domingo, 3 de janeiro de 2021

A Bolha


Um dia alguém com alguma intenção mergulhou a ponta de um canudo numa bacia e a chacoalhou na água com sabão. Depois este mesmo sujeito ergueu o canudo, pôs a ponta seca em sua boca e a soprou.

Eis que de súbto uma bolha se formou perfeitamente esférica, para espanto dos que assistiam e julgavam que o mais adequado era que ela se fizesse circular e plana, tal qual uma pizza.A bolha não deu a mínima e ergueu-se aos céus plena em sua redondeza. Como somente os santos o fazem. 

Todavia o que dava significado à bolha era sua casca cintilante que dividia o mundo em dois: o de dentro e o de fora. De tal modo que os que de fora olhavam sequer cogitaram a hipótese de que havia dentro da bolha algo a se compreender. Tão impressionados estavam com aquela casca brilhante e rebeldemente redonda - será que essa bolha nunca leu a Bíblia? 

E os de dentro aos poucos foram se acostumando com aquela bolha, e após um tempo passaram a preferir aquele confortável céu colorido em substituição ao que outrora fora um vasto e monótono céu azul. De modo que as novas gerações sequer souberam que havia ali uma bolha.

Contudo surgiu na esquina um sujeito bem velho, todo pretinho à excessão dos cabelos. O cidadão vestia uma camisa do Botafogo  e carregava sob o suvaco um cavaquinho. Andava com grande altivez enquanto seus pés denunciavam haver em algum lugar uma canção. Certamente vocês já viram alguém e tiveram a mesma dúvida: esse que vem aí está a andar ou a dançar? 

Pois bem, esse senhor que vinha ali andando com seu cavaquinho e sua camisa do Botafogo ergueu a mão num gesto que me lembrou o Adão da Capela Cristina. A bolha rodopiou, dispersou uma enormidade de luz e tocou suavemente o dedo do sujeito, instante no qual ela, tal como surgiu, se desfez.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

8 comentários:

  1. Muito boa elessadre!
    Sempre adorei fazer bolhas de sabão e ver suas cores cintilantes!
    Nossa sociedade vive em bolhas. Esquecem que não estão sozinhas no mundo.
    Precisamos furar essas bolhas!
    Bjs claudia

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  2. Adorei!! Parágrafos ácidos para assuntos que realmente precisam ser corroídos ou estourados como bolhas.

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  3. Genial Elessandre. Mas escreve umas histórias bem longas.

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  4. Caro Lapinha, parabéns pelo belo texto. Agora estou me perguntando se vivo dentro ou fora da bolha. E tem mais, se a minha bolha é redonda ou plana.

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  5. Elessandre, na boa me lembrou o "prólogo de Zaratustra" de Nietzsche que eu adoro! Sensacional!

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  6. "Certamente vocês já viram alguém e tiveram a mesma dúvida: esse que vem aí está a andar ou a dançar?"

    Acho todo mundo que trânsito pelo "becos e vielas" já se perguntou pelo menos umas vez se aquele sujeito que lhe abordou estava ali mesmo ou se estava apenas a "dançar.

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