Flamengo. Seu sotaque era a cereja do bolo: - Fala bicho, beleza!?

Sucedeu que outro fato aproximou Otto do ilustre personagem de Machado. Certa feita ele simplesmente sumiu. Ninguém mais o via em suas andanças pela Praça Sans Peña, por Vila Isabel ou pela Rua da Carioca, nem na Zona Sul.

O sumiço se estendeu de tal forma que a malandragem da Lapa começou a se preocupar:

- Ele deve estar reformando o apartamento. O Otto sempre some quando se mete a fazer obras.

- Não, tá não. Eu passei pelo prédio dele e o porteiro me garantiu. Aliás, nem por lá ele tem aparecido.

Foi a gota d'agua. Organizamos um mutirão. A minha função foi ficar de sentinela na estação das barcas. Ele ministrava aulas de latim na Universidade Fluminense, haveria de passar por lá. Depois de três dias inteiros montando guarda na Praça Quinze decidi atravessar a poça. Também em Niterói ninguém dava conta do Otto. Na Fluminense, no Campo de São Bento, em São Francisco...

A comoção pelo sumiço do poeta fez cair o movimento na Lapa. Sem ele a Avenida Mendes Sá parecia monótona, insossa. Do samba só se reconhecida a cadência do surdo, melancólica.

Eis que um dia, tão repentinamente quanto fora por ocasião do sumiço, Otto bateu a minha porta. Entrou aos prantos, foi logo procurando o sofá:

- O que houve meu amigo?

- Bicho, uma desgraça, uma desgraça...

- Calma Brother.

- Você ainda tem aquela caninha a gente trouxe de Minas?

Tomou duas doses seguidas. Eu nunca o havia visto tomar uma sequer. Não assim, pura. O Otto nuca fora de tomar destilado...

- Pow bicho eu fiz uma merda tão grande que não sei como desfazer... Uma desgraça bicho... Uma desgraça...

Caiu em prantos novamente.

- Me dá outra dose Lapinha.

Desta vez enchi o copo americano até transbordar, como fazem os japoneses com o saquê. Ele matou em três goles enquanto olhava para o chão e balbuciava uma sucessão de impropérios dos quais só se distinguia a palavra "desgraça". Respirou fundo e enxugou as lágrimas no lenço que sempre trazia consigo. Ergueu os olhos:

- Bicho você não vai acreditar...

- Fala porra!

- Casei.



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