domingo, 4 de julho de 2021

Ressaca - Uma crônica pra você que escolhe vacina.

No Réveillon de 96 para 97 eu tive a maior ressaca de minha nada mole vida. 

Na década de noventa era costume no subúrbio carioca a gente remover a coroa do abacaxi, sacar o miolo, amassar a popa até a fruta ficar meio que oca. Tá ligado? Daí a gente preenchia o buraco formado com vinho de garrafão, uns cubos de gelo e vráuuuu mandava pra dentro.

Pense num trem doce! Abacaxi de verão, comprado naqueles caminhões com placa de Marataízes – ES. O sabor vem apurando por 408 km na BR 101 até chegar na feira de domingo na Praça Seca. Você mistura com aquele vinho tinto suave comprado a granel no Castelo do Pechincha, gelo pra kct, duas folhinhas de hortelã. Eu, mlk piranha do subúrbio, mal saído das fraldas... Caí matando. Antes do dia raiar eu achava que quem ia morrer era eu.

Cara, eu vomitei muito. Muito. A expressão “botar os bofes pra fora” foi inventada em minha homenagem. Me lembro até hoje de vomitar uns grãos de  arroz pintados de roxo, roxo do vinho tá ligado? Olha. Me veio a memória... deu... deu até uma ânsia aqui...
....

Eita!
...

Espera.
...

Gente do céu, vocês não sabem como eu passei mal. Em 1997 eu não comi arroz, não aguentava olhar. Vinho idem. Não que eu tenha virado abstêmio. Até jurei que não voltaria a beber, mas fiquei sem álcool só até o São Sebastião, afinal há de se manter a tradição de embriaguez em feriados católicos. Bebi cerveja e tal, pois vinho não descia. Fiquei sem beber vinho até a vinda do outro século. E só voltei a beber por conta de um rolo com uma mina de Mauá, mas isso é tema de outra crônica.

Voltando ao Réveillon de 96 para 97. Olha... Eu fiquei mal. E o pior não foi nem a araponga na minha cabeça ou a sensação de estar dentro de uma máquina de lavar. O pior foi que eu não parava de vomitar. Eu vomitei tudo que havia comido desde o desmame. Vomitei as vísceras, a vida, a dignidade, por fim eu estava vomitando vácuo. Tá ligado vomitar vácuo? Seu corpo dói, você se contrai todo, abre a boca não sai nada. Nada. Nem arroto... Nem o ar dos pulmões. Nada.

E eu fazia um som esquisito, fazia um - RôôôôôôÔÔÔÔÔÔÔÔôoooo..... – Bem grave.

Na época aquele filme do exorcista estava na moda nas locadoras. Começaram a olhar esquisito pra mim.

Minha tia convenceu minha mãe a chamar o pastor. Foram bater na casa dele, mas o sujeito estava curtindo o fim de ano em Garatucaia. Procuraram o padre, mas ele estava muito ocupado para atender gente de minha laia. Sobrou para Dona Lucinha, rezadeira e mãe de santo de um terreiro lá perto de casa.

Estava eu a questionar o sentido de morrer em plena juventude quando Dona Lucinha adentra ao quarto. Ela vestia uma camiseta branca com uma imagem da sagrada família:  Jesus, Maria e José. Calças pantalonas igualmente brancas e bem vincadas. A cabeça adornada com um turbante, nas orelhas um par de argolas douradas.

Se aproximou de mim. Como era bonita a Dona Lucinda! As sobrancelhas erguidas, os olhos levemente puxados, o nariz arrebitado. Me olhou com ternura e sorriu com sua boca grande e dentes muito alvos. Sentou ao meu lado na cama. Foi no pé da minha orelha esquerda e sussurrou com uma voz que parecia a da Íris Lettieri:

- Você bebeu né meu filho?

Ao que eu tentei responder, mas a voz não quis sair. Meio que por fraqueza.  Meio que por receio dela ser o anjo enviado para me levar dessa pra melhor.

Dona Lucinha me fitou nos olhos novamente. Se aproximou da minha orelha direita dobrando-se sobre meu corpo. Senti um geladinho dos seus colares a roçar meu pescoço.

- Tá tudo bem, vai passar, quem tá contigo é mais forte.

Levantou-se e foi embora. Ainda pude ouvir sua voz dizendo a minha mãe:

- De espiritual não tem nada. As tripas e o baço é que já não servem mais pra muita coisa. Dê chá de carqueja ao menino.

Foi o que me valeu.

Aquilo sim foi uma ressaca.

Agora vocês aí com medinho de ressaca de vacina. Tome tento minha gente! Como faz falta uma havaiana cantando no lombo de vocês viu?

Tomei a minha primeira dose de vacina essa semana. Tive ressaca? Sim claro. Delícia.

Uma moleza... Febrezinha de trinta e sete e meio (convenhamos que nem é febre)... Tomei uma dipirona e fui dormir feliz da vida por ter sido dispensado da lavagem da louça.

Não tá bom?

E ainda fiquei repetindo para meus anticorpos enquanto o sono não vinha:

- Marquem a cara desses filhos da puta! Marquem a cara deles...


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional


 

 


5 comentários:

  1. Todas dão reação! E viver e reativo minha gente... Precisa escrever uma crônica para esse povo que insiste em não se vacinar... Ah! Olha o pastor passando fim de ano em Garatucaia...kkkk

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  2. O efeito dessa mistura de abacaxi com vinho “visconde d’ chapinhá” eu conheço bem!!

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  3. Kkkkkkkkk. Delícia! O link do vinho, sintomas, vacina, somelier... GENIAL.

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