domingo, 9 de maio de 2021

Jorginho


Ano é 1984, estamos em Vila Inhomirim, distrito de Magé, cidade de grande importância política e econômica na época do Império, mas que entrou em profundo declínio desde que, a mando do presidente Floriano, teve sua população massacrada pelo exército brasileiro. Os poucos que sobreviveram testemunharam os saques e estupros em praça pública promovidos por uma horda de valorosos soldados brasileiros, patriotas e cumpridores de ordens. O episódio ficou conhecido como “Os Horrores de Magé” põe no Gugou.

Daí o tiro de misericórdia foi a construção da BR-040 cujo traçado redesenhou a Estrada Real deixando ao largo os distritos mageenses e os transformando numa espécie de “Radiator Springs”. Põe no Gugou também. De lá para cá, o município tornou-se cidade dormitório da classe operária.

Depois desse grande e desnecessário contorno histórico (mas que vinha entalado na garganta deste cronista), voltemos à 1984, na Vila Inhomirim, onde conheceremos o menino Jorginho. O bairro em questão tinha a rua principal, onde estava o comércio, e as transversais, onde moravam as pessoas. Essas transversais dividiam-se em terços. O primeiro terço ia da rua principal até a pracinha, era calçado por paralelepípedos e habitado pelas pessoas mais “ricas”. Ricas entre aspas, pois o conceito de rico era morar em uma casa com acabamento na fachada, se tivesse automóvel era milionário, se tivesse automóvel e telefone era semideus.

O segundo terço da rua não tinha calçamento, terra batida e casinhas, em sua maioria, sem reboco na parede. Lá morávamos o menino Jorginho e eu, éramos vizinhos. Este terço empobrecido de rua ia da pracinha até a rua do valão. O valão em 1984 não era assim tão valão quanto é hoje. Ainda era meio valão e meio córrego. Uma espécie de moribundo condenado à morte. Mas que ainda tinha sapos, piabas, barrigudinhos, cascudo, acará e muçum, além de garças e martim pescador. Isso porque, na década de 80, embora o esgoto de toda rua fluísse in natura para ele, eram poucas as casinhas e o fluxo d’água do córrego dava conta de apurar a podridão.

Quase que eu não falo do último terço da rua, aquele lá depois da rua do valão. Parceiro, os pobres que moravam depois da rua do valão eram aqueles pobres que a gente que era pobre apontava e falava assim – Caraca mané, nós não pode ser pobre que nem eles não! Pai, namoral, vai fazer serão aí, mãe arruma mais uma lavagem de roupa que te ajudo! Pelo amor de Jesus! - Essa piada não é minha, é do Afonso Padilha, mas eu achei que caía bem nesse contexto.  

Quando chovia o valão se vingava e devolvia toda a sujeira para a rua, não poupava ninguém, nem o terço pavimentado. O pedaço que a gente morava virava um atoleiro, pra sair a gente tinha que colocar sacola no calçado, calçado no singular, porque era o único que tinha mesmo. Daí vinha o sol da Baixada Fluminense, muitos mosquitos e alguns dias depois o atoleiro virava megapoças.  As megapoças iam secando até virarem charcos de lama povoados de girinos agonizantes. É justamente aí que vamos achar o pequeno Jorginho, em sua inocência de menino de 3 anos, sendo feliz chafurdado no lama até o pescoço. Nesse tempo os meninos bricavam na rua. Mesmo porque ninguém que tivesse um automóvel se aventurava a passar naquele trecho da rua. O único veículo que passava era o caminhão do lixo a cada quinzena. Passava só até o valão, porque depois do valão vocês sabe né? Só foi conhecer um veículo motorizado em 1994 dias depois do gol “nana neném” do Bebeto.

Crime também não tinha. Afinal todo mundo conhecia todo mundo. Inclusive os poucos ladrões de galinha. Lembro de uma vez que o meu pai me levou na casa do sujeito, bateu palmas no portão – Olha só meu camarada, eu sei que vocês vivem aí muito mais do que na merda, mas isso não te dá o direito de invadir o meu fumeiro e roubar a minha banda de leitoa, ou você arruma um jeito de me pagar, ou eu vou na delegacia dar parte – dias depois o filho desse senhor deixou um par de marrecos lá em casa. Estava eu todo feliz já querendo degolar os bichinhos, ao que meu pai advertiu – nem perca seu tempo que daqui uns dias o verdadeiro dono vem buscar – dito e feito.

Voltemos ao Jorginho chafurdado na lama, batendo os pezinhos feliz da vida. A cada batida voavam um naco de lama e cinco girinos. Quando Dona Rosemeri viu o filho naquela situação sentiu um arrepio a lhe percorrer a espinha.

- Jorge Henrique Fernandes do Santos Junior sai daí agora!

Catou o menino pelos braços, entrou com ele pelo quintal, arrancou-lhe as roupas e o mergulhou no tanque de lavar roupas. Banho de água fria para aprender. E ralhava furiosa com o menino, que chorava aos berros. O escândalo foi tamanho que chamou atenção de toda a vizinhança.

- Não bate no menino que ele ainda é pequeno Rose.

- Não tô batendo Dona Maria, tô escovando, esse danado estava pulando nessa poça aí da rua.

- Jesus Maria José! Vai pegar verme!

Dona Rosemeri deu no pequeno um banho daqueles. Cinco ademãos de sabão de coco. Talco antisséptico em todas as esquinas.  Vestiu o menino com agasalho para diminuir a friagem. Penteou-lhe cuidadosamente o cabelo repartido ao meio. Na falta de um vermífugo deu ao pequeno uma boa colherada de Emulsão de Scot. Ao que o menino voltou a chorar. Quem foi criança na década de 80, ou antes, conhece bem o motivo do choro.

- Chora, chora mesmo Jorginho, mas vê se aprende – disse a mãe – Agora que quero ver você ir lá e pular naquela poça de novo.

O menino engoliu o choro assustado, acenou com a cabeça, saiu pelas portas dos fundos, atravessou o quintal, ganhou a rua e pulou obedientemente na poça.

 


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional


6 comentários:

  1. Que saudade da infância ao ler esse texto!

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  2. Puts cara...voltei ao passado. Adorei, Todas as referências. Todas!! Inclusive as do Glugu.

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  3. Muito boa elessadre!! Não conhecia a história de Magé.

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  4. Dona Rosimeri, né!!! Sei!!!🤭😘🥰
    Jorginho que se chama esse menino!?🤔🤔🤔

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