domingo, 6 de junho de 2021

Dissimulada

Quando eu estava no segundo grau (as crianças de hoje conhecem como ensino médio) a professora de literatura decidiu fazer um trabalho diferentão sobre o livro que estávamos lendo: Dom Casmurro. Talvez o mais famoso clássico de nossa literatura, obra prima do Bruxo do Cosme Velho, que era mulatinhou que nem eu.

Funcionava assim: seria organizado um julgamento da Capitu para decidir se ela pulou ou não pulou a cerca. Rolou um sorteio dos personagens, coube à Beatriz, patricinha da turma, interpretar a Capitu, achei adequado. O papel de Bentinho coube ao Fabio, grande goleiro do time de futsal campeão do intercolegial em 97 e 99, vice-campeão  em 98. Desse dia em diante Fabio passou a se chamar Boi. Charles Augusto, vulgo Amendoim, seria o juiz e assim por diante. Quem não ganhou um personagem compôs o júri. E aquele julgamento virou o assunto da escola.  

A este cronista coube o papel de promotor, ora vejam vocês. O time da promotoria tinha três integrantes. Além do Lapinha aqui, o grupo de acusadores era formado pelo Edson, cujo nome  na verdade era Everaldo, mas que a gente chamava Edson porque ele era de Edson Passos. Tremenda figura. Sabe o engraçadão da turma? Aquele que mal abre a boca e todo mundo já tá rindo? Pois é, esse era o Edson. A gente jurava que ele ia virar VJ da MTV ou personagem da Escolinha do Professor Raimundo. Mas hoje ele é tenente no 12° GBM-RJ, é a vida.

Completando o nosso  trio de ataque estava a Glória, Oh Glória..... Glorinha era a, com o perdão da palavra,  gostosona da turma. Quantos naquela escola não sonharam noites a fio com os caracóis dos cabelos da Glória? Quantos não se afogaram no navegar de ancas que era o andar de Glória? Glória, Glorinha.  Não se sabe o paradeiro dela hoje em dia. A última notícia que tivemos dizia que ela tinha se casado com uma cantora de carimbó e ido morar em Miracema, onde iniciou um negócio de queijo artesanal. Quem sabe?  

O “julgamento” seria no fim do semestre, ao longo do qual, fomos nos aprofundando na história. Ao término de uma aula, onde a professora descreveu o comportamento paranoico do Bentinho, o Edson virou pra mim e disse:

– Fudeu! A gente não ganha essa parada de jeito nenhum, a Capitu é na dela! O Bentinho é pirado!

Daí eu decidi fazer um curso expresso de direito. Duas disciplinas: 20 horas assistindo o Programa do Ratinho e um pouco mais de 2 horas assistindo “Advogado do Diabo” no Supercine. Aprendi rapidamente que eu não tinha que procurar a verdade. Eu precisava ganhar o júri. E a gente ia ganhar pelo entretenimento.

Foi o que fizemos no dia do julgamento, enquanto a acusação debatia trechos enfadonhos do romance, nós fizemos um espetáculo. O Edson levou o júri às lagrimas, de tanto rir obviamente. Um verdadeiro show de comédia, vocês hoje em dia chamam de stand up, hilário, inesquecível. A gente nunca voltou a rir tanto num único dia.

A Glorinha fez uma reconstituição dos crimes da Capitu, encenando brilhantemente num figurino clássico, com decotão e olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Impecável!. Foi aplaudida de pé pela turma, incluindo a professora, que acenou positivamente com a cabeça. 

Além de bolar essa estratégia marota, eu cuidei de interrogar as testemunhas. Inclusive o Escobar, ironicamente homônimo de seu personagem, principal testemunha da defesa, que fora devidamente subornado. Me custou um mês inteiro de Gummy e cerveja barata traficada do bar do João, lá do Cu da Mãe. Sim a gente era de menor e tomava uns gorós. Não façam isso crianças.

Resultado? 

Lavamos a égua. Capitu condenada por decisão unânime do júri. Mas... Sempre tem um mas. Mas eu assisti o Advogado do Diabo e não entendi nada. O filme é sobre poder e vaidade. O poder no caso de nossa turma era representado pela professora. Que é um ser humano tal como qualquer outro. E o ser humano invariavelmente tem vaidade. E a vaidade começa quando o diabo chega no ouvido e sopra: - Você vai deixar?

Aí malandro, não interessa o que está escrito no regimento, tampouco se é professora, juiz ou general do exército. A pessoa que exerce o poder não aceita perder. E vai decidir agir de acordo com suas inclinações morais, estéticas, políticas, ideológicas. Haja o que hajar – como se diz no Norte Fluminense.

A professora levantou-se e disse que ia entrar com um recurso. E entrou. E fez ela mesmo a defesa! E intimou a turma a mudar de ideia!! E o júri mudou o veredicto!!! DE FORMA UNÂNIME!!!

Nesse dia aprendi muito sobre a justiça.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional



4 comentários:

  1. 🤣🤣🤣🤣 é meu camarada, quando não dominamos as condições de contorno… mas a professora escondeu o jogo! Rsrs

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  2. Caraca!!! Como pode essas crônicas serem um tesouro escondido da internet?? Coisa pra viralizar, textos incríveis! Obrigado! Continue escrvendo pfv!

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  3. Muito boa elessadre!! Adorei o curso rápido de direito kkkk
    Abraços claudia

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  4. Kkkkkkkkkk. Muito bom. Curso de direito via programa do Ratinho...foi sensacional.

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