domingo, 3 de abril de 2022

Caminhos cruzados

Ontem à noite eu fui sozinho à garagem do prédio buscar um galão de água de vinte litros que eu havia deixado na mala do carro. Sim, às vezes eu faço o carro de depósito, coisa de quem mora em micro-apartamento e não sai muito de carro porque, vocês sabem, o preço da gasolina está proibitivo.   

A garagem aqui do prédio fica num subsolo meio cabuloso e mal iluminado com umas lâmpadas amarelas, que além de ineficientes são bem bregas. Não sei como é aí onde vocês moram, mas os síndicos aqui do subúrbio do Rio são muito cafonas.

Apesar de ser no subsolo, a garagem conta com um trecho descoberto nos fundos, pois o prédio foi feito num terreno em declive.  Essa parte faz divisa com um quintal amplo e bem arborizado onde há uma única casinha antiga. Dessas que tem um santo sobre a porta e janelas com venezianas. Um vislumbre de um passado bucólico que havia onde hoje é a zona oeste carioca.

Antes do muro que nos divide há, do lado de lá, uma linha de bananeiras que atrai muitos morcegos. Animais que têm o péssimo hábito de se aliviar sobre os nossos carros. Cocô de morcego não é legal. Daí eu até evito colocar o carro perto desse muro, mas nesse dia eu tinha chegado muito tarde da noite e só tinha vaga ali nesse lugar.

Pois bem, lá fui eu buscar o garrafão de vinte litros de água na mala do carro. Ergui a carga com todo cuidado e carinho que minha coluna merece. Sabe como é, chega uma idade que todos os movimentos devem ser muito bem planejados na hora de se levantar peso. Abaixei a tampa da mala num rodopio com o cotovelo, travei as portas tocando no controle estrategicamente pendurado no cordão da bermuda e quando lancei os olhos sobre o muro do tal quintal das bananeiras, eis que surge...




.... blam blam blaaammm (sonoplastia de suspense) 

Um gato preto. 

Ok eu não sou assim tão supersticioso. Mas gente, pensa aí na merda que a gente tá vivendo. Dois mil e vinte e dois. Um ano que nem sei se já começou porque num teve carnaval. Quer dizer... até teve. Só que não. Mais ou menos. Mas parece que vai ter outro. Sei lá. Só sei que eu não paro de levar porrada há mais de dois anos. Pandemia, recessão, governo.. tsc... a gente estaria bem melhor sem ele. Meus amigos dando perda total no analista, na igreja ou no botequim. Inflação e guerra fria voltando com força total.

Aí,  eu vou dar mole pra gato preto, numa garagem sombria, sexta à noite, com um garrafão de vinte quilos nas costas e uma coluna vertebral mais mal conservada que as estações do ramal Belford Roxo? É ruim hem.

Fixei os olhos no bichano e fiquei só manjando o indivíduo, chance nenhuma de eu deixa-lo cruzar o caminho por onde eu tinha que passar. Ele me viu e ficou lá estatelado. Eu com medo dele me trazer azar (mais azar) e ele lá, com o medo que os gatos têm de gente trazer sabe-se lá o que que a gente traz de ruim na superstição dos gatos.

Alguns minutos se passaram, veio uma rajada de vento. Ao fundo tinha um pagode tocando não sei onde. No subúrbio sempre tem um pagode tocando não sei onde, ou um funk, ou um forró, ou um louvor, ou uma macumba. Nesse dia era pagode. Mas depois da rajada de vento o cara do pagode desligou o som. E fez-se silêncio. Só quem mora em subúrbio sabe o quanto é raro fazer silêncio. Ainda mais sexta à noite. Mas fez. Silencio, sinistro. Eu olhando pro gato, o gato olhando pra mim.

Passou mais um tempo. O garrafão de vinte litros d'água já estava pesando uns quarenta e sete quilos. Fiz que ia dar um passo, o gato foi mais ligeiro e desceu do muro. E eu de olho nele. E ele andando daquele jeito sorrateiro de gato.  

No canto direito da garagem meio que não bate luz, tá ligado? Lá fica um breu formado pela soma da silhueta dos pilotis do prédio com a sombra das bananeiras do vizinho. Eu nem tinha notado que havia ali um canto assim tão escuro, mas nesse dia eu reparei. Reparei porque foi pra lá que o danado do gato andou. Bem lentamente, patinha por patinha. E quando estava lá no cantinho mais escuro do canto escuro ele parou. E eu só via os olhos do gato, dois faróis amarelos, apontados pra mim. E eu lá, todo cagado, mas sem arregar, olhado de volta.

Daí o gato, fechou os olhos e sumiu.

SumiuÔ! Mano de céu! O GATO DESAPARECEU! Não há quem chegasse e dissesse que tinha um gato ali no segundo anterior.

- ArreMaria! 

Dei uma corridinha até o elevador e subi.



 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional



3 comentários:

  1. Kkkkk
    Não dá para correr o risco kkkk
    Só faltava ser sexta feira 13
    Abraços Cláudia

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  2. Cara.... não era o pantera Negra filho? Ah ... e sim... síndico aqui é brega... só que a conta de luz está tão impossível quanto a gasolina. Lâmpada fria.

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