sábado, 6 de março de 2021

Avenida Brasil


Ontem, por volta das cinco da tarde, estive preso em um engarrafamento naquela agulha da Avenida Brasil que dá acesso à Linha Amarela. A única coisa mais carregada que o trânsito era o clima, uma frente fria se aproximava do Rio. O céu estava a antítese daquela coisa wave do Tom Jobim. Um cinza tétrico encobria o Sumaré e o topo dos morros mais altos da Zona Norte, nuvem baixa, nuvem de chuva, e eu ali, preso naquele famoso ponto de alagamento.

 

Num dado momento uma ventania sinixtra veio trazendo poeira, folha seca, galho de árvore, sacola de plástico o escambau. Algum objeto bateu no vidro e desviou meu olhar. Neste momento pude notar uma moça muito magrinha que vendia coisas entre os carros lá perto do canteiro central.


 Em cada uma das mãos ela carregava um gancho daqueles de ambulante. Vocês estão ligados naqueles ganchos que os ambulantes penduram as coisas? Como chama aquilo? Baleiro? Acho que não. Mas vocês pegaram a visão né? Pois bem, vou chamar de gancho.

 

No braço esquerdo, erguido sobre os ombros, ela conduzia um gancho cheio daqueles pacotes de pele - sabe aqueles baconzitos genérico do saco transparente? Esse mesmo.


Do lado direito ela mantinha, com muita dificuldade, braço totalmente estendido, meio que se apoiando na coxa , um gancho cheio de balas - cês tão ligado que bala pesa né?

 

Já falei aqui que a moça era magrinha.  Olhos fundos, olhar perdido, o abdômen bem elevado. À primeira vista me pareceu que ela estivesse grávida. Mas sua postura curvada em nada me lembrava uma gestante, parecia uma moça bem doente. Andava arrastando os chinelos, cambaleando entre os carros, disputando espaço com as motos, oferecendo sua mercadoria.

 

Aconteceu que a moça emparelhou com uma SUV dessas enormes e bem cafona. O vidro baixou, uma senhora chamou a ambulante e perguntou alguma coisa. A vendedora respondeu, colocou os ganchos com a mercadoria no chão próximo do carro, pegou três pacotes de pele, entregou para dona no carro, pegou o dinheiro e agradeceu. Daí a SUV começou a andar e, antes que a ambulante pudesse reagir, a roda traseira passou por cima do gancho da vendedora – ESMAGOU MAIS DA METADE DOS PACOTES DE PELE MANO DO CÉU!

 

A ambulante parou desolada, ficou olhando a mercadoria espalhada pelo asfalto. O trânsito estava parado, ela poderia em poucos passos ir até a SUV cafona e queixar-se do ocorrido. Reivindicar seja lá o que fosse. Contudo ela ficou estática, olhar fixo no chão.

 

Depois de um tempo ela curvou-se, catou a mercadoria perdida e jogou no canto da avenida próximo a um bueiro. Arrumou o pouco que lhe restou no gancho, ergueu-se e continuou, como se nada tivesse ocorrido. O transito andou, a SUV cafona seguiu seu caminho. Ouvi uma buzina, o carro da frente tinha se afastado, engatei a primeira e segui também o meu. Avenida Brasil, altura de Manguinhos, cinco e pouca da tarde.


 


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional

6 comentários:

  1. Um povo "acostumado" a sofrer, só aprendeu a seguir em frente, sem reenvindicar o que é seu por direito. Realidade de uma Nação inteira... Bom domingo!

    Abraços,

    Andressa

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  2. Consegui tirar o nome do Paulo do meu comentário... rsrs

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  3. Nosso mundo invisível de dor e sofrimento, nosso mundo pervertido de indiferença... muito triste.

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  4. Caramba... Confesso que a moça não sai da minha cabeça. Quantas moças como essa o Brasil não produz só pra depois abandonar. A ausência do estado é, literalmente,de matar e, ultimamente, a presença também.

    Não menos importante, você escreve muito bem.

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  5. O cotidiano dos pobres e marginalizados socialmente. Só um cronista de alma evoluída para capturar esse cenário tão impactante.

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  6. Lembrei o nome do gancho...gancho de açougue de pendurar carne...pouco importa...
    É camarada vida de gado. Povo marcado...mas nem sempre feliz.

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