sábado, 20 de março de 2021

No meio de nós

Houve um tempo que eu batia ponto num boteco ao lado da Caprichosos, ali pertinho do viaduto de Pilares. Eles serviam uma rabada sensacional e a cerveja estava sempre gelada. Na próxima crônica eu falo sobre a gastronomia suburbana. Hoje vou dar outro papo. 

Vou contar o que me aconteceu quando neste botequim  em Pilares encontramo-nos debatendo sobre sardinha – Sardinha? – É, caro leitor, sardinha. Sardinha frita para tomar com cerveja. A gente é assim, tá biritando já planejando o acompanhamento da próxima biritagem. A isso chama-se produtividade, visão de futuro. Se você for muito, muito fresco pode chamar de “busines canvas”. A gente aqui estuda inglês também, só não sai por aí usando que nem trouxa.

Pois bem, já estávamos quase chegando ao consenso que sardinha boa era lá no Beco quando meu parceiro Miguel Kowalski Caccini - é isso mesmo, o malandro é polaco por parte de mãe e italiano por parte de pai, o nome disso é anarcocomunismo, o primeiro nome é de anjo para tentar limpar a barra. O Miguel vira e fala:

- Vocês não conhecem o Rio minha gente. Sardinha que mereça o nome só se consome lá no Mangue.

- Que mangue?

- No Mangue porram!

- Que mané mangue? Já tacaram fogo em tudo, virou tijolo parceiro. Aonde você tá achando esse mangue?

- No Fundão galera, o Mangue da Ilha do Fundão.

- Ah ou... Miguelito? Não mete esse caô, você vai querer botar o Fundão no mapa agora?

Miguel é funcionário da UFRJ morador da Ilha do Governador, vive convidando a gente para ir a Ilha. Se tem um bicho bairrista no Rio é o tal do insulano. Talvez perca para o tijucano, com a diferença que o tijucano é chato pra cacete. Contudo essa foi a primeira vez que o Miguel nos chamou para ir na ilha do lado, a do Fundão. Dos cachaceiros presentes eu fui o único a topar conhecer o tal “Mangue da Ilha do Fundão”, que a sardinha era “colossal”... sei. Vejamos.

Bati no trabalho do Miguel numa quinta-feira, como é praxe no Rio, bem depois da hora marcada. E nesse dia foi bem depois mesmo porque me perdi naquele inferno de ilha, cujas ruas são todas iguais e a gente entra e fica dando volta que nem peru tonto. Mas cheguei.

- Quer me matar de fome Lapinha?

- Pow bicho, não sei andar aqui não....

- Vamos ali que vou chamar um amigo. Ele vai lá tomar uma com a gente no Mangue.

- Já é.

Foi aí que eu entrei num lugar chamado Centro de Tecnologia, todo bonitão, laboratório disso, laboratório daquilo, laboratório que não sei nem ler a palavra. Um lugar meio que tipo NASA. Ou pelo menos parecido com a NASA para um cara que nem eu que fui criado pescando piaba no rio Inhomirim. As pessoas passando para lá e para cá com uma cara de gente muito inteligente que está resolvendo uma coisa muito tecnológica. Uns garoto novo, umas gatinhas também.

E eu lá pensando – esse povo nunca comeu uma sardinha gente, o que que eu vim fazer aqui? Daí nós chegamos numa entrada onde estava escrito “laboratório de fibra ótica”. Miguelito foi logo abrindo a porta. Eu fui entrando junto, estava um calor desgraçado e lá dentro tinha ar condicionado.

Malandro, que lugar maneiro! Tinha umas meia dúzia de vinte telas planas mostrando um monte de gráfico. Um emaranhado de fio pra todo lado. Tipo poste de favela, tá ligado? Só que os fios eram novos. Um monte de computador, um painel cheio de botão daqueles que você fica logo com vontade de apertar um só para ver que merda que vai dar. Ao fundo, uma sala na penumbra onde você via um feixe de luz brilhando entre duas placas de metal.

- Caralho Miguel, saporra é raio laser?

- É pow.

- Tá de Caô.

- Serião Lapinha é laser.

Cara... coisa que eu só tinha visto em filme, na moral. Daí o Miguelito chama:

- Simbora Toquinho.

E eis que do fundo do laboratório emergiu, não sei se de dentro de um computador daquele ou se diretamente do feixe de luz...

 

Pausa dramática.

 

UM ÍNDIO!

 

?

 

Saiu um índio gordinho com um par de óculos esquisitos do meio dos raio laser MANO DO CÉU!

Eu não tinha tomado nada eu juro. Fiquei com cara de paisagem. O Miguel foi quebrando o gelo:

- Aí Toquinho, meu parceiro Lapinha se amarrou no seu laboratório.

O índio era puta gente boa. E começou a falar da fibra ótica, dos elétrons dos caraioaquatro que transmitia dados na velocidade da luz e tal. Só que ele não falava assim mocorongo sabe? Tá ligado mcorongo? Nerdão. Não mesmo. O índio tinha sotaque de surfista do arpoador. Cês tão ligado no sotaque da Zona Sul? Sotaque de malandro que voa de asadelta? Parecia que tinham instalado o APP do Evandro Mesquita dentro do índio. Tô falando sério esse cara existe. 

Aquilo foi um tapa, dois tapas... Foi uma moqueta do Vitor Belfort bem no meio do quengo da minha cabeça tacanha e cheia de estereótipos. A prova de que essa gente diversa que compõe esse país é fenomenal, criativa que só. O lance é que o Brasil, oficial burlesco e caricato, detesta essa galera. Esse papo o Euclides da Cunha já mandou faz é tempo. Ou o Brasil se reconhece em sua pluralidade e se desenvolve junto com seu povo, ou a gente fica fingindo que é uma coisa que obviamente a gente não é. E continua na merda que tá. É claro que ele disse isso de forma muito mais elegante e erudita, mas daí você vai ter que ler Os Sertões. Recomendo.

Mas Lapinha e o índio?

Viramos grandes amigos. Ele está aí entre nós, para sempre. Você certamente já se o encontrou sem se dar conta em algumas de minhas crônicas. E vai continuar encontrando enquanto houver tinta na minha pena.

E a sardinha?

A sardinha dá pro gasto. Mas a cerveja vale. Tem corvina também.

14 comentários:

  1. Camarada eu já estaria muito satisfeito se a crônica terminasse no segundo parágrafo. Mas aí tem o Índio, o tapa na cara da sociedade para ver se munda o maindi 7 e as sardinhas. Parabéns!!! QQ dia vamos no centro. Beco das sardinhas...tomara que ainda esteja lá...e tomara que a gente possa algum dia ir lá.

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  2. Tá batendo um bolão, e olha que hoje nem foi de futebol... 🤭😘❤️🍾🥂

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  3. Cara, lapinha...
    “- No mangue porram” ... foi demais! Ri muito e alto!
    Quanto seria bom se todos aceitassem um mundo plural!
    Obrigado por nos lembrar disso.

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  4. Muito boa elessadre! Chorei de rir. Mensagens importantes passadas com graça e leveza. Qdo publicar seu livro de crônicas, me avisa, vou querer meu exemplar autografado com dedicatória.
    Um abraço, Cláudia

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  5. Como é gostoso ler o que vc escreve, parabéns por conseguir passar mensagens boas com humor e leveza!!!

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  6. Esse chip do Evandro Mesquita no toquinho... Sensacional!!!

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  7. Esse chip do Evandro Mesquita no toquinho... Sensacional!!!

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  8. Uma das coisas q mais gosto na universidade é essa possibilidade de conhecer todo tipo de gente que o nosso mundinho de moradores de regiões metropolitanas muitas vezes não permite. Principalmente após as políticas de cotas e de expansão das instituições de ensino superior, que se possuem problemas e necessitam de aperfeiçoamento, também possuem méritos inquestionáveis.
    PS: quando as condições sanitárias permitirem te levo nos botecos que desbravei na zona norte pra gente comer uma sardinha.

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  9. A sardinha da Rua do Acre é melhor, mas não tem o app do Fernando Mesquita!!kkk
    Basta a oportunidade que mostramos nosso potencial, mas é surpreendente como o dia a dia nos faz esquecer disso...
    Sensacional!!!

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  10. Mestre Lapinha, cada vez mais original. De onde sai tanta ideia, Mermão? Essas leituras viciam. Um salve especial para o nosso Índio com o chip do Evandro Mesquita! Está fazendo falta :///....saudades de ouvir o Pô Pessa, sabe como é a parada né...

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  11. Mestre Lapinha, cada vez mais original. De onde sai tanta ideia, Mermão? Essas leituras viciam. Um salve especial para o nosso Índio com o chip do Evandro Mesquita! Está fazendo falta :///....saudades de ouvir o Pô Pessa, sabe como é a parada né...

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