sábado, 31 de outubro de 2020

Dia de Feira


O ano é 2019, estamos na feira da Ribeira, Ilha do Govenador, Zona Norte do Rio.  Feira, feira. Feira de subúrbio, com peixeiro, açougueiro, padeiro, amolador de faca. Bertalha, almeirão, cheiro verde, couve, chicória. Aipim do Rio do Ouro, banana da terra, batata calabresa no saquinho. Goiaba, goiabada, cuscuz, carambola, manga. Aquele frango amarelo - é de quintal – sei. Aquela tia que moi pimenta e cominho na hora. Aquele sujeito que fica para lá e para cá vendendo limão e alho. Caldo de cana, samba, cerveja, chouriço, cadeira de plástico, pula-pula, escorrega inflável e o escambau.

São 10:42 da manhã, o chafariz azul e branco da Praça Iaia Garcia dispersa água e luz. Ele é o epicentro da feira e ao seu redor há um conjunto de bancos de característica bem peculiar. Os pés em semicírculo apoiam um encosto compartilhado por dois acentos. Um voltado para o meio da praça, o outro para o conjunto de árvores antigas, um tanto retorcidas, que delimitam o largo.  

Em um desses bancos Juliano amarra os cadarços da pequena Leonora. Ambos exibem orgulhos a camisa de seu clube. 2019 foi um ano mágico para o Flamengo. Ele termina de arrumar os calçados da menina e avista um amigo dos tempos de escola. Luiz Everaldo, vulgo Farol. Juliano, sem pensar duas vezes, canta em voz alta:

- O pneu furou... 

Luiz Everaldo vira-se sorrindo:

- Sifudê Juba!

- Falaê Farol. Beleza?

Os dois se abraçam, a menina observa curiosa.

- Seu time tá um nojo em Juba?

- Vamos ganhar tudo esse ano parceiro.

Luiz Everaldo dirige-se a menina:

- Bonita essa camisa de vocês. Mas sabia que seu pai aí já beijou o escudo do meu Vascão?

- Mentira... – retruca a menina.

- Beijou ou não beijou Juba?

Juliano olha para filha, a menina enruga a testa:

- Você fez isso papai?

Corta para Niterói, 1994, quadra do Complexo Esportivo do Barreto. 

Os alunos do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, da Freguesia, na mesma Ilha do Governador, encontravam-se em êxtase. O seu time de futsal chegara às finais estaduais do JEEP: Jogos Estudantis das Escolas Públicas. Superaram vinte times, dentre os quais, francos favoritos, como o colégio de aplicação da UFRJ, o Colégio Militar e por aí vai.

O escrete da ilha jogara o ano todo com uniformes improvisados. Pegaram a camisa do colégio e desenharam o número nas costas com fita isolante. A professora de artes teve sua maior alegria em 14 anos de magistério. Os shorts eram todos brancos, mas cada um com um estilo. Tinha desde folgadão a la NBA a modelos mais, digamos... ousados, vide Fluminense 1992. 

Contudo para a grande final o Professor Lélio,  treinador genial formado em educação física pela Universidade Castelo Branco, correu o mundo, incomodou um monte de gente,  até que conseguiu o contato de um cara. Esse cara tinha um cunhado que era sócio do Vasco. O cunhando desse cara conhecia um cara, que conhecia um outro cara, que era amigo do roupeiro do time de base da colina. Daí a molecada pôde disputar a final adequadamente vestida.  

Final na casa do adversário, pressão total, torcida enlouquecida. Mal se ouvia o apito do árbitro. Jogo duro 1 x 1. Há pouco menos de dois minutos para o fim Juba faz uma tabela linda com Farol, que avança e bate cruzado. O goleio adversário espalma, mas a bola rebatida volta aos pés de Juba. Provando a tese de que a bola procura os predestinados.

- Ladrão! – Grita o professor Lélio.

Juba, num giro, livra-se do marcador. A bola sobra na canhota. Ele é destro. Ou pelo menos era até esse momento da vida. O chute sai com perfeição, a meia altura, indefensável. O time da casa não tem como reagir. 

Acabou! 

A equipe do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes vence o JEEP do Rio de Janeiro, edição 1994. 

Todos se abraçam, o professor Lélio cai em lágrimas. A torcida da ilha, num total de oito pessoas (tinha que pegar três ônibus), invade a quadra. Juba erguido nos ombros do goleiro Lorena (o nome era Marcus Vinícius, mas o apelido era Lorena, isso é papo para outra crônica), voltando... Juba, erguido como herói, olha para o peito, camisa branca, faixa preta na diagonal, 3B-Rio, do lado esquerdo uma cruz de malta vermelha...

Corta para 2019, feria da Ribeira, 10:58 da manhã, a menina aflita, o pai com um sorriso indecifrável...

- Beijei filha. Beijei mesmo. E em termos de futebol é o maior orgulho que eu tenho.


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6 comentários:

  1. Muito bacana! Parabéns!!! Quero saber mais sobre o Lorena. Kkkk

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  2. Kkkkkkk
    Muito boa elessadre!!!
    Bom saber que Juba já beijou o escudo do Vascão!! Quem diria rsrsrs

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  3. Muito boa, até quem não gosta de futebol (eu por exemplo) se emociona. Parabéns!!!

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  4. O Futebol só não é mais apaixonante que suas crônicas. Mas realmente, beijar um escudo do seu maior rival tem que ter muita paixão. Eu jamais faria uma sandice dessas!!

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  5. Eu já usei uma vez a camisa do Flamengo quando brincava de golzinho na Rua Aracati em Ramos, ainda nos anos 90. O nosso time de 4 ou 5 moleques precisava de um uniforme e o legal foi que todos vestíamos a 10.
    Mesmo sendo vascaíno, aquele dia me sentia bem inspirado e vencemos a maioria do "dez minutos dois gols".

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