segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Celestino

José Celestino Antônio da Anunciação, o seu Celestino. Baiano veterano com quem trabalhei há alguns anos. Tinha a pele castanha, cobreada. Os cabelos absolutamente brancos, novelo de algodão. Os olhos profundamente azuis. Sorriso largo, fala breve, figuraça. 

Foi com seu Celestino que aprendi a dirigir. A gente estava em uma fazenda em Maracangalha - sim Maracangalha da música: eu vou pra Maracangalha, eu vou... pois eu fui.  - enfim, a gente estava em uma fazenda em Maracangalha, ele levou a pálio pro meio do pasto.

- Você vai dirigir hoje.

- E se eu bater em alguma coisa?

- Conversa rapaz, nem árvore tem nessa zorra, vá logo!

Sentei no banco do motorista,  ele no carona com a mão apoiada no freio de mão. Não tinha onde eu bater, mas baiano velho nunca dá mole.

- Pise na embreagem, ponha a primeira e solte de vagar.

- Mas qu...

- Embreagem é o da esquerda. A primeira é que tem o um... ó pra cá... um, dois, três... tá vendo? Vá!

Pisei no pedal, olhei pro câmbio...

- Pra frente miséra... Olhe pra frente! Você tem que olhar pra contar de um até cinco é?

- É....

- É nada. Olhe pra frente, pise na embreagem, ponha a primeira e solte devagar.

O carro deu um tremelique, engasgou e morreu.

- DEVAGAR MISÉRA! Solte devagar.

Em algumas semanas eu estava acelerando na BR. E seu Celestino ao meu lado:
 
- De vagar miséra! Aprendeu outro dia já pensa que é Nigel Mansell.

Até hoje quando vejo uma placa de limite de velocidade eu ouço a voz do seu Celestino - De vagar miséra!

Aprendi muitas outras coisas com seu Celestino. 

Aprendi a diferença entre siri mole e siri catado. A distinguir brega, arrocha e forró. Aprendi a fazer o dejejum com carne de sertão, inhame e puba. Aprendi a negociar. A observar e ouvir antes de falar. A curar resfriado com conhaque de alcatrão, mel e limão. A nunca pedir pra alertar nada do cardápio. Aprendi a só confiar em quem assume seu sotaque, seja qual for. A tomar cerveja na sexta e chá de carqueja na segunda. 

Conheci a moqueca de sernambi e o restaurante da Roquinha. Conheci Santo Amaro - terra de dona Canô. Conheci a Avenida Sete. O Rio Vermelho. A praia do Forte. Madre de Deus. Bom Jesus dos Pobres. Arembepe.

Graças a ele eu sou o segundo carioca que mais ama a Bahia. O primeiro é um amigo meu de Lucas que é casado com uma baiana. Que além de ser baiana sabe fazer pãozinho delícia. Aí realmente não tem como. 

Pausa para explicar pãozinho delícia. 

Pense no melhor brioche que você já comeu na vida. Não chega nem perto. Mesmo que tenha sido na França. Se você nunca comeu brioche parabéns pela falta de frescura. Mas então imagine.

O pãozinho delícia é absolutamente leve, incompreensívelmente macio. Tem uma casca fininha, delicada, coberta por uma poeira de queijo ralado. Ele deve ser tirado do forno um minuto antes de assar totalmente. Pois o pão delícia perfeito tem que ser ao ponto pra mal. Servido ainda quente. Você parte, a fumaça sobe, você passa manteiga e o que acontece quando você põe na boca é indescritível.

Uma vez eu estava com seu Celestino no Pelourinho e um sujeito veio nos importunar. Ele queria nos amarrar no braço uma fitinha do Senhor do Bonfim. Isso equivale a escrever na testa: TURISTA. Seu Celestino olhou nos olhos do sujeito:

- É o QUÊ! Vai amarrar fita em braço de baiano!?

- Desculpe, desculpe...

Funciona sempre. Outro dia eu estava na feira do Largo da Ordem em Curitiba. Vejam só. Um cara queria a todo custo me vender um pastel de pinhão. Olhei pra ele:

- É o QUÊ! Vai amarrar fita em braço de baiano!?

- Desculpe, desculpe...

Uma vez a gente estava comendo um acarajé no Largo de Itapuã. No meio da conversa percebi que ele estava incomodando com placa da barraca ao lado.

- O que foi seu Celestino?

- Ó pra isso. Punheta virou bolinho de estudante.

- Como é que é?

- Esse doce... que pra mim nunca prestou... sempre se chamou punheta... agora mudaram o nome só pra vender pra paulista.

- Pra carioca não?

-  Não precisa. Carioca é descarado igual baiano. 



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

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