terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Homeoffice

A invenção do homeoffice, um estrangeirismo cujo significado é: você vai ter que fazer um relatório enquanto passa um bife, pede pro menino largar o rabo do gato, ouve a música nova da Iza e atende uma ligação do banco; trouxe pra nossa vida um lista interminável de perdas e ganhos. Até acho que ficamos com a maior parte das perdas enquanto nossos empregadores ficaram com a maior parte dos ganhos. Caso contrário a gente estaria lá no escritório.

Por exemplo, uma coisa que eu apreciava muito perdeu totalmente o sentido: morcegar. Os moralistas dirão que isso é coisa de gente malandra e preguiçosa, aos quais eu digo de forma muito cristã que façam, vocês sabem muito bem o quê, com a primeira pedra. 

Morcegar é a arte de tirar um tempo para fazer absolutamente nada e ter a certeza que alguém está te pagando por isso. É uma maravilha! O bom empresário sabe que morcegar até aumenta a produtividade.  Eu bem que tentei fazer isso aqui em casa mas bateu uma dúvida - essa uma hora e meia que passei ouvindo sabiá e assistindo o vizinho do edifício em frente limpar as vidraças da varanda foi ou não foi paga pela firma? Daí lá se foi o tesão. 

O que ficou foi o mais mundanamente brasileiro dos sentimentos, aquele que Belchior definiu como "o charme de alguém sozinho a cismar": saudade. 

Sinto saudades do café forte que eu detestava mas acabava bebendo litros por conta da resenha que vinha junto. Saudades do ar condicionado que me atacava a rinite mas não aumentava minha conta de luz. Saudades de começar o almoço discutindo futebol e terminar concluindo que depois de Epicuro e Diógenes nada mais prestou no ocidente.

Mas de tudo o que mais sinto saudades é da sobrancelha esquerda do Charles. Deixa eu explicar: o Charles tinha um jeito de erguer a sobrancelha esquerda muito peculiar. Ele a levantava muito alto, numa parábola perfeita, enquanto mantinha a outra absolutamente imóvel.  A testa nem enrrugava! Sabe aquela aflição que vc sente quando assiste um contorcionista? Aquele barato que te dá angústia mas que você não consegue parar de assistir? Poisé.  Eu batia a porta dele:

- Charles você entendeu aquele gráfico que o chefe mandou?

Ele virava a cadeira:

- Qual foi? Aquele que...

Pronto, eu não ouvia mais nada. Só focava em conseguir entender como ele movia uma única sobrancelha. No último ano, um terço da minha morcegação era tentando imitar a sobrancelha do Charles no espelho do vestiário. Um dia tomei coragem adentrei a sala:

- Charles meu camarada, como você faz esse lance da sobrancelha?

- Que lance?

- Esse aí que você tá fazendo.

- Fazendo o que parceiro?

- Deixa pra lá. 



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

7 comentários:

  1. 👏👏👏 É... alimentar o espírito é enveredar pela inspiração...
    E entre o bife e o laptop ficou mais difícil.
    Grande Lapinha!

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  2. Muito boa elessadre!
    Tb tenho saudades da sala de aula.
    Essa coisa de ensino remoto não tem graça nenhuma. Me sinto falando sozinha... acabou a interação com o aluno. A cara com que eles olhavam para o meu quadro já dizia se estavam entendo ou voando. Que venha logo a vacina! Quero minha vida de volta. Abraços Cláudia

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  3. Estou adorando as porrada ácidas que você vem dando, de leve e no amor e entre uma poesia e outra, no sistema . Isso tem aparecido. Adoro!!
    Saudades de você.

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  4. Ótima crônica, Lapinha. Nas reuniões de videocon ainda é possível visualizar a parábola? Grande abraço, Mestre Elessandre!

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